FICHAMENTO do texto "Neoconstitucionalismo e Constitucionalização do Direito (O triunfo tardio do direito constitucional no Brasil)", p. 203-249, In: BARROSO, L. Roberto. A Constitucionalização do Direito: Fundamentos Teóricos e Aplicações Específicas. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2007.
INTRODUÇÃO
Diante da
velocidade das mudanças atuais, o Direito está em crise existencial, sem
conseguir restituir à sociedade os produtos de sua reputação: justiça e
segurança pública.
NEOCONSTITUCIONALISMO E AS
TRANSFORMAÇÕES DO DIREITO CONSTITUCIONAL CONTEMPORÂNEO
Marco histórico: a
reconstitucionalização da Europa, após a Segunda Grande Guerra, restabeleceu a
Constituição e a importância do direito constitucional sobre as instituições.
As principais
referências foram a Lei Fundamental de Bonn, de 1949, e a criação do Tribunal
Constitucional Federal, de 1951, seguidas da Constituição da Itália, de 1947,
com a instalação da Corte Constitucional em 1956.
No Brasil, a
Constituição de 1988 foi capaz de fazer a travessia do regime autoritário para
o Estado democrático de direito. Suportou variados testes institucionais, desde
o “impeachment” de um Presidente à eleição de outro de oposição, do Partido dos
Trabalhadores.
Em menos de
uma geração, o direito constitucional no Brasil passou do desprestígio ao
apogeu.
Marco filosófico: sob o rótulo genérico
do pós-positivismo, o novo direito constitucional procura superar os modelos
puros do jusnaturalismo e do positivismo.
O
pós-positivismo se propõe a ir além da legalidade escrita, sem desprezar o
direito posto, e busca uma leitura moral do Direito, sem recorrer à metafísica.
Neste
paradigma em construção, abrigam-se a normatividade aos princípios e a
definição de suas relações com valores e regras; a reabilitação da razão
prática e da argumentação jurídica; a formação de uma nova hermenêutica
constitucional; e uma teoria dos direitos fundamentais. Há, assim, uma
reaproximação entre o Direito e a filosofia.
Marco teórico: evidenciado a partir de
três grandes inovações.
1) A força
normativa da Constituição – o reconhecimento da força normativa, do caráter
vinculativo e imperativo de suas disposições passou a ser premissa do estudo
constitucional.
Com
resistências, esse debate só chegou ao Brasil na década de 1980. Coube à
Constituição de 1988, além da doutrina e da jurisprudência a partir dela, o
mérito de vencer as barreiras mais atrasadas.
2) A expansão
da jurisdição constitucional – após 1945, um novo modelo, inspirado na
experiência americana, constitucionalizava os direitos fundamentais e os
imunizava em relação ao processo político majoritário, cabendo tal proteção ao
judiciário.
O controle de
constitucionalidade, associado aos tribunais constitucionais, foi irradiado na
Europa continental, nos anos 50,
a partir da Alemanha e da Itália.
No Brasil,
esse controle expandiu-se com a referida Constituição, ampliando o direito de
propositura junto ao Supremo Tribunal Federal, que exerce esse controle via
ações de sua competência própria; recurso extraordinário; e em processos
objetivos, em que se veiculam as ações diretas (de inconstitucionalidade,
declaratória de constitucionalidade, de inconstitucionalidade por omissão,
arguição de descumprimento de preceitos fundamental e a interventiva).
3) A nova
interpretação constitucional – no novo sistema, verificou-se que, quanto ao
papel da norma, só o relato do texto não é decisivo para a solução dos
problemas jurídicos; e, quanto ao papel do juiz, ele já não se limita à função
de conhecimento técnico do enunciado normativo, é coparticipante do processo
de concreção da norma, quer dizer, da criação do Direito.
As mudanças
requeridas na nova interpretação são ilustradas nas categorias que se seguem:
a) cláusulas
gerais: são conceitos jurídicos indeterminados que, contendo expressões
abertas, produz um início de significação a ser completado pelo intérprete, no
caso concreto;
b) princípios:
são considerados pelo pós-positivismo normas que consagram determinados valores
ou apontam fins públicos a serem realizados por variados meios. Impõe-se a
atuação do intérprete na definição concreta do seu sentido e alcance;
c) colisões de
normas constitucionais: quando duas normas de igual hierarquia se colidem, é
normal que não possam resolver, de logo, o problema. É aí que se insere o juiz,
criando o Direito aplicável concretamente ao caso;
d) ponderação:
técnica usada pelo intérprete, quando das colisões de normas constitucionais,
em que ele faz concessões recíprocas, preservando o máximo de cada interesse,
ou escolhendo o direito prevalente, no concreto, para melhor realizar o desejo
constitucional. Nesta categoria, o uso do princípio da razoabilidade é
determinante;
e)
argumentação: controle de racionalidade das decisões proferidas, sob
ponderação, nos casos que comportam mais de uma solução possível e razoável. O
juiz deve reconduzir a interpretação sempre ao sistema jurídico; utilizar-se de
uma fundamentação que tenha a pretensão de universalidade; e levar em conta os
efeitos de sua decisão no mundo real.
A CONSTITUCIONALIZAÇÃO DO DIREITO
Os princípios
e disposições constitucionais passam a condicionar normas do direito infraconstitucional.
A atuação entre os três Poderes, suas relações com os particulares, assim como
as relações entre os particulares são repercutidas pela constitucionalização.
ORIGEM E
EVOLUÇÃO DO FENÔMENO
A aproximação
entre constitucionalismo e democracia, a força normativa da Constituição e a
difusão da jurisdição constitucional foram processos de passagem para o modelo
atual.
Nos Estados
Unidos, a constitucionalização do sistema jurídico e o controle de
constitucionalidade, desde o final do século XVIII, inspiraram todo o movimento
contemporâneo.
A Alemanha do
pós-guerra foi o marco inicial desse processo de constitucionalização, com a
Lei Fundamental e o Tribunal Federal, em que os direitos fundamentais, além de
terem a função de proteger as situações individuais, desempenharam o papel de
instituir uma ordem objetiva de valores. Essas normas constitucionais
impregnaram todos os ramos do Direito, público e privado (notadamente o civil),
e vincularam os Poderes estatais.
Na Itália, a
Constituição entra em vigor em 1948, mas a constitucionalização das normas só
se inicia na década de 1960, com a efetividade da Corte Constitucional, quando
se manifesta em decisões de inconstitucionalidade, em convocações para atuação
do Legislativo e na reinterpretação de normas infraconstitucionais, e quando as
normas de direitos fundamentais passaram a ser aplicadas sem a intermediação do
legislador.
Na França, o
processo ainda está em fase de afirmação, pois a Constituição de 1958 optou por
um controle só para algumas leis, mas antes de entrarem em vigor, feito pelo
Conselho Constitucional, o que não se constitui uma jurisdição. Entretanto,
começam a ser debatidos a impregnação da ordem jurídica pela Constituição e o
uso da técnica de interpretação constitucional, apesar da grande resistência da
doutrina tradicional.
CONSTITUCIONALIZAÇÃO
DO DIREITO NO BRASIL
O texto final da
Constituição de 1988 expressa a soma dos fatores reais de poder possível e
circunstancial, carregada de paternalismos, reservas de mercado e privilégios corporativos.
A euforia levou a uma Carta prolixa e corporativa, em que os principais ramos
do direito infraconstitucional foram contemplados.
Quando princípios e regras de uma disciplina ascendem
à Constituição, passam a subordinar as demais normas daquele subsistema,
interferindo nos limites de atuação do legislador ordinário, assim como na
interpretação do Judiciário.
Dotada de
supremacia formal e material, a Constituição está hoje no centro do sistema
jurídico, funcionando como critério de validade e vetor de interpretação de
toda ordem infraconstitucional.
A constitucionalização do Direito impõe ao legislador
e ao administrador deveres negativos e positivos de atuação, propondo limites e
objetivos a serem observados. Todavia, é na jurisdição constitucional que está
a sua principal manifestação, a qual é exercida por juízes e tribunais,
difusamente, e pelo STF, concentradamente, envolvendo diferentes técnicas
interpretativas:
a) reconhecimento da revogação das normas inferiores,
anteriores e incompatíveis com a Constituição;
b) declaração de inconstitucionalidade de normas inferiores,
posteriores e com ela incompatíveis;
c) declaração da inconstitucionalidade por omissão e convocação
à atuação do legislador;
d)
interpretação conforme a Constituição, quer dizer:
i) entendimento da norma inferior que melhor traduza
os valores e fins constitucionais;
ii) declaração de inconstitucionalidade parcial
sem redução do texto, retirando uma interpretação possível e afirmando uma
outra compatível com a Constituição.
Ao Judiciário compete invalidar um ato do
Legislativo, porém não pode substituí-lo por um ato de vontade própria, ou
seja, ele só pode atuar como legislador negativo.
ALGUNS ASPECTOS DA CONSTITUCIONALIZAÇÃO DO DIREITO
DIREITO
CIVIL
Na Revolução Francesa, a Constituição era a Carta
Política que regia as relações entre o Estado e o cidadão, já o Código Civil ou
napoleônico era o documento jurídico a reger as relações entre particulares.
Este realizava o ideal burguês que protegia, além da igualdade formal, a
propriedade e a liberdade de contratar.
Com o Estado social e a crítica à desigualdade
material, o poder público começa a interferir nas relações particulares, ao
introduzir as normas de ordem pública e proteger o lado mais fraco da relação
jurídica. É o dirigismo contratual, que publiciza o direito privado, em
especial o civil.
Na fase atual, a Constituição, com suas regras e
princípios, se coloca no centro do ordenamento jurídico, merecendo destaque
duas considerações: primeira, o princípio da dignidade da pessoa humana que
impõe limites e atuações positivas ao Estado, no atendimento das necessidades
básicas, em que o direito civil é repersonalizado e despatrimonializado.
Segunda, a aplicabilidade dos direitos fundamentais
às relações privadas. Prevalece na doutrina brasileira a eficácia direta e
imediata da aplicação das normas constitucionais a essas relações, mediante
ponderação dos princípios constitucionais e o direito fundamental do caso
concreto.
DIREITO
ADMINISTRATIVO
Este ramo do Direito desenvolveu-se com autonomia e
agregou a disciplina da Administração Pública, dado o prestígio do Conselho de
Estado Francês.
A Constituição de 1988 discorre vastamente sobre a
Administração Pública, contendo, inclusive, o estatuto dos servidores públicos,
assim como os princípios setoriais do direito administrativo, que são os da
legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência.
A partir da importância da dignidade humana e da
defesa dos direitos fundamentais, alterou-se a qualidade das relações entre
Administração e administrado, quebrando paradigmas:
a) a
redefinição da supremacia do interesse público sobre o interesse privado
primário (justiça, segurança e bem-estar social) e o secundário (interesse
da pessoa jurídica de direito público). Este último jamais terá supremacia
sobre o interesse particular. Se entrarem em colisão, caberá ao intérprete
proceder à ponderação sob a ótica das normas e fatos relevantes para o caso
concreto.
b) a
vinculação do administrador à Constituição e não apenas à lei ordinária. Ele deve
ter por fundamento a Constituição, independentemente de qualquer manifestação
do legislador ordinário. O princípio da legalidade transforma-se em princípio
da constitucionalidade.
c) a
possibilidade de controle judicial do mérito do ato administrativo, que se
limitava a cognição dos juízes e tribunais aos aspectos da sua
legalidade e não do seu mérito. Segundo o autor, já não é mais assim, pois os
princípios constitucionais gerais já mencionados, e também os específicos, como
moralidade, eficiência e razoabilidade/proporcionalidade, permitem o controle
da discricionariedade administrativa.
DIREITO
PENAL
O direito constitucional repercute de maneira ampla,
direta e imediata sobre o direito penal, incluindo um denso catálogo de
garantias e impondo ao legislador a ação positiva e negativa em relação à
criminalização de condutas.
Os bens jurídicos constitucionais se colocam em uma
ordem hierárquica, em que a gravidade da punição deve ser regulada por essa
lógica. O direito penal não deve ir além nem aquém do ideal na proteção desses
valores.
CONSTITUCIONALIZAÇÃO E JUDICIALIZAÇÃO DAS RELAÇÕES SOCIAIS
A difusão da Lei Maior pelo ordenamento se faz pela
jurisdição constitucional, que, no Brasil, é de competência ampla do juiz
estadual ao STF.
Com a constitucionalização, aumento da demanda por
justiça e ascensão institucional do Judiciário, verificou-se uma significativa
judicialização de questões políticas e sociais, demandando os tribunais sobre
temas como: políticas públicas, relações entre Poderes, direitos fundamentais e questões cotidianas das pessoas.
Os membros do Poder Judiciário são selecionados por
mérito e conhecimento específico, não são eleitos. Entretanto, o poder dos
juízes e tribunais é representativo e exercido em nome do povo e a ele deve
contas.
Cabe ao Judiciário resguardar os valores fundamentais
e os padrões democráticos, além de garantir a estabilidade institucional.
A Constituição protege os direitos fundamentais, determina a adoção de diretrizes para realizá-los bem como delega o
investimento de recursos e políticas a serem seguidas no devido tempo ao
legislador e administrador; porém, o controle de constitucionalidade de
políticas públicas ainda não foi pacificado pela doutrina.
No Brasil, só recentemente tem-se potencializado
estudos sobre o equilíbrio entre supremacia da Constituição, interpretação
constitucional pelo judiciário e processo político majoritário. As nossas
circunstâncias atuais reforçam a importância do STF, inclusive na crise de
legitimidade por que passam o Legislativo e o Executivo como uma crônica
disfunção institucional.
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