quarta-feira, 23 de agosto de 2023

ARTIGO - PROPRIEDADE DOS BENS NAUFRAGADOS: ENFOQUE PORTUGUÊS

Série acadêmica

PROPRIEDADE DOS BENS NAUFRAGADOS: ENFOQUE PORTUGUÊS[1]

 

Para citar este artigo: SOUSA, M. T. A.; SOUSA, M, J. M. Propriedade dos bens naufragados: enfoque português. MTiciano Sousa. Natal, 23 ago. 2023. Disponível em: https://mticianosousa.blogspot.com/2023/08/artigo-propriedade-dos-bens-naufragados.html. Acesso em: DD/MM/AAAA.

 

RESUMO 

Os bens naufragados ou achados no mar, objeto de estudo deste trabalho, têm recebido tratamentos diferenciados tanto jurídicos quanto em termos de nomenclatura ao longo do tempo. Além disso, sempre orbitou em torno do instituto da salvação marítima, sem, portanto, adquirir uma autonomização adequada na maior parte dos regimes jurídicos. Pretende-se analisar como se consubstancia a propriedade dos bens naufragados no mar em cada instrumento normativo interno, passado e vigente, e nos regimes jurídicos internacionais adotados. Para tanto, lança-se mão de investigação científico-jurídica baseada no método dedutivo, a partir de pesquisa bibliográfica a explorar a doutrina especializada, os regimes internos e externos referidos, bem como aspectos jurisprudenciais. Constata-se que a propriedade dos bens naufragados tende a permanecer com o seu titular original, na medida em que a legislação se moderniza, salvo quando não se lhe possa conhecer. 

Palavras-chave: Bens naufragados no mar; Achados no mar; Propriedade; Titular da propriedade; Achador. 

 

OWNERSHIP OF SHIPWRECKED GOODS: PORTUGUESE APPROACH 

ABSTRACT 

Shipwrecked goods or goods found at sea, the object of study in this work, have received different legal and nomenclature treatments over time. In addition, they have always orbited around the institute of maritime salvation, without, therefore, acquiring adequate autonomy in most legal regimes. It is intended to analyze how the ownership of goods sunk at sea is embodied in each internal normative instrument, past and in force, of Portugal and in the international legal regimes adopted. To this end, scientific-legal research based on the deductive method is used, based on bibliographical research to explore the specialized doctrine, the referred internal and external regimes, as well as jurisprudential aspects. It appears that the property of sunken goods tends to remain with their original holder, as the legislation is modernized, except when it cannot be known. 

Keywords: Shipwrecked goods at sea; Found at sea; Property; Owner of the property; Finder.


Sumário: 1. Introdução; 2. Enquadramento; 3. Influências recebidas por Portugal acerca da propriedade dos bens naufragados; 4. Os regimes jurídicos internos portugueses: 4.1. Regime jurídico anterior: 4.1.1. Alvará de 24 de maio de 1668; 4.1.2. Código Comercial de 18 de setembro de 1833; 4.1.3. Código Comercial de 23 agosto de 1888 (CCom); 4.2. Regime jurídico vigente: 4.2.1. Regulamento das Alfândegas (RA); 4.2.2. Decreto Lei nº 416/1970, de 01 de setembro; 4.2.3. Regulamento Geral das Capitanias (RGC); 4.2.4. Decreto Lei nº 164/1997, de 27 de julho; 4.2.5. Lei da Salvação Marítima (LSM); 4.2.6. Decreto Lei nº 64/2005, de 15 de março; 5. Regime convencional ratificado por Portugal: 5.1. Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar (CNUDM) de 1982 (Convenção de Montego Bay); 5.2. Convenção da Unesco sobre a proteção do patrimônio cultural subaquático (CPPCS) de 2001; 5.3. Convenção internacional de Nairóbi sobre a remoção de destroços de 2007 (dec. 28/2017, de 25 de agosto); 6. Conclusão. 

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1. INTRODUÇÃO 

Os bens naufragados resultantes de fragmentos de navio, do próprio navio ou de carregamentos perdidos no mar possuem, desde o período medieval, uma terminologia um tanto quanto variada, vez que são encontradas várias nomenclaturas, tais como achados, perdidos, naufragados, soçobrados, destroços, despojos, arrojos ou até o termo francês épave.

Além disso, há que se distinguir tais objetos como tesouros, mercadorias, de ferros, de natureza militar, arqueológicos ou culturais, e determinar se foram perdidos, naufragados ou arrojados à costa, porquanto podem ter tratamentos diferentes quanto à propriedade, à forma de recuperação, à destinação, à recompensa a quem os achou ou para fins aduaneiros. O termo arrojado à costa diz respeito ao objeto arrastado à costa por força do vento, das ondas ou da correnteza marinha. 

Da mesma forma ocorre em relação ao delineamento jurídico do fenômeno bens naufragados ou achados no mar e a autonomia da matéria consoante à salvação marítima ou à assistência, sejam no ordenamento interno ou nas regulações convencionais.

Para os países signatários da Convenção da Unesco sobre a Proteção do Patrimônio Cultural Subaquático (CPPCS), de 2001, estão sob tutela deste Instrumento, como define o seu art. 1°, os bens submersos há pelo menos cem anos e que representem, de alguma ordem, vestígios da existência humana, sejam de caráter cultural, histórico ou arqueológico. Estes bens pertencem à humanidade e permanecerão, após encontrados e salvados, sob custódia do Estado Parte.

Por exclusão, os bens naufragados há menos de cem anos passam a figurar ao abrigo de regimes jurídicos convencionais, como a Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar (CNUDM), de 1982, e de regimes internos diversos, os quais serão analisados na medida em que tratem da propriedade dos bens naufragados ou achados no mar, objeto de análise deste trabalho.

Ainda se vislumbra a Convenção Internacional de Nairóbi sobre a Remoção de Destroços, de 2007, ratificada por Portugal em 25 de agosto de 2017, voltada para a obrigação de o próprio proprietário remover os destroços de suas embarcação e carga naufragadas, em decorrência de acidente, nas águas sob jurisdição dos Estados Partes afetados, ou suportar as despesas deste encargo, tendo em vista a segurança da navegação e a proteção do meio ambiente[2].

Para a investigação acerca da propriedade dos bens naufragados no mar, baseou-se, em termos metodológicos, no método dedutivo, a partir de pesquisa bibliográfica a explorar a doutrina especializada, a legislação interna e os regimes internacionais adotados por Portugal. Assim, partiu-se de uma delimitação inicial nesta introdução, um pequeno enquadramento do objeto de estudo, seguindo-se à análise das influências dos regimes jurídicos não mais vigentes e das características dos vigentes, de acordo com os tipos de bens naufragados encontrados no mar a que estes instrumentos aduzem. Por fim, são expostas as conclusões a que se chegou. 

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2.       ENQUADRAMENTO 

À partida, os principais critérios adotados para distinção entre a salvação de um navio e a recolha de achados no mar ou de destroços são: de um lado, a navegabilidade ou não do objeto achado ou recuperado; e, do outro, a manutenção em termos de identidade material do navio. Conforme Cláudia Madaleno, a navegabilidade e a permanência da identidade material consubstanciam requisitos da salvação, enquanto a recolha de achados ou remoção de destroços é delineada por exclusão, ou de maneira negativa, em relação à salvação[3].

Já Aureliano, faz esta distinção entre achados no mar e salvação marítima de forma positiva, considerando dois pressupostos: o primeiro leva em conta o elemento volitivo do achador, porquanto este, ao contrário do salvador, não possui qualquer animus salvandi; sendo tal pressuposto aplicado até aos objetos achados no fundo mar. O segundo diz respeito à perda da qualidade material dos objetos achados, normalmente referenciado na doutrina[4].

Em relação ao quadro jurídico vigente interno, a propriedade dos bens naufragados ou achados no mar, encontra abrigo no Decreto n.º 31.730/1941, de 15 de dezembro – Regulamento das Alfândegas (RA); no DL n.º 416/1970, de 01 de setembro; no DL n.º 265/72, de 31 de julho – Regulamento Geral das Capitanias (RGC); no DL n.º 164/1997, de 27 de junho; no DL n.º 203/1998, de 10 de julho – Lei da Salvação Marítima (LSM); Decreto Lei n.º 64/2005, de 15 de março; bem como nos Instrumentos internacionais adotados por Portugal: Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar (CNUDM), de 1982, ou Convenção de Montego Bay; Convenção da Unesco sobre a Proteção do Patrimônio Cultural Subaquático (CPPCS), de 2001; e Convenção Internacional de Nairóbi sobre a Remoção de Destroços, de 2007, ou Convenção de Nairóbi. Tais regimes jurídicos serão analisados a partir do Subitem 4.2.

Essas são as considerações do tema que por ora são aduzidas. As demais circunstâncias serão apresentadas à medida em que se lhes manifestem, tendo em vista serem variáveis segundo cada texto normativo interno ou regime convencional a que estão inseridas. 

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3.       INFLUÊNCIAS RECEBIDAS POR PORTUGAL ACERCA DA PROPRIEDADE DOS BENS NAUFRAGADOS 

Historicamente, a forma como as sociedades ocidentais trataram os bens encontrados no mar variou consideravelmente a partir dos costumes vigentes, da Antiguidade à atualidade. O Ius Naufragii, norma costumeira fecundada ainda na Antiguidade[5], vigorou nos reinos do Ocidente em toda a Idade Média e até as primeiras codificações marítimas e comerciais, exercendo influência sobre estas. Além de considerar os bens achados ou naufragados um “direito feudal, e mais tarde um direito realengo ou fiscal”[6] – de propriedade de quem exercia a jurisdição sobre o mar territorial do local do naufrágio –, ainda previa a punição dos náufragos com imolação ou com escravidão. O castigo era justificado como punição divina decorrente da falta, ou da imperícia pelo naufrágio, e até do acesso sem permissão ao território alheio[7].

A Lei da Ordenança de Colbert, de 1681, também conhecida como Ordenança da Marinha de Luís XIV, foi aplicada subsidiariamente em Portugal, por força da Lei da Boa Razão, na qual o parágrafo 9.º mandava aplicar, inclusive na matéria marítima, as leis das nações civilizadas da Europa. O título IX, do Livro IV, da Ordenança, contendo minuciosos detalhes a propósito do naufrágio, encalhe e fraturas de navios, contrapunha às contestadas influências do Ius Naufragii, vindo a constituir um marco para codificações posteriores acerca de arrojos e achados[8]. Garantia um terço do achado ao achador. Não obstante, ainda continha punições penais aos náufragos, além do confisco do navio e das mercadorias naufragados, caso não fossem reclamados pelos proprietários no ano e dia seguinte à data de publicação do achado ou da sua recuperação. Ou seja, consistia uma mitigação do Ius Naufragii em favor do Estado, mesmo com a opção de conferir a propriedade dos bens ao proprietário, por meio de procedimento legal[9].

Em realidade, a Ordenança previa o “corso”, instituto em que o soberano outorgava, por meio de uma carta de corso ou de marca, a uma pessoa privada, o direito de confiscar os navios e bens naufragados, trazendo benefícios aos corsários e ao Estado, garantindo, por este meio, receitas para as finanças públicas. Neste sentido, teoricamente, o que excedia os limites da carta do corso era considerado pirataria, atividade esta reputada ilícita[10].

As Ordenanzas del Consulado de Bilbao de 1737, ainda com fulcro na Lei da Boa Razão, teve vigência e aplicação também subsidiária no direito português, embora com menor efetividade. Este Normativo consagra a defesa da propriedade dos náufragos, atribuindo ao salvador um terço do valor recuperado[11].

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4.       OS REGIMES JURÍDICOS INTERNOS PORTUGUESES

4.1.    REGIME JURÍDICO ANTERIOR 

O quadro normativo português anterior, a propósito do objeto de estudo do presente trabalho, constituiu-se dos seguintes Instrumentos: o Alvará de 24 de maio de 1668; a Lei da Boa Razão, de 18 de agosto de 1709, em que, como já foi mencionado no Item anterior, o seu parágrafo 9.º serviu de janela para aplicação da Lei da Ordenança de Colbert e das Ordenanzas del Consulado de Bilbao; o Código Comercial de 1833 (Código Comercial Ferreira Borges); o Código Civil Português, de 1867 (CC/1867), que remeteu, por meio do seu art. 428.º, para o Código Comercial então vigente, tudo que dizia respeito a embarcações naufragadas, à carga ou a quaisquer objetos de domínio particular que o mar arroje às costas, ou que forem achados no alto mar; e o Código Comercial de 1888 (CCom), tendo sido revogados todos os dispositivos que diziam respeito à salvação e à assistência. Assim, por razões óbvias, serão analisados os Diplomas que se seguem. 

4.1.1. Alvará de 24 de maio de 1668 

É de bom alvitre lembrar o Alvará de 24 de maio de 1668, que vigorou concomitantemente à vigência da Ordenança de Colbert e pregava a supressão das influências do Ius Naufragii. Segundo este Alvará, ao juiz da Alfândega cabia a provedoria dos fragmentos, coisas e arrecadação das fazendas dos navios naufragados, mas havia o respeito à propriedade do náufrago, e o achador tinha direito a uma remuneração. Era considerada, porém, de propriedade efetiva da Fazenda Real o “navio, embarcações e cousas de infiéis inimigos que se perdessem ou dessem à costa nas praias do reino e seus domínios”[12]. Ademais, os adjetivos infiéis e inimigos mostram a quão arraigada ainda estava a norma costumeira do Ius Naufragii. 

4.1.2. Código Comercial de 18 de setembro de 1833 

No Código Comercial Ferreira Borges, os bens naufragados até que poderiam ser bem delimitados na Parte Segunda, Título XI, pois seu título assim sinalizava: “Do naufrágio, varação e fragmentos náufragos”. Entretanto, o que se percebe é uma promiscuidade entre os bens achados e o instituto da salvação.

Mesmo assim, consegue-se determinar que a propriedade dos bens, sejam eles fazendas, fragmentos ou o próprio navio, pertenciam ao proprietário original, que podia reavê-los, segundo o art. 1594.º, diretamente com a autoridade fazendária, em até quatro meses da data do achado.

Após isso, os bens, levados à leilão, tinham o produto da venda devidamente consignado em depósito judicial, descontadas as remunerações e despesas dos achados, quando, a partir de então, o proprietário disporia do prazo máximo de até dez anos para reclamar em Juízo, conforme aduzem os arts. 1596.º e 1597.º do antigo Diploma. Depois de dez anos, o produto da venda era declarado vago, o que significava a transferência da propriedade para o Estado. Quanto à indefinição de que este prazo se trata de caducidade ou prescrição, entende-se que refere à prescrição, tendo em vista a situação análoga estabelecida no Código Civil de 1867 (CC/1867), em parte vigente durante o viger do Código Comercial em tela, em seu art. 535.º[13], quando o credor tinha o prazo de prescrição de vinte anos para reclamar seu crédito em face do devedor de boa-fé.

Chama atenção ainda a redação do art. 1597.º, in fine, na medida em que faz referência expressa de que “os objetos pertencentes a inimigos nunca poderão ser reclamados” e, assim, tornar-se-iam propriedade do Reino. Disposição ratificada no art. 1598.º, sejam esses inimigos nacionais ou estrangeiros. Como se verifica, ainda traz resquícios do Ius Naufragii e do Alvará de 24 de maio de 1668, no que respeita aos bens recuperados dos inimigos. 

4.1.3. Código Comercial de 23 agosto de 1888 (CCom) 

O CCom revoga o Código de 1833, continua em vigor atualmente, mas teve os seus dispositivos atinentes à assistência, à salvação e aos achados no mar ou bens naufragados revogados pelo DL n.º 203/1998, de 10 de julho. O regime previsto para os bens naufragados neste Código se apresentava de forma relativamente delimitada no Título VIII, Livro Terceiro, estatuído entre os arts. 676.º a 691.º, muito embora refira-se expressamente apenas aos institutos da assistência e da salvação e não atribua a esperada autonomização formal aos achados no mar[14].

Convém ressaltar desde já que, no art. 679.º, as referências a “navios encalhados, em perigo ou naufragados, assim como das fazendas arrojadas à costa” trazem o objeto de estudo jurídico dos bens naufragados ou achados no mar para o CCom. Trata-se dos navios naufragados inavegáveis sem identidade material, e seus fragmentos, e das fazendas arrojadas às costas.

Para Matos, esses bens referidos no CCom seriam chamados juridicamente de épaves, quer dizer, cargas que se teriam quebrados os laços que as ligavam ao navio, e flutuaram abandonadas, no todo ou em parte. Acrescenta ainda o autor que também são épaves “os navios destroçados e inavegáveis, os objetos da carga, flutuando, as coisas móveis, não pertencentes àqueles ou a estes, abandonados ou arrojados à costa”. Inobstante isto, este mesmo autor considera-os todos como objetos de salvação ou assistência[15].

Mota Pinto alude que a recolha de achados não se encontra explicitamente regulamentada no CCom, remetendo-a à salvação e à assistência, sendo tal regulamentação feita de forma direta nos 697.º e ss. do Regulamento das Alfândegas[16], analisado abaixo no Subitem 4.2.1.

Pode-se ressaltar o fato de o CCom clarificar a ilicitude de as embarcações naufragadas, seus fragmentos, carga ou quaisquer fazendas ou objetos de domínio particular serem apropriados pela ocupação, imposição negativa disposta pelo art. 676.º[17]. Esta é uma exceção, ressalvada pelo art. 428.º, à regra geral do CC/1867[18], que, a propósito da ocupação das embarcações e de outros objetos naufragados, remeteu ao Código Comercial então vigente, tudo que dizia respeito à carga ou a quaisquer objetos de domínio particular que o mar arroje às costas, ou que forem achados no alto mar.

Por oportuno, deve-se esclarecer que o instituto da ocupação era uma das formas de aquisição da propriedade, quando bens semoventes e coisas móveis não têm dono, são abandonados, perdidos, extraviados ou escondidos por seu proprietário, de acordo com as disposições dos arts. 404.º a 427.º do CC/1867. Este instituto se mantem no Código Civil (CCiv) atual, na redação do art. 1318.º[19].

Com efeito, a propriedade dos bens achados no mar ou naufragados é, à partida, do proprietário original do navio ou das fazendas a bordo, à influência do Código Comercial anterior, trazendo procedimentos semelhantes a que este proprietário possa recuperar seus objetos ou o produto de sua venda.

Assim, o proprietário poderia reaver os bens naufragados no prazo de oito dias da data do achado, após serem inventariados e anunciados pela autoridade de fiscalização, prestando a devida caução das despesas e remuneração, consoante os arts. 677.º e 679.º. Durante este período, os bens perecíveis eram vendidos e o produto apurado.

Passado o prazo acima, não aparecendo os reclamantes, os bens restantes, levados à leilão, tinham o produto da venda, em conjunto com o produto apurado anterior, depositados na Caixa Geral de Depósito (CGD), descontadas as remunerações e despesas dos achados no mar, segundo o art. 680.º, §2.º.

No entanto, não havia menção ao prazo prescricional do direito de reclamar judicialmente por parte do pretenso proprietário, o que podia ser remetido à aplicação da regra do art. 535.º, CC/1867, conforme mencionado no Subitem anterior. Outra alternativa, aduzida por Cunha Gonçalves, seria a aplicação do regulamento especial da CGD[20]. 

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4.2.    REGIME JURÍDICO VIGENTE 

Na legislação portuguesa atual, os bens naufragados ou os arrojos e achados no mar encontram abrigo no Decreto n.º 31.730/1941, de 15 de dezembro – Regulamento das Alfândegas (RA); no DL n.º 416/1970, de 01 de setembro; no DL n.º 265/72, de 31 de julho – Regulamento Geral das Capitanias (RGC); no DL n.º 164/1997, de 27 de junho; no DL n.º 203/1998, de 10 de julho – Lei da Salvação Marítima (LSM); Decreto Lei n.º 64/2005, de 15 de março. Estes Regimes são a seguir considerados. 

4.2.1. Regulamento das Alfândegas (RA) 

O Regulamento das Alfândegas, aprovado pelo Decreto n.º 31.730/1941, de 15 de dezembro, regulou de forma autônoma da salvação e da assistência a matéria dos “sinistros marítimos e aéreos, dos achados, e dos arrojos”. Houve equiparação, como no CCom, dos achados no mar com os arrojos ou objetos encontrados na costa, e há a obrigação da restituição da coisa achada ao seu proprietário, por meio do art. 687.º, §5.º, dispositivo do Título V, Livro VI[21].

Pode-se perceber que houve no RA um maior detalhamento dos procedimentos estabelecidos no CCom sobre a matéria, sobretudo quando o art. 687.º, §8.º, a remete, para melhor tratamento, ao Título IV, que estatui a venda das mercadorias em hasta pública pela autoridade aduaneira, especialmente “as mercadorias achadas no mar ou por ele arrojadas” previstas nos art. 638.º, n.º 3, e ainda nos arts. 642.º, 673.º e 676.º deste Título.

Com relação à propriedade dos bens achados no mar, estes pertencem ao proprietário original, que, em um prazo não inferior a oito dias, quer dizer, após inventário e anúncios dos achados, podem reclamar o bem junto à autoridade alfandegária, prestando a devida caução dos encargos, pagamento do achador, direitos e imposições legais, conforme os arts. 684.º e 685.º deste Diploma legal.

Convém assinalar que, na redação original do art. 687.º, §5.º, do RA, foi prevista uma retribuição de um terço do valor dos achados ou do produto da arrematação para o achador[22]. Contudo, este valor foi alterado pelo DL n.º 464/1970, de 9 de outubro, de maneira a retribuir o achador com uma quantia não superior à metade do valor do achado ou do produto da arrematação.

O RA também prevê em seu art. 687.º, §9.º, que a procura dos objetos do fundo mar necessita de concessão do poder público, no caso, da Capitania dos Portos, depois do visto da autoridade aduaneira – ou seja, depreende-se que estes bens pertencem ao Estado –, e que a remuneração para o achador concessionário, fixada por este órgão, pode variar entre um terço e metade do valor do achado, podendo o ministro da Marinha fixar valor maior a depender das circunstâncias.

Cabe evidenciar o parágrafo 10.º do artigo supracitado, acrescentado pelo DL n.º 464/1970, a preceituar que os peixes achados mortos no mar ou por ele arrojados são de propriedade do achador. Esta espécie de ocupação é compreensível, porquanto estes bens, na maior das vezes provenientes de barcos pesqueiros naufragados, são por demais perecíveis, não havendo tempo hábil a procedimentos administrativos para venda em hasta pública e/ou reclamação do dono original.

Em uma forma de delimitação negativa[23], o art. 688.º prever que as embarcações nacionais e seus pertences, com dono conhecido, os ferros, âncoras, amarras, boias, gatas, fateixas, e todo material de natureza militar, atestada pela autoridade marítima, não são considerados achados ou arrojos. Aqui, o dispositivo, apesar de os efeitos serem apenas aduaneiros e de o navio e seus pertences terem dono conhecido, afasta a salvação dos achados do mar por meio de critério referente ao objeto[24].

A exemplo do CCom, o RA não esclarece acerca do prazo prescricional para a reclamação judicial por parte do pretenso proprietário, depois de os bens serem vendidos em hasta pública, valendo aqui as mesmas observações feitas no Subitem anterior. 

4.2.2. Decreto Lei n.º 416/1970, de 01 de setembro 

Este Instrumento, com as alterações do DL n.º 577/1976, de 21 de julho, trata dos objetos sem dono conhecido, é dizer, dos objetos que não forem recuperados pelo dono em até cinco anos contando da data em que perdeu, ou deles se separou por algum modo. Tais objetos constituem propriedade do Estado, e incluem os achados no mar, no fundo do mar ou arrojados por este, sendo despojos de naufrágios de navios, de aeronaves ou de qualquer material flutuante e fragmentos de quaisquer deles ou de suas cargas e equipamentos, os quais, do ponto de vista científico, arqueológico, artístico ou outro, tenham algum interesse para o Estado[25], conforme se depreende do art. 1.º.

Assim, configura-se uma maneira autônoma de aquisição de propriedade para o Estado e não para a pessoa do achador, embora este mereça uma proporção de um terço à metade do valor do achado[26], a ser fixada pelo Ministro da Marinha, sob proposta da Capitania do porto.

Por outro lado, de modo negativo, se deduz que os bens achados, com donos conhecidos e que sejam reclamados em até cinco anos permanecerão de propriedade do titular original, deduzidos os valores do pagamento ao achador e das despesas.

Convém frisar neste passo que a recuperação de objetos no fundo mar, “incluindo achados de despojos de naufrágios de navios, de aeronaves, ou de qualquer material flutuante, e de fragmentos de quaisquer deles ou de suas cargas e equipamentos” necessita de licença da Capitania dos portos e visto da autoridade aduaneira, segundo a art. 7.º do referido Diploma, a exemplo do que prevê o RA. Esta licença tem a validade compreendida no ano civil, podendo ser prorrogada.

Relevante esclarecer que esta Lei impõe, em seu art. 8.º, ao Ministro da Marinha, vedar a licença a particulares ou ao concessionário sem reconhecida idoneidade, quanto à exploração dos objetos mencionados acima, em qualquer área do fundo do mar em que Portugal tenha soberania.

Acrescenta-se que, após a vigência do DL n.º 416/1970, depreende-se que ao RA é aplicado aos bens sem valor cultural ou aos quais, mesmo tendo este valor, o dono o recupere em um quinquênio[27].

Outrossim, Aureliano ressalva que esse Decreto Lei foi revogado tacitamente pelo DL n.º 289/1993, de 21 de agosto, que por sua vez foi revogado expressamente pelo DL n.º 164/1997, de 27 de julho, constando hoje o regime aplicado aos objetos de valor cultural achados no mar, no subsolo marinho ou arrojados à costa[28]. 

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4.2.3. Regulamento Geral das Capitanias (RGC) 

O Decreto Lei n.º 265/1972, de 31 de julho, concebe o RGC e regulamenta os “objetos achados no mar” em seu Capítulo X, nos arts. 185.º e seguintes. Aqui, o regime refere-se aos objetos achados no mar, no fundo do mar ou por este arrojados.

Os art. 188.º a 193.º dispõem acerca dos achados de natureza militar. Assim, qualquer achado deve ser comunicado em 48 horas à Capitania do porto com jurisdição no local, sob pena de o achador perder o direito à sua retribuição. O achador não deve de maneira alguma manusear um achado desta natureza, até por questão de segurança.

Cumpre frisar que qualquer achado no mar de natureza militar, após identificados e tornados inertes pelo órgão naval, podem ser destruídos, aproveitados pela Marinha, ser entregue ao Exército ou à Força Aérea, ou até às autoridades aduaneiras, neste caso, se tratar-se de material não militar, de acordo com o art. 192.º.

Pode-se perceber que a propriedade do achado de natureza militar será sempre do Estado, cabendo ao respectivo órgão militar proceder o pagamento da compensação ao achador, segundo depreende-se do art. 192.º, n.º 2. Deve-se concluir ainda que a proporção da compensação do achador será da mesma forma que a prevista no DL n.º 416/1970, uma vez que o art. 185.º do RGC alerta que este regime é complementar àquele.

Quanto aos bens denominados “ferros perdidos” na forma prevista do art. 194.º ao 203.º do RGC, estão delimitados como objetos náuticos do sistema de amarração e ancoragem da embarcação, compostos por ferros, âncoras, amarras, boias, poitas, gatas, ancorotes e fateixas, conforme dispõe o n.º 5 do art. 194.º, e pertencem ao dono original. Porém, o mesmo artigo prevê que o comandante da embarcação deve comunicar por escrito à autoridade marítima, num prazo de oito dias, a perda do “ferro”. Este registro de comunicação, prescrito no n.º 3 do art. 194.º, é imprescindível, pois o objeto achado cuja perda antes não tenha sido comunicada será considerado de propriedade do Estado.

Ademais, o “ferro perdido” pode ser rocegado, isto é, buscado no fundo com uso de cabo, draga ou grateia[29], e, para tal, é necessária uma licença que pode ser concedida pela autoridade marítima, consoante o registro de comunicação referido acima, dispõe o art. 195.º do RGC. Ressalva-se que os ferros perdidos por navios da Armada ou outras embarcações do Estado podem ser rocegados sem necessidade de licença.

O proprietário do objeto registrado achado por outrem tem o direito de propriedade perdido em favor do Estado, se não pagar a compensação de um terço do valor do achado ao achador e despesas incorridas, num prazo de 90 dias. Neste caso, o Estado tem 60 dias para proceder o pagamento devido. Também perde a propriedade em favor do Estado o proprietário cuja perda não tenha sido registrada na autoridade marítima, segundo os arts. 200.º e 202.º do RGC. 

4.2.4. Decreto Lei n.º 164/1997, de 27 de julho 

Este Regime jurídico visa a tutelar o “patrimônio cultural subaquático”, assim assinalado, composto “por todos os bens móveis ou imóveis e zonas envolventes, testemunhos de uma presença humana, possuidores de valor histórico, artístico ou científico, situados, inteiramente ou em parte, em meio subaquático”, conforme dispõe o art. 1.º.

Esses bens, considerados arqueológicos subaquáticos, são de propriedade do Estado, na medida em que não possuem proprietário conhecido ou que os bens não sejam recuperados pelo dono em até cinco anos a contar da data do perdimento[30], de modo similar ao definido pelo DL n.º 416/1970.

Por exclusão, se deduz que os bens achados dessa natureza, com donos conhecidos e que sejam reclamados em até cinco anos permanecerá de propriedade do dono original, deduzidos os valores da recompensa ao achador e das despesas.

O achador aqui tem direito à recompensa no montante equivalente à metade do valor do achado fortuito dos bens objetos deste Diploma, os quais venham a ser inventariados. Se os achados forem um complexo arqueológico, o valor cultural será avaliado pelo Instituto Português de Arqueologia (IPA), caso em que ao achador caberá recompensa proporcional a este valor, de acordo com tabela aprovada pelos Ministros da Finanças e Cultura (arts. 16.º e 17.º do DL n.º 164/1997).

Cabe frisar ainda que este Normativo preenche com maior precisão e detalhe, no âmbito interno, a disposição da CNUDM de 1982, Convenção de Montego Bay, em seu art. 303.º, n.º 1, que estatui: “Os Estados têm o dever de proteger os objectos de carácter arqueológico e histórico achados no mar e devem cooperar para esse fim”, conforme será analisado no Subitem 5.2. 

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4.2.5. Lei da Salvação Marítima (LSM) 

A LSM, aprovada pelo Decreto Lei n.º 203/1998, de 10 de julho, veio substituir o regime da salvação marítima disciplinado no CCom, em seus arts. 676.º a 691.º, os quais foram revogados. Tal fato decorre da entrada em vigor da Convenção Internacional de Londres sobre Salvação Marítima (CLSalv), de 1989, segundo o §1.º do preâmbulo da LSM, em que pese Portugal não ser signatário.

Entretanto, a propósito deste estudo, a LSM limitou-se mormente ao art. 12.º, em que trata nomeadamente das “embarcações ou outros bem naufragados”. A exemplo do art. 676.º do CCom, traz a imposição negativa de que “embarcações naufragadas, seus fragmentos, carga ou quaisquer bens que o mar arrojar às costas ou sejam nele encontrados” não podem ter suas propriedades adquiridas por ocupação.

O art. 12.º, n.º 2, da LSM ainda ressalta a obrigatoriedade de o achador entregar os bens ao proprietário ou representante legal, sob pena de perder o direito de “salário de salvação marítima” e de outras sanções correspondentes ao fato.

Assim, a propriedade é do dono original, como já determinava o CCom. Contudo, o Normativo se absteve de autonomizar os achados no mar frente à salvação marítima, situação tão necessária quanto importante pelo seu efeito prático de determinar se há, em benefício do achador, salário ou percentual do valor do achado, conforme já demonstrava Mota Pinto[31] em seu parecer acatado no âmbito do processo n.º 061841, tramitado até o Supremo Tribunal de Justiça (STJ), cujo acórdão foi publicado em 03/11/1967[32].

Segundo Aureliano, esta Norma condensa num único dispositivo a referência aos achados, distanciando-se da salvação marítima. Isto ocorre devido à atribuição de um direito de retenção a incidir sobre as coisas salvas ao salvador, consoante o art. 14.º, favorecendo a não colisão por meio de uma exigível delimitação das figuras a que se destinam[33].

Em tom mais crítico, Mario Raposo diz que deveriam ter sido acolhidos os arts. 677.º ao 680.º do CCom, não os sendo porque tal inviabilizaria o “direito de retenção”, acrescentando que “apenas se compreenderá uma norma como a do art. 14.º da LSM quanto a embarcações abandonadas e a outros bens encontrados no mar ou nas costas.”[34].

Com efeito, é justificável ao operador do direito concluir que, para os bens naufragados, incluindo as embarcações que perderam simultaneamente a navegabilidade e a sua identidade material[35], salvador e salvado, no contexto do art. 12.º, referem respectivamente ao achador e ao achado. 

4.2.6. Decreto Lei n.º 64/2005, de 15 de março 

Este Decreto Lei tem como objetivo regular a remoção de destroços no mar de navios encalhados ou afundados, que cause prejuízo à navegação ou ao porto, bem assim ao meio ambiente. Tal obrigação é do proprietário, armador ou representante legal do navio, assumindo todos as despesas da operação, segundo reza o art. 1.º.

Mas o que seria destroços de navio? Este Normativo não deixa claro, mas Cláudia Madaleno sustenta que para um objeto ser considerado um destroço de navio, seriam necessários os três seguintes requisitos: 

(i) pelo menos em tempos e antes de se apresentar nesse estado, se tivesse tratado de um navio;

(ii) o qual tenha sido abandonado, de modo que nem o proprietário nem a tripulação tenham o seu controlo ou vigilância, sendo que a presença de um só tripulante a bordo ou uma vigilância exercida a partir de terra afasta a qualificação como destroço;

(iii) e ainda que esse abandono decorra do facto de o navio se encontrar em estado de inavegabilidade, no sentido comum do termo, isto é, inapto para, ainda que seja rebocado, prosseguir em segurança a viagem[36]

Para o processo de remoção do navio ou destroços, os responsáveis devem prestar à autoridade marítima garantia ou caução, a qual será devolvida um dia após a remoção, além de apresentar um plano de remoção em até trinta dias (art. 3.º, n.º 1, a e b, do DL n.º 64/2005).

Caso o proprietário da carga reivindique a sua recuperação, será necessária a apresentação do respectivo título de propriedade ou de autorização do armador do navio em sinistro, sem prejuízo do pagamento integral da dívida pela remoção do navio e da carga (art. 3.º, n.º 1, d).

Se o proprietário da carga ou o carregador não fizer a reivindicação da carga ou não apresentação da documentação referida, a propriedade da carga será perdida para o Estado (art. 3.º, n.º 1, e). Com elação aos navios estrangeiros abandonados, todas diligências internas serão comunicadas ao Estado de Bandeira para providências.

Em se tratando de risco elevado de ocorrência de poluição, caso a remoção não seja imediatamente realizada, há possibilidade de o Estado agir diretamente para retirada das substâncias perigosas, por meio de entidade idônea contratada, como prevê o art. 7.º[37]. Todas as despesas aqui correm por conta do proprietário e armador, solidariamente responsáveis, por força do art. 9.º.

Além disso, o art. 8.º dispõe acerca do abandono do navio, que assim é tratado, quando estiver à deriva por mais de trinta dias, mesmo que não tenha ocorrido nenhum acontecimento de mar. Assim, o navio será vendido sobre a coordenação das autoridades alfandegárias, segundo as regras do art. 814.º do Código de Processo Civil (CPC) acerca da venda antecipada em processo de execução.

No silêncio do Decreto Lei, depreende-se que o produto da venda passa a ser de propriedade do Estado, descontadas a compensação ao achador, as despesas de remoção e administrativas, nada obstante a revogação do art. 17.º, n.º 3, do DL nº 202/1998, de 10 de julho, que previa a propriedade do Estado no caso de o navio ser considerado abandonado. 

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5.       REGIME CONVENCIONAL RATIFICADO POR PORTUGAL 

A seguir são analisados os Instrumentos internacionais adotados por Portugal: Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar (CNUDM), de 1982, ou Convenção de Montego Bay; Convenção da Unesco sobre a Proteção do Patrimônio Cultural Subaquático (CPPCS), de 2001; e Convenção Internacional de Nairóbi sobre a Remoção de Destroços, de 2007, ou Convenção de Nairóbi. 

5.1.    CONVENÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS SOBRE O DIREITO DO MAR (CNUDM) DE 1982 (CONVENÇÃO DE MONTEGO BAY) 

No que se refere ao objeto de análise do presente estudo, este importante Instrumento internacional dedica o seu art. 303.º, para tratar dos achados no mar de caráter arqueológico e históricos.

O mencionado artigo, em seu n.º 2, expande a proteção dos objetos de valor histórico e arqueológico, achados no fundo do mar até a zona contígua do art. 33.º, informando que sua remoção sem autorização do Estado português constitui infração nos moldes da cometida no seu território ou mar territorial.

Verifica-se que a CNUDM mantém o direito dos proprietários conhecidos dos achados no mar conforme dispõe o n.º 3 do art. 303.º, numa abordagem muito próxima ao que previa o DL n.º 416/1970, então vigente, e o DL n.º 164/1997. A novidade aqui é que a área de aplicação deste regime inclui a zona contígua, que se estende até 24 milhas marítimas das linhas de base da costa. 

5.2.    CONVENÇÃO DA UNESCO SOBRE A PROTEÇÃO DO PATRIMÔNIO CULTURAL SUBAQUÁTICO (CPPCS) DE 2001 

Para os países signatários da Convenção da Unesco sobre a Proteção do Patrimônio Cultural Subaquático (CPPCS), estão sob tutela deste Instrumento, como define o seu art. 1.°, os bens submersos há pelo menos cem anos e que representem, de alguma ordem, vestígios da existência humana, sejam de caráter cultural, histórico ou arqueológico. Estes bens pertencem à humanidade e permanecerão, após encontrados e salvados, sob custódia do Estado Parte.

Vigente em Portugal desde 02 de janeiro de 2009, e dada a relevância que pode existir do patrimônio cultural subaquático para humanidade, a Convenção ressalva em seu art. 4.º que nenhuma atividade referente a este património a que seja aplicável esta Convenção estará sujeita às leis relativas a salvados ou achados, a menos que: i) haja autorização das autoridades competentes; ii) haja conformidade com esta Convenção; e iii) mantenha a proteção máxima do património cultural subaquático em qualquer fase da operação de recuperação.

No seu art. 7.º, dispõe que o Estado tem o direito exclusivo ao uso de sua soberania e de aplicar a sua legislação interna nas águas interiores e arquipelágicas, bem como no mar territorial.

Além disso, conforme seus arts. 8.º, 10.º e 12.º, estende a área de aplicação da jurisdição de Portugal à zona contígua, à Zona Econômica Exclusiva (ZEE) e à Plataforma Continental (PC) e à Área. No entanto, como foi mencionado, o patrimônio é da humanidade, inobstante a custódia do Estado. 

5.3.    CONVENÇÃO INTERNACIONAL DE NAIRÓBI SOBRE A REMOÇÃO DE DESTROÇOS DE 2007 (DEC. N.º 28/2017, DE 25 DE AGOSTO) 

Esta Convenção tem a finalidade de estabelecer um regime jurídico internacionalmente uniforme, relativamente à remoção de destroços no mar, tendo em conta a tutela dos Estados afetados[38]. Desde que estes destroços se localizem na área estabelecida na Convenção, tenham sido decorrentes de acidentes marítimos e representem risco à navegação ou ao meio ambiente marinho.

Como se depreende do art. 1.º, n.º 2, a a d, os destroços são entendidos como navio ou seu fragmento, afundado ou encalhado; qualquer objeto perdido, afundado, encalhado ou à deriva no mar, proveniente do navio; e o próprio navio que esteja prestes a afundar ou encalhar, quando medidas para o assistir ainda não tenham sido tomadas.

Quanto à esta última definição, não cabe ao navio que ainda estiver sob o controle do proprietário ou seu preposto, com mera inavegabilidade relativa, no sentido de que ainda seja possível a sua salvação, ser considerado um destroço[39].

A área geográfica de aplicação estabelecida na Convenção refere à ZEE e, eventualmente, às águas territoriais do Estado afetado, conforme restou facultado pelo n.º 2 do art. 3.º. Com efeito, Portugal, ao ratificar este regime jurídico internacional, decidiu estender a sua aplicação aos destroços localizados no seu território, incluindo o mar territorial, observado o n.º 4 do art. 4.º, sem prejuízo dos direitos e deveres do País, os quais não serão prejudicados, segundo o parágrafo 6.º do Dec. n.º 28/2017.

Em relação à propriedade, os destroços não pertencem ao achador, que tem o dever de comunicar o ocorrido às autoridades do Estado afetado para que se possam proceder a proteção, determinação do risco, sinalização e providencias de remoção junto ao proprietário. A propriedade mantém-se com seu titular original, quer dizer, com aquele que detinha o direito de propriedade logo antes da alteração material da coisa para destroços[40].

Nesse sentido, o proprietário, mesmo que não cumpra com a obrigação de remover os destroços, pode reivindicá-los às autoridades. No entanto, se não o fizer, no prazo estabelecido pelo Estado afetado, deverá pagar as despesas, podendo até perder o direito de propriedade para o Estado[41].

Deve-se lembrar que o prazo para que o Estado afetado recupere os custos operacionais de todos os procedimentos até a remoção, diante da inércia do proprietário, é de três anos após a determinação do perigo, e de no máximo seis anos depois do acidente marítimo do qual resultaram os destroços, sob pena de prescrição[42].

Ressalta-se, por fim, que em face do valor supralegal dos regimes internacionais sobre a legislação infraconstitucional portuguesa[43], ao regime jurídico do DL n.º 64/2005 restou uma aplicação supletiva, após a entrada em vigor da Convenção de Nairóbi, em 25 de agosto de 2017, pois Portugal estendeu o alcance deste documento aos mares interiores e ao mar territorial, conforme mencionado acima. 

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6.       CONCLUSÃO 

Diante do exposto, ao intérprete jurídico não é tão simples determinar a legislação aplicável aos bens naufragados, sejam estes considerados do ponto de vista da propriedade: bens com dono conhecido ou desconhecido, do Estado ou do achador; da localização: achados no mar, no fundo do mar, próximo ao porto ou arrojados à costa, encontrados nos mares interiores, no mar territorial, na zona contígua, na ZEE ou na PC; quanto da ótica do conteúdo: objetos, ferros perdidos, navios naufragados inavegáveis e sem identidade material, seus fragmentos, destroços, cargas ou fazendas; do ponto de vista do patrimônio cultural subaquático: bens históricos, artísticos, científicos, arqueológicos ou sem valor cultural; ou ainda sob o ângulo da natureza militar: objetos, artefatos ou seus fragmentos.

Entretanto, da análise do arcabouço normativo enfrentado, consegue-se vislumbrar os regimes internos atualmente aplicáveis. Logo, verifica-se que o DL n.º 164/1997 abrange toda a matéria do DL n.º 416/1970, é dizer, o patrimônio cultural subaquático, incluindo o arqueológico, o que se constitui uma revogação tácita deste Normativo. Este patrimônio cultural pertence ao Estado, se não for recuperado pelo proprietário original em um quinquênio.

Além disso, ao RA e ao art. 12.º da LSM são subsumidos os bens naufragados sem valor cultural, os que, mesmo tendo este valor, o dono conhecido o recupere em um quinquênio, ou ainda os ferros perdidos de natureza não militar, pertencentes ao dono original; ao RGC, arts. 188.º a 203.º, são submetidos os bens achados de natureza militar, de propriedade do Estado. Nos âmbitos operacional de navegação e de proteção ambiental, ao DL n.º 64/2005 estão subsumidos os destroços de navios e de suas cargas, que podem ser reivindicados por seu proprietário em até trinta dias do acontecimento no mar ou do seu abandono. Decorrido este prazo, os destroços serão vendidos e seu produto pertencerá ao Estado.

No entanto, ao regime jurídico do DL n.º 64/2005 restou uma aplicação supletiva, tendo em vista que a Convenção de Nairóbi de 2007, a viger a partir de 25 de agosto de 2017, alcança as áreas dos mares interiores e territorial portugueses, além da ZEE.

A Convenção de Montego Bay, dado o pouco aprofundamento dispensado à matéria dos achados arqueológicos e históricos, não substitui o DL n.º 164/1997. A novidade é que inclui a zona contígua como área de proteção aos referidos achados no fundo do mar. Já a CPPCS impõe a proteção ao patrimônio cultural subaquático submerso há pelo menos cem anos na zona contígua, ZEE, PC e Área, pertencendo este patrimônio à humanidade, mas sob custódia do Estado.

Considerando que na Idade Média, com o Ius Naufragii, a propriedade dos bens naufragados no mar pertencia ao Estado, sendo imputada até imolação ou escravidão aos náufragos como punição, constata-se que a propriedade dos bens achados no mar tende a permanecer com o seu titular original, na medida em que os regimes jurídicos se modernizam, salvo quando não se lhe possa conhecer ou quando há interesse público, de caráter militar ou cultural, incluído o arqueológico. Por fim, em todos os normativos, ao achador é garantido uma recompensa, que varia de um terço à metade do bem encontrado, com exceção das Convenções CNUDM e CPPCS, que sobre este aspecto silenciam.  

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REFERÊNCIAS

DOUTRINA 

AURELIANO, N. A salvação marítima. Coimbra: Almedina, 2006. 

CANOTILHO, J. J. G.; MOREIRA, V. Constituição da República Portuguesa anotada. 4. ed., Coimbra: Coimbra Editora, v. I, 2007. 

GOMES, M. J. C. A pirataria marítima e o Direito: breves notas. In Estudos de homenagem ao Prof. Doutor Jorge Miranda. Coimbra: Coimbra Editora, v. V, p. 627-645, ago. 2012. 

GOMES, M. J. C. O ensino do Direito Marítimo: o soltar das amarras do Direito da Navegação Marítima. Coimbra: Almedina, 2005. 

GONÇALVES, L. C. Comentário ao Código Comercial português. Lisboa: Empresa Editora José Bastos, v. III, 1918. 

MADALENO, C. A convenção de Nairóbi sobre destroços de navios. In GOMES, M. J. C. II Jornadas de Lisboa de Direito Marítimo. Coimbra: Almedina, p. 365-411, 2012. 

MATOS, A. Princípios de Direto Marítimo III: dos acontecimentos do mar. Lisboa: Edições Ática, v. III, 1958. 

MOTA PINTO, C. A. Acerca da distinção, em Direito Marítimo, entre salvação, assistência de navios e recolha de achados. In Revista de Direito e de Estudos Sociais - RDES. Lisboa: Atlântida Editora, ano XV, n. 1-2, jan.-jun. 1968. 

RAPOSO, M. Estudos sobre o novo Direito Marítimo: realidades internacionais e portuguesa. Coimbra: Coimbra Editora, 1999.

 

JURISPRUDÊNCIA 

PORTUGAL. Processo 061841 (sumário). Acórdão de 03 de novembro de 1967. Supremo Tribunal de Justiça (STJ). Lisboa, 1967. Disponível em: http://www.dgsi.pt/. Acesso em: 23/08/2023.



[1] Autores: Marcos T. A. de Sousa, graduado em Direito e em Matemática e pós-graduado em Engenharia de Sistemas, todos pela UFRN, Advogado; Maria J. M. de Sousa, graduada em Direito e em Letras e pós-graduada em Direito Constitucional e em Educação, todos pela UFRN, Advogada.

[2] MADALENO, 2012, p. 366.

[3] Para mais detalhes, ibidem, p. 374.

[4] AURELIANO, 2006, p. 97.

[5] MOTA PINTO, 1968, p. 229.

[6] GONÇALVES, 1918, p. 473.

[7] AURELIANO, op. cit., p. 22-23; cf. também a questão da “sorte dos náufragos em caso de naufrágio” em GOMES, 2005, p. 320.

[8] GOMES, op. cit., p. 44 e 49.

[9] AURELIANO, op. cit., p. 27.

[10] GOMES, 2012, p. 628-629.

[11] AURELIANO, op. cit., p. 28. 

[12] Ibidem; cf. ainda a este respeito GONÇALVES, op. cit., p. 473.

[13] Conforme o preceituado neste artigo do CC/1867, “Aquelle, que se achar constituído para com outrem na obrigação de prestar, ou fazer alguma cousa, póde livrar-se dessa obrigação, se não tiver sido exigida por espaço de vinte annos, e o devedor se achar em boa fé, quando findar o tempo da prescripção: ou por trinta anos, sem distincção de boa ou má fé, salvo nos casos em que a lei estabelecer prescripções especiaes”.

[14] AURELIANO, op. cit., p. 90.

[15] MATOS, 1958, p. 182.

[16] MOTA PINTO, op. cit., p. 223.

[17] MADALENO, op. cit., nota de rodapé 18, p. 371.

[18] GONÇALVES, op. cit., p. 473.

[19] CCiv, art. 1318.º – “Suscetibilidade de ocupação                                                                                  Podem ser adquiridos por ocupação os animais e as coisas móveis que nunca tiveram dono, ou foram abandonados, perdidos ou escondidos pelos seus proprietários, salvas as restrições dos artigos seguintes.”

[20] GONÇALVES, op. cit., p. 474-475.

[21] AURELIANO, op. cit., p. 91.

[22] Cf. também em MATOS, op. cit., p. 185.

[23] GOMES, op. cit., p. 390.

[24] AURELIANO, op. cit., nota rodapé 172, p. 92.

[25] Para mais detalhes, consultar MADALENO, op. cit., nota de rodapé 17, p. 371.

[26] AURELIANO, op. cit., p. 92.

[27] Ibidem, p. 93.

[28] Ibidem, p. 94.

[29] Conforme o dicionário Priberam: https://dicionario.priberam.org/rocegar.

[30] MADALENO, op. cit., p. 378.

[31] MOTA PINTO, op. cit., p. 223.

[32] PORTUGAL, 1967; para mais detalhes, cf. acórdão acostado em MOTA PINTO, op. cit., p. 213-220.

[33] AURELIANO, op. cit., p. 96.

[34] RAPOSO, 1999, p. 28-29.

[35] MADALENO, op. cit., p. 377.

[36] Ibidem, p. 391.

[37] Cf. também em MADALENO, op. cit., p. 381.

[38] Ibidem, p. 398.

[39] Cf. ainda em MADALENO, op. cit., p. 394.

[40] Ibidem, p. 396.

[41] Ibidem.

[42] Ibidem, p. 409-410.

[43] CANOTILHO; MOREIRA, 2007, p. 240.

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