Série acadêmica
Fichamento do texto: "Limites dos e colisões entre
direitos fundamentais”, p. 129-166, In: DIMOULIS,
Dimitri; MARTINS, Leonardo. Teoria geral dos direitos fundamentais.
3. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011.
LIMITES
DOS E COLISÕES ENTRE DIREITOS FUNDAMENTAIS
Introdução
Os autores indagam: “Sob quais condições,
em quais situações e quem pode restringir um direito fundamental de forma
lícita?” e argumentam que “estudar os direitos fundamentais significa estudar
suas limitações” (p. 130).
A presença de um impedimento ou
intervenção estatal em face do exercício do direito fundamental e a origem da
aludida intervenção decorrente de norma de grau inferior à constituição são
condições que, se reunidas, fazem os direitos fundamentais adquirir relevo,
instalando-se uma situação de conflito com a seguinte dinâmica: T é o titular de um direito fundamental;
E1 – Legislador, Administração
Pública direta ou indireta ou Poder Judiciário – impede o exercício do
direito por meio de ação ou omissão; T
protesta; E1 responde “a lei não
permite o exercício do direito”; T
assevera que a referida lei infringe a Constituição; E1 discorda; E2 – um tribunal responsável pelo
controle de constitucionalidade – “decidirá se a lei em questão ou sua
interpretação/aplicação por E1,
viola a Constituição e, consequentemente, se T pode concretamente exercer o direito” (p. 130).
Assim, pode-se dizer que “o estudo dos
direitos fundamentais equivale ao estudo e tentativa de solução dos conflitos
entre direitos fundamentais e outros bens jurídicos direta (bem
jurídico-constitucional) ou indiretamente (reserva legal simples) protegidos
pela Constituição ou conflitos de direitos fundamentais entre si (colisão de
direitos fundamentais)” (p. 132).
Conceitos básicos
Área de
regulamentação de um direito fundamental
Esta área é composta de dois elementos: a
descrição da situação fática da vida social regulada pela norma, como viver ou comunicar-se
à distância; e a decisão genérica do constituinte de que essa situação real
deve ser respeitada, no que se refere à vida, ou deve-se realizar em
circunstância de liberdade e privacidade, no que tange à comunicação. O Estado
é o destinatário primordial dessa norma de “dever ser” (p.133).
Área de
proteção
Quando o constituinte retira daquela
situação fática sobre a qual incide a norma – área de regulamentação –
uma conduta ou situação não considerada pela mesma norma, geralmente
usando as expressões “salvo se”, “a não ser que”, “sendo vedado”.
A compreensão e distinção dessas duas
áreas permitem ao operador do direito saber se um titular de um direito
regulamentado pela Constituição também está protegido.
Exercício
do direito
O exame da violação de um direito
fundamental pelo Estado pressupõe analisar se o titular tentou exercê-lo efetivamente,
por meio do controle concreto de constitucionalidade da conduta estatal, ou
potencialmente, por intermédio do controle abstrato; permitindo a liberdade do
exercício positivo efetivo ou potencial.
O direito também pode ser exercido de
maneira negativa, valendo-se o seu titular da abstenção, constituindo-se, portanto,
em transgressão do direito quando alguém o obriga a fazer algo que a
Constituição não estabelece.
A desistência do exercício do direito é
possível e, se não for restrito a um evento, pode tratar-se de “uma renúncia ao
direito fundamental” (p. 136).
Porém, há poucas situações nas quais o exercício
do direito deixa de ser faculdade do titular, passando a ser um dever de
exercício, não contendo a liberdade de exercício negativo, a exemplo do sufrágio
obrigatório.
Intervenção
na área de proteção do direito
Conceito e desenvolvimento de seu
papel dogmático
A intervenção na área de proteção de um
direito fundamental dá-se no contexto das tarefas e funções estatais de
disciplinar a vida em sociedade e da reflexividade das normas que definem os
direitos fundamentais. Reflexivas por haver identidade entre o criador e a
criatura, que é o Estado.
Numa situação de conflito, tem-se um
triângulo formado pelo Estado e pelo menos dois interessados opostos,
podendo-se falar em dupla reflexividade, pois “tem como início e como ponto de
chegada o choque de interesses causado pela concretização de direitos
fundamentais” pela declaração de constitucionalidade ou inconstitucionalidade
da medida regulamentar (p. 138).
Define-se, então, a referida intervenção
como uma ação ou omissão estatal que: “(a) impossibilite, em parte ou
totalmente, um comportamento correspondente a um direito fundamental
(comportamento abrangido pela área de proteção do referido direito); e (b)
ligue ao seu exercício uma consequência jurídica negativa mediante uma proibição
acompanhada de sanção” (p. 140).
Tradicionalmente, a intervenção na área
de proteção reunia quatro requisitos em seu conceito: era final, intencional e
não representava simples consequência colateral indesejada pelo Estado; tinha de
ser resultante direta da ação estatal; era imposta por um ato jurídico e não
ter efeito meramente fático; e havia de ser imperativa, determinada quando e se
preciso pela força constituída do Estado.
Hoje esse conceito foi ampliado, pois abrange
quase toda ação ou omissão estatal relevante em face do
exercício do direito, sendo em parte consequência do desenvolvimento do
conceito dos direitos fundamentais de suas funções clássicas, predominantes do
Estado liberal, para o conceito inerente ao Estado democrático e social. No
Brasil, este último momento intensificou-se, ao nosso entender, no período pós
2002.
Os autores ensinam que, por questão de
segurança jurídica, seria salutar que se definisse um limite mínimo, abaixo do
qual a ação ou omissão estatal não representaria intervenção. Esta missão
caberia á doutrina e à jurisprudência, que a depender da sociedade e da
circunstância, indicaria o que seria considerado simples inconveniente.
Intervenções
permitidas (justificação constitucional da intervenção na área de proteção de
direito fundamental)
Permite-se a intervenção justificada
constitucionalmente na área de proteção do direito fundamental em quatro casos:
(a) se o comportamento do Estado não se situa na área de proteção do respectivo
direito, como a reunião de pessoas armadas; (b) se a norma infraconstitucional
restringe o direito fundamental de forma consentida pela Constituição, a exemplo do exercício da profissão de
advogado, em que o bacharel em Direito deve se submeter a exames, especificados
em lei; (c) se significar a concretização de um limite constitucional derivado
do chamado direito constitucional de colisão, realizada pelo legislador; e (d) se
dois direitos fundamentais ou um direito fundamental do indivíduo e um bem
jurídico coletivo tutelado no texto constitucional entram em conflito – direito constitucional de colisão.
Intervenções
proibidas (violação de direito fundamental)
Nos demais casos de intervenção, está-se
diante de violação do direito fundamental, a qual deverá ser verificada por
órgão jurisdicional competente.
Não se deve decidir se uma intervenção
estatal é permitida ou não sem antes examinar em detalhe: as normas que tutelam
o direito em tela; a situação e os interesses em jogo; e as condições de
atuação das autoridades do Estado.
Limites dos direitos fundamentais
Concretização
mediante lei
Significa a conformação ou definição do
conteúdo do direito fundamental, dentro de sua área de proteção, por meio de
lei, mas, para tal, deve ser sempre averiguada a possibilidade de essa lei configuradora,
no intuito de operacionalizar, limitar o direito de maneira inconstitucional, o
que resultaria em intervenção e não concretização.
Reserva
legal
Também chamada de reserva de lei,
autoriza o legislador ordinário estabelecer limitações, ao restringir a área de
proteção do direito. Pode ser das seguintes espécies: reserva legal simples,
plena ou absoluta, quando a Constituição menciona explicitamente a expressão
“na forma da lei” ou “nos termos da lei”, a exemplo dos incisos VI, XV e XVIII,
art. 5°, da CF; qualificada, limitada ou relativa, quando a Constituição indica
ao menos o tipo, a finalidade ou o meio de intervenção autorizado, como ocorre
nos incisos XII e XXIV, art. 5º; e implícita, indireta ou tácita, quando a
Constituição não faz uso do termo “na forma da lei” ou outro assemelhado,
acontecendo em incisos como X e LXXV, art. 5°.
Dada a sua indeterminação, a reserva
legal tácita apresenta muitas dificuldades, porquanto ora pode ser considerada
caso de necessária concretização, como ocorre no art. 5°, X, da CF; ora de
reserva legal efetivamente, o que acontece no caso do art. 5°, XV, primeira
parte, quando garante ao titular a liberdade de locomoção no território
nacional em tempo de paz. Este entendimento justificaria, mesmo sem previsão de
reserva, a legislação sobre o trânsito.
Parte da doutrina, fundamentada na teoria
do “direito constitucional de colisão”, defende que, na falta de previsão de
reserva legal, o legislador comum pode ensejar limitações na área de proteção
dos direitos de três formas: estabelecendo uma harmonização prática entre os
direitos fundamentais; justificando intervenções do legislador sem reserva
legal com base na teoria dos “limites imanentes”, decorrente do princípio da
unidade do texto constitucional; ou delimitando a área de proteção para excluir
o conflito do exercício da liberdade com interesses constitucionais ou direitos
fundamentais colidentes (p.148-149).
Por outro lado, os autores indicam duas
formas para contornar o dilema (maneira pouco refletida utilizada pelo
constituinte de 1988) relacionado à reserva legal tácita: (a) por meio de
interpretação sistemática de cada direito fundamental, alertando o autor
Leonardo Martins, no caso dos incisos IV e VI, do art. 5º, que as áreas de
regulamentação, a despeito da aparência, sequer se comunicam, “pois o conceito
de consciência e crença há de ser claramente distinguido do pensamento, valendo
a reserva legal somente para o segundo caso” (p. 152); (b) por meio de recurso
a outras normas constitucionais que consentem a intervenção, não obstante a
falta de previsão legal. Tem-se um caso típico de direito constitucional de
colisão apresentado no art. 145, § 1º, da CF, como limite constitucional do
art. 5º, X.
O termo “lei”, no âmbito federal,
compreende as leis complementares, ordinárias e delegadas, além das medidas
provisórias, que, com as restrições materiais e formais determinadas pela
Constituição possui “força de lei” (p. 153).
Direitos fundamentais sem reservas
legais e direitos fundamentais de colisão
Na ausência de reservas que permitam a
limitação de um direito fundamental pelo legislador, ainda assim ele poderá ser
limitado pelo direito constitucional de colisão ou colidente, não podendo,
pois, ser de todo “ilimitado” (p.155).
O vínculo do legislador aos direitos fundamentais
tem progressões de maior ou menor discricionariedade oferecida pelo
constituinte para restrição destes direitos outorgados. Tal liberdade é mais
larga nos direitos com reserva legais simples, menos ampla nos direitos com
reservas legais qualificadas e muito restritas nos direitos fundamentais sem
reservas.
Limites
constitucionais gerais em casos excepcionais
A Constituição prevê um duplo sistema de
legalidade: a normal com vigência plena dos direitos fundamentais e a
legalidade excepcional, em caso de graves conflitos ou ameaças à estabilidade
institucional. Assim, a Carta Magna institui e regulamenta três limites
extraordinários, em ordem crescente de gravidade e limitação: “Estado de defesa”
(art. 136, §§ 1º e 3º, da CF), em que um decreto do Presidente da República
especifica os direitos a serem afetados e o tipo de restrição; “Estado de sítio”
conforme o art. 137, I, c/c o art. 139 da CF, que permite, além da restrição,
também a suspensão de uma série de direitos fundamentais, mediante decreto do Presidente;
e “Estado de sítio” conforme art. 137, II, c/c art. 139, caput, da CF, em que qualquer direito fundamental pode sofrer
restrição e suspensão (p. 157).
Limites dos
limites
A possibilidade de limitar um direito
fundamental por meio de intervenções em sua área de proteção não é ilimitada,
significando que é proibido proibir o exercício do direito além do necessário,
traduzindo a teoria alemã dos “limites dos limites”, pela qual existe um
“conteúdo essencial” não passível de ser atingido (p. 159). Este conteúdo pode
ser de caráter relativo, fixado em cada caso particular, ou de caráter
absoluto.
Parte da doutrina brasileira considera a
necessidade de preservar o conteúdo essencial, ao sustentar que foi
recepcionada pelo nosso ordenamento, havendo preferência pela teoria relativa.
Outras espécies de limites dos limites do
legislador advêm das restrições impostas pelas reservas legais qualificadas e
da necessidade de o legislador atender ao requisito de generalidade da lei.
O critério da proporcionalidade, como
será verificado, é mais um limite para a concretização da reserva legal e de
quaisquer intervenções na área de proteção dos direitos fundamentais.
Colisão e concorrência de direitos fundamentais
Com o fim de evitar confusão
terminológica e porque desempenham funções enfrentadas em momentos diferentes,
as figuras dogmáticas da colisão e concorrência devem ser bem distinguidas.
Colisão
Tem-se colisão de direitos fundamentais, no
caso concreto, quando o exercício de um direito por um titular restringe o
exercício do direito de outro titular.
A solução de tal embate é passível de
controle abstrato, sendo avaliada de forma a aplicar o critério da
proporcionalidade para identificar e preservar, ao máximo, os direitos
envolvidos.
Os autores argumentam que a doutrina pode
contribuir na fixação de limites para cada caso típico de colisão e propor
soluções, cabendo ao judiciário a decisão final sempre justificada ou
fundamentada da limitação do direito em disputa.
Para eles, são duas as principais ferramentas
a serem usadas na solução de conflitos: “a interpretação sistemática da
Constituição, isto é, sua interpretação enquanto conjunto que permite levar em
consideração todas as disposições relacionadas com o caso concreto (...)”; e “o
critério de proporcionalidade” (p. 162).
Concorrência
Acontece a concorrência quando o titular
do direito pode se utilizar ao menos de dois parâmetros de direitos
fundamentais em contraposição à mesma intervenção estatal, ou seja, mais de um direito fundamental incidindo sobre
o mesmo comportamento ou situação pretendida.
A doutrina
alemã distinguiu duas espécies principais de concorrências. “Concorrência aparente”, em que a aplicabilidade de um
parâmetro de julgamento afasta os demais, empregando-se o princípio da especialidade
em face da norma geral. Tal espécie subdivide-se em: “lógica”, quando a área de
proteção da regra específica abrange todos os elementos da área de proteção da
regra geral e pelo menos mais um; e “normativa”, quando existem elementos
típicos em intersecção, sendo que uma das normas tem proximidade material maior
ao caso concreto.
A segunda espécie é a “concorrência ideal”, em que as
áreas de proteção não se comunicam, dando ensejo à duplicidade ou
multiplicidade de parâmetros de julgamento, devendo o exame de
constitucionalidade ser realizado em face de todos os direitos fundamentais que
vêm à pauta.
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