quarta-feira, 18 de setembro de 2013

A JUSTIFICAÇÃO DE INTERVENÇÕES EM DIREITOS FUNDAMENTAIS E A SOLUÇÃO DE SUAS COLISÕES

Série acadêmica

Fichamento do texto: “O critério da proporcionalidade como método para a justificação de intervenções em direitos fundamentais e para solução de suas colisões”, p. 167-220, In: DIMOULIS, Dimitri; MARTINS, Leonardo. Teoria geral dos direitos fundamentais. 3. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011.

O CRITÉRIO DA PROPORCIONALIDADE COMO MÉTODO PARA A JUSTIFICAÇÃO DE INTERVENÇÕES EM DIREITOS FUNDAMENTAIS E PARA SOLUÇÃO DE SUAS COLISÕES
Natureza da proporcionalidade entre princípio e critério
A ideia de proporcionalidade foi desenvolvida inicialmente pela jurisprudência do Tribunal Constitucional Federal alemão a partir da década de 1950 e exportada para o restante da Europa e outras partes do mundo, inclusive para o Brasil.
O doutrinador Schlink pergunta “o que poderia ser o vínculo do legislador aos direitos fundamentais senão o dever de intervir no exercício dos direitos tão somente de forma proporcional?” (p. 168).
Os princípios podem ser mais ou menos materializados ou cumpridos e são ponderáveis e aperfeiçoáveis, é dizer, exige que se ponderem os princípios colidentes. Já a regra jurídica tem caráter bipolar entre cumprimento e descumprimento; sua aplicação acontece por meio de subsunção de um caso concreto ao seu tipo legal, deduzindo a consequência jurídica.
O caráter aberto e o principiológico dados à proporcionalidade se justificam, porquanto ela oferece resposta a conflitos abrangendo direitos fundamentais com a vantagem de ser aberta à concretização nacional e ainda ser racional. Além disso, tal caráter permite mudanças nas formas de justificação e nos resultados, ainda que dentro do mesmo ordenamento jurídico.
No entanto, os autores partem da ideia de que a proporcionalidade não se constitui em princípio, apresentando muito mais natureza de regra ou critério do que de princípio.
Conceito original: dogmática alemã dos direitos fundamentais
Segundo decisão do Tribunal Constitucional Federal alemão na década de 1960, a proporcionalidade “resultaria da própria substância dos direitos fundamentais”. Por isso, afirmou em outra decisão que a proporcionalidade, apesar de não ser positivada na Constituição, possui “status” constitucional (p. 169).
Grabitz defendeu, em 1973, que a proporcionalidade resulta do princípio do Estado de direito. Schlink, em estudo de 1976, completado em 1984, sustenta que a ponderação significa o processo de aplicação da proporcionalidade ao caso em decisão. Para ele, ocorreu a transformação da exigência da reserva legal na exigência da lei proporcional, na passagem do Estado de direito clássico para o Estado democrático e constitucional.
Antes, em 1960, Peter Lerche havia definido a proporcionalidade como princípio constitucional ao lado do princípio da necessidade, que seriam elementos constitutivos da figura dogmática da “proibição de excesso”, a fim de impedir os exageros das medidas legislativas que intervinham na liberdade individual.
Assim, o exame da proporcionalidade pode ser expresso como um processo que tem, progressivamente, caráter classificatório (adequação), eliminatório (necessidade), e axiológico (proporcionalidade em sentido estrito).
Recepção do conceito de proporcionalidade em Portugal e no Brasil
Doutrinadores portugueses mencionam que a proporcionalidade do século XIX pretendia limitar o poder de polícia do Estado constitucional, ao combater os sintomas de patologias administrativas, sem ser entendido como princípio material de controle das atividades dos poderes públicos. Mas ponderam que ela garante a imposição de um direito mais justo. Segundo Canotilho, o surgimento do conceito de proporcionalidade se deu a partir do princípio do Estado de direito ou da própria natureza dos direitos fundamentais, e de sua qualidade de regra de razoabilidade, intrínseca à tradição de common law.
No Brasil, a recepção da teoria da proporcionalidade também foi caracterizada pela “imprecisão” e “sincretismo”, uma vez que ocorreu a tentativa de sua redução a um mero exame de razoabilidade, sustentando-se que esta e aquela são praticamente sinônimas. Outros doutrinadores prelecionam que a proporcionalidade tem base nos ideais jusnaturalistas, mas atualmente predomina a fundamentação no princípio constitucional do Estado de direito (p. 175).
Os autores defendem que é necessário evitar a diluição do critério da proporcionalidade dentro de uma visão geral de ponderação, resumindo-a a simples figura retórica, como se constata na jurisprudência do STF sobre o assunto. Eles também revelam problemas de insegurança jurídica, uma vez que a Corte constitucional não detém o monopólio da declaração vinculante de inconstitucionalidade, na medida em que, em sede de controle incidental, surgem as mais diversas fundamentações. Isso indica a necessidade de se reformular a recepção do conceito de proporcionalidade, pois sua aplicação deve satisfazer á dogmática constitucional e ao ponto de vista decisório-programático.
Caráter decisório e fundamento do critério da proporcionalidade
A proporcionalidade deve ser compreendida como recurso disciplinador do limite à competência constitucional dada aos órgãos estatais de restringir a área de proteção de direitos fundamentais, o que configura um limite material do poder limitador do legislador e não pode ficar adstrito apenas a limites formais.
Os autores defendem que a proporcionalidade se justifica com base em dois argumentos normativos: pela ligação direta do legislador aos direitos fundamentais, prevista no art. 5º, § 1º, da CF, exigindo, com este vínculo, que ele observe todos os direitos, mesmos que colidentes, na estrita medida do necessário a fim de maximizar seu exercício; e pelo reconhecimento de garantias de direitos fundamentais não explicitamente previstas na Constituição, porém decorrentes dos princípios adotados por ela, como aduz o art. 5º, § 2º, da CF. Segundo este último argumento, a proporcionalidade é consequência da necessidade de conciliar: “(a) o exercício de direitos fundamentais com bens jurídicos conflitantes contemplados pelo texto constitucional como seus limites; e (b) os direitos fundamentais que colidem mediante controle das respectivas (...) intervenções legislativas” (p. 180-181).
Mesmo que se considere tal fundamentação insuficiente, a proporcionalidade se impõe como meio normativo para resolver subsidiariamente conflitos relativos à aplicação de normas constitucionais, como na solução de antinomias. Assim, esse critério faz com que julgador conceda uma resposta fundamentada, preservando a unidade e funcionalidade do ordenamento e evitando a insegurança jurídica.
Não se pode negar que o fundamento constitucional do critério da proporcionalidade encontra-se no controle de discricionariedade legislativa dada pelo limite constitucional – reserva legal ou direito constitucional colidente –, ocorrendo também nas decisões administrativas e judiciais. Se houver antinomia “ideal”, vale a decisão política de quem é capaz de torná-la vinculante, que é o Poder Legislativo. Destarte, a proporcionalidade, devidamente entendida e aplicada, evita o decisionismo legislativo do judiciário e concretiza o princípio da separação dos poderes, previsto no art. 2º, da CF.
Diferenciação em razão do autor da intervenção estatal
As intervenções do Estado nos direitos fundamentais passam pelo filtro do critério da proporcionalidade, e há uma diferença material, além das formais, entre as intervenções do órgão legislativo e as dos demais Poderes.
Com efeito, o exame de constitucionalidade de uma intervenção legislativa compreende um processo trifásico: (a) definição e análise do objeto tutelado pelo direito fundamental atingido pelo ato legislativo, é dizer, análise do parâmetro de controle constitucionalidade; (b) inspeção da medida legislativa como intervenção do Estado na área de proteção do direito potencialmente violado, quer dizer, análise do objeto exame do controle de constitucionalidade; e (c) inspeção da probabilidade de justificação da intervenção em relação à aplicação dos limites constitucionais, o que é feito mediante análise da proporcionalidade.
Por outro lado, as intervenções do Executivo e Judiciário requerem, em seu exame, um processo bifásico: (a) constatação do fundamento legal e sua constitucionalidade da medida interventora, incluindo a análise de proporcionalidade; e (b) ponderação concreta, definindo se a medida, apesar de baseada em normas constitucionais, fere o direito por não satisfazer o critério da proporcionalidade.
Elementos constitutivos ou subcritérios da proporcionalidade
O legislador se liga aos direitos fundamentais na medida em que ele deve observar a proibição do exagero, mesmo que esteja autorizado a restringir o exercício de um direito fundamental.
A proporcionalidade, como critério dogmático para a resolução de conflitos, deve ser devidamente localizada, pressupondo inicialmente a realização do citado processo trifásico (intervenções legislativas) ou bifásico (intervenções dos demais poderes). A aplicação desse critério constitui uma ponderação “latu sensu”, que é fática, ocorrendo entre fins e meios juridicamente possíveis. Neste sentido, Alexy refere-se “às possibilidades fáticas (adequação e necessidade) e jurídicas (ponderação ‘stricto sensu’) de otimização dos direitos fundamentais” (p. 187).
Licitude do propósito perseguido
Deve-se examinar inicialmente a licitude do propósito da medida de intervenção na área de proteção do direito fundamental atingido, interessando somente a questão formal da conformidade entre o fim (e o meio) e o ordenamento jurídico.
O termo “licitude” aqui se refere à autorização constitucional. Busca-se saber se o fim é constitucionalmente admitido e, na sequência, se o mesmo vale para o meio pretendido. Não é necessário que haja disposição direta na Constituição, basta que o fim (ou o meio) admitido, fixado por órgão administrativo, jurisdicional ou por dispositivo legal material não se choque com a ordem jurídica constitucional, em sentido formal.
Os propósitos ilícitos não podem ser perseguidos já nessa primeira fase do exame de proporcionalidade. O propósito declarado também pode não ser o propósito real, situação em que aquele se constitui um pretexto para outras finalidades proibidas ou ilegais, o que mostraria uma discrepância entre finalidades manifestas e latentes. Outra preocupação é a necessidade de individualizar o quanto possível o propósito perseguido, evitando-se o propósito genérico, como “proteção do meio-ambiente”, sob pena de prejudicar a qualidade do controle.
Portanto, a primeira tarefa do operador do direito, ao utilizar o critério da proporcionalidade, para o controle de constitucionalidade de intervenções do Estado seria: “(a) interpretar e definir o real propósito da autoridade estatal (...); e (b) verificar se se trata de um propósito lícito” (p. 191).
Licitude do meio utilizado
Passa-se, então, à avaliação da licitude do meio empregado, que não pode ser reprovado pelo ordenamento constitucional (legal). Para perseguir um propósito lícito, o Estado não pode utilizar-se de meios ilícitos, o que vale também na aplicação do critério da proporcionalidade.
Os autores esclarecem que esses dois primeiros passos são um clássico exame de constitucionalidade de um ato estatal não compreendendo análises de proporcionalidade, mas considerados seus subcritérios pelas razões a seguir.
Primeiro, para facilitar a verificação da adequação e necessidade do meio de intervenção estatal usado em face do propósito pretendido, a analise da licitude destes fins e meios requer rigorosa interpretação e um profundo detalhamento dos propósitos perseguidos e meios de intervenção empregados.
Segundo, a análise da proporcionalidade entre meios e fins somente pode ser realizada após se examinar a licitude de ambos isoladamente.
Por último, o exame da licitude é relacional e se funda na verificação da relação entre uma ação ou omissão do Estado e as normas constitucionais que a admitem ou não. Tal comparação é feita observados os critérios da superioridade, posterioridade e especificidade, no que tange à licitude de meios e fins.
Adequação do meio utilizado
Significa utilizar-se do meio mais adequado para a persecução do fim desejado. Adequado no sentido de que seria o meio que consegue promover o fim almejado, não infringindo tanto o outro princípio como outros meios poderiam vir a infringir. Somente os meios adequados podem ser considerados proporcionais, pois, assim, encontram uma primeira justificativa constitucional, o que os habilita para participar do teste seguinte, o da necessidade.
Diante das dificuldades de se confirmar a adequação de uma medida restritiva de direito, em casos de difícil comprovação empírica, ou seja, tanto nas situações que criam divergências relativas aos prognósticos apresentados quanto nas que apresentam fortes controvérsias sobre os propósitos da medida e dificuldade técnica, científica ou outra em avaliar a adequação do meio escolhido e utilizado, em tais casos, tem o Poder Legislativo a discricionariedade, responsabilidade, capacidade e competência política para escolher os meios adequados para o alcance do propósito lícito. Configurando o princípio do in dubbio pro legislatore, os autores argumentam: “Na dúvida, sobre a adequação de uma medida para alcançar o propósito, quem decide é o legislador” (p. 198).
Lembrando que a discricionariedade do legislador não retira a competência fiscalizadora-revisional do Judiciário em sede de controle de constitucionalidade. Porém, ele deve aceitar a decisão do legislador, “se no processo não for comprovada a inadequação da medida”, em que pese a regra do “ônus argumentativo” que abre espaço para quem puder demonstrar a desproporção da intervenção (p. 198).
Pode-se, assim, afirmar que: a análise da adequação habilita certos meios como aptos ao exame da necessidade; as hipóteses sobre a realidade que podem ser confirmadas indicam a conexão entre o estado de coisas conseguido pela intervenção e o estado de coisas idealizado – realização do propósito da medida interventiva –, caracterizando o meio com adequado; e, na medida em que a adequação não se confunde com o simples exame de razoabilidade, a observância daquela é mais exigente do que a verificação desta relativa à medida estatal, em face do seu objetivo.
Necessidade do meio utilizado
subcritério da necessidade do meio escolhido e utilizado é o decisivo, e, para tanto, analisa-se se não há outro meio alternativo que o Estado possa empregar e que satisfaça aos requisitos: de ser menos gravoso para o titular do direito, ao descartar os meios igualmente ou mais gravosos, considerados adequados, ou seja, “requisito de menor gravidade” (p. 202); de ter eficácia similar ao meio escolhido pela autoridade estatal que, passando pelo filtro da adequação, é capaz de alcançar o estado de coisas no qual o propósito possa ser considerado realizado, quer dizer, “requisito da igual adequação” (p. 203).
Destarte, de todos os meios capazes de atingir os propósitos lícitos, apenas o que afetar o direito fundamental com menor intensidade será o necessário.
Os autores ensinam que, do ponto vista cognitivo-metodológico, a verificação da necessidade se dá pelas regras do “ônus argumentativo”, porquanto, basta os agentes argumentadores – legislador, juiz, partes do processo, etc. - trazerem à tona um meio que produza um menor agravo à liberdade intervinda para que a necessidade do meio escolhido subsista falseada.
Duas observações devem ser feitas sobre os componentes conceituais do subcritério da necessidade: (a) é imprescindível que o avaliador da constitucionalidade organize um rol completo de todos os meios que possibilitem o propósito pretendido pela intervenção – “identificação dos meios adequados” (p. 205); (b) efetuar medição do impacto ou gravidade dos meios, na realização do exame da necessidade – “comparação dos meios adequados” –, o que envolve três problemas: “grau de intensidade”, quando da subjetividade em saber, dentre os meios propostos, qual é o menos gravoso para o titular do direito; “grau de adequação”, ao tentar encontrar formas para medir sua relação com o fim desejado; e “grau de custo estatal”, ao relacionar o problema da intensidade com o investimento estatal que requer a tomada de determinada medida (p. 207).
O custo jurídico suportado pelo o titular do direito para o alcance de propósitos estatais deve ser mínimo e sempre redefinido, haja vista as nuances do impacto da medida no direito fundamental atingido e a própria redefinição jurídica deste direito.
Problemas de racionalidade do subcritério da proporcionalidade “stricto sensu”
Segundo esse subcritério, o julgador deve ponderar os direitos que se encontram em conflito, apreciando o que tiver o maior “peso” no caso real para fazê-lo prevalecer.
No exame da proporcionalidade de intervenções em direitos fundamentais, a ponderação se dá entre vantagens e desvantagens jurídicas para os bens em intervenção e dos propósitos perseguido pelo Estado.
Os autores advertem que não há hierarquização dos direitos fundamentais nas Constituições conhecidas, inclusive na brasileira, e que todos eles gozam de uma mesma dignidade normativo-constitucional. Sustentam que “sua hierarquização só pode ser ‘política’” (p. 211) e não pode ser desempenhada pela doutrina jurídica tampouco pelo Judiciário, que deve se ater às suas competências permitidas pelo constituinte.
A constituição de 1988 traz, no caput do seu art. 5º, o direito à vida apresentando-se no mesmo nível de mais quatro direitos fundamentais, liberdade, igualdade, segurança e propriedade, que se desdobram em vários outros oferecidos nos incisos do mesmo artigo.
Segundo os autores, três regras devem prevalecer na relação entre Política e Direito: submissão da política ao império da lei, sob pena de ilegalidade ou inconstitucionalidade; os espaços discricionários deixados pelas normas jurídicas devem ser preenchidos consoantes avaliações políticas da autoridade competente; o órgão que goza de maior poder discricionário para tomar decisões de cunho político é o Legislativo, sendo o primeiro concretizador dos dispositivos constitucionais.
Por conseguinte, o Judiciário nunca poderá fazer uso de “ponderações” para decidir de maneira a contrariar a decisão do legislador, salvo quando se fundar diretamente pela Constituição, ou seja, ele não pode fazer política fora do seu campo de competência, como se depreende do art. 1º, par. ún. c/c o art. 2 da CF.
Materialmente, os direitos fundamentais são heterogêneos, o que obsta um sopesamento possível apenas entre elementos comensuráveis. Formalmente, os direitos têm a mesma força jurídica, o que impede a hierarquização. Assim, se o julgador constata que uma limitação do direito é adequada e necessária, deve encerrar o exame de constitucionalidade, mesmo que discorde do legislador.
Além disso, argumentam os autores, a proporcionalidade em sentido estrito, quando feita pelo Judiciário, fere tanto o princípio da separação dos poderes quanto o princípio democrático, já que significa tomar decisões políticas e não jurídicas.
Necessidade de fundamentação e autocontenção das decisões judiciais sobre ponderação
Para apresentar os argumentos de uma boa fundamentação em face de direitos fundamentais colidentes, são necessários alguns requisitos: (a) fazer uso de todas as normas jurídicas incidentes sobre o tema e não apenas os dispositivos que suportam a opinião do julgador; (b) referência à doutrina e à jurisprudência, tanto nacional quanto estrangeira, a respeito do tema imparcialmente; (c) aproveitamento de dados experimentais que possam fundamentar alegações e prognósticos.
Outrossim, os operadores do direito devem seguir a postura da autocontenção, o que compreende reconhecer a prioridade jurídica do legislador. O Poder Legislativo é o único habilitado para concretizar as normas constitucionais, competência dada pelo Constituição, haja vista o caráter abstrato de suas normas.

LIMITES E COLISÕES ENTRE DIREITOS FUNDAMENTAIS

Série acadêmica

Fichamento do texto: "Limites dos e colisões entre direitos fundamentais”, p. 129-166, In: DIMOULIS, Dimitri; MARTINS, Leonardo. Teoria geral dos direitos fundamentais. 3. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011.

LIMITES DOS E COLISÕES ENTRE DIREITOS FUNDAMENTAIS
Introdução
Os autores indagam: “Sob quais condições, em quais situações e quem pode restringir um direito fundamental de forma lícita?” e argumentam que “estudar os direitos fundamentais significa estudar suas limitações” (p. 130).
A presença de um impedimento ou intervenção estatal em face do exercício do direito fundamental e a origem da aludida intervenção decorrente de norma de grau inferior à constituição são condições que, se reunidas, fazem os direitos fundamentais adquirir relevo, instalando-se uma situação de conflito com a seguinte dinâmica: T é o titular de um direito fundamental; E1 – Legislador, Administração Pública direta ou indireta ou Poder Judiciário – impede o exercício do direito por meio de ação ou omissão; T protesta; E1 responde “a lei não permite o exercício do direito”; T assevera que a referida lei infringe a Constituição; E1 discorda; E2 – um tribunal responsável pelo controle de constitucionalidade – “decidirá se a lei em questão ou sua interpretação/aplicação por E1, viola a Constituição e, consequentemente, se T pode concretamente exercer o direito” (p. 130).
Assim, pode-se dizer que “o estudo dos direitos fundamentais equivale ao estudo e tentativa de solução dos conflitos entre direitos fundamentais e outros bens jurídicos direta (bem jurídico-constitucional) ou indiretamente (reserva legal simples) protegidos pela Constituição ou conflitos de direitos fundamentais entre si (colisão de direitos fundamentais)” (p. 132).
Conceitos básicos
Área de regulamentação de um direito fundamental
Esta área é composta de dois elementos: a descrição da situação fática da vida social regulada pela norma, como viver ou comunicar-se à distância; e a decisão genérica do constituinte de que essa situação real deve ser respeitada, no que se refere à vida, ou deve-se realizar em circunstância de liberdade e privacidade, no que tange à comunicação. O Estado é o destinatário primordial dessa norma de “dever ser” (p.133).
Área de proteção
Quando o constituinte retira daquela situação fática sobre a qual incide a norma – área de regulamentação – uma conduta ou situação não considerada pela mesma norma, geralmente usando as expressões “salvo se”, “a não ser que”, “sendo vedado”.
A compreensão e distinção dessas duas áreas permitem ao operador do direito saber se um titular de um direito regulamentado pela Constituição também está protegido.
Exercício do direito
O exame da violação de um direito fundamental pelo Estado pressupõe analisar se o titular tentou exercê-lo efetivamente, por meio do controle concreto de constitucionalidade da conduta estatal, ou potencialmente, por intermédio do controle abstrato; permitindo a liberdade do exercício positivo efetivo ou potencial.
O direito também pode ser exercido de maneira negativa, valendo-se o seu titular da abstenção, constituindo-se, portanto, em transgressão do direito quando alguém o obriga a fazer algo que a Constituição não estabelece.
A desistência do exercício do direito é possível e, se não for restrito a um evento, pode tratar-se de “uma renúncia ao direito fundamental” (p. 136).
Porém, há poucas situações nas quais o exercício do direito deixa de ser faculdade do titular, passando a ser um dever de exercício, não contendo a liberdade de exercício negativo, a exemplo do sufrágio obrigatório.
Intervenção na área de proteção do direito
            Conceito e desenvolvimento de seu papel dogmático
A intervenção na área de proteção de um direito fundamental dá-se no contexto das tarefas e funções estatais de disciplinar a vida em sociedade e da reflexividade das normas que definem os direitos fundamentais. Reflexivas por haver identidade entre o criador e a criatura, que é o Estado.
Numa situação de conflito, tem-se um triângulo formado pelo Estado e pelo menos dois interessados opostos, podendo-se falar em dupla reflexividade, pois “tem como início e como ponto de chegada o choque de interesses causado pela concretização de direitos fundamentais” pela declaração de constitucionalidade ou inconstitucionalidade da medida regulamentar (p. 138).
Define-se, então, a referida intervenção como uma ação ou omissão estatal que: “(a) impossibilite, em parte ou totalmente, um comportamento correspondente a um direito fundamental (comportamento abrangido pela área de proteção do referido direito); e (b) ligue ao seu exercício uma consequência jurídica negativa mediante uma proibição acompanhada de sanção” (p. 140).
Tradicionalmente, a intervenção na área de proteção reunia quatro requisitos em seu conceito: era final, intencional e não representava simples consequência colateral indesejada pelo Estado; tinha de ser resultante direta da ação estatal; era imposta por um ato jurídico e não ter efeito meramente fático; e havia de ser imperativa, determinada quando e se preciso pela força constituída do Estado.
Hoje esse conceito foi ampliado, pois abrange quase toda ação ou omissão estatal relevante em face do exercício do direito, sendo em parte consequência do desenvolvimento do conceito dos direitos fundamentais de suas funções clássicas, predominantes do Estado liberal, para o conceito inerente ao Estado democrático e social. No Brasil, este último momento intensificou-se, ao nosso entender, no período pós 2002.
Os autores ensinam que, por questão de segurança jurídica, seria salutar que se definisse um limite mínimo, abaixo do qual a ação ou omissão estatal não representaria intervenção. Esta missão caberia á doutrina e à jurisprudência, que a depender da sociedade e da circunstância, indicaria o que seria considerado simples inconveniente.
Intervenções permitidas (justificação constitucional da intervenção na área de proteção de direito fundamental)
Permite-se a intervenção justificada constitucionalmente na área de proteção do direito fundamental em quatro casos: (a) se o comportamento do Estado não se situa na área de proteção do respectivo direito, como a reunião de pessoas armadas; (b) se a norma infraconstitucional restringe o direito fundamental de forma consentida pela Constituição, a exemplo do exercício da profissão de advogado, em que o bacharel em Direito deve se submeter a exames, especificados em lei; (c) se significar a concretização de um limite constitucional derivado do chamado direito constitucional de colisão, realizada pelo legislador; e (d) se dois direitos fundamentais ou um direito fundamental do indivíduo e um bem jurídico coletivo tutelado no texto constitucional entram em conflito – direito constitucional de colisão.
Intervenções proibidas (violação de direito fundamental)
Nos demais casos de intervenção, está-se diante de violação do direito fundamental, a qual deverá ser verificada por órgão jurisdicional competente.
Não se deve decidir se uma intervenção estatal é permitida ou não sem antes examinar em detalhe: as normas que tutelam o direito em tela; a situação e os interesses em jogo; e as condições de atuação das autoridades do Estado.
Limites dos direitos fundamentais
Concretização mediante lei
Significa a conformação ou definição do conteúdo do direito fundamental, dentro de sua área de proteção, por meio de lei, mas, para tal, deve ser sempre averiguada a possibilidade de essa lei configuradora, no intuito de operacionalizar, limitar o direito de maneira inconstitucional, o que resultaria em intervenção e não concretização.
Reserva legal
Também chamada de reserva de lei, autoriza o legislador ordinário estabelecer limitações, ao restringir a área de proteção do direito. Pode ser das seguintes espécies: reserva legal simples, plena ou absoluta, quando a Constituição menciona explicitamente a expressão “na forma da lei” ou “nos termos da lei”, a exemplo dos incisos VI, XV e XVIII, art. 5°, da CF; qualificada, limitada ou relativa, quando a Constituição indica ao menos o tipo, a finalidade ou o meio de intervenção autorizado, como ocorre nos incisos XII e XXIV, art. 5º; e implícita, indireta ou tácita, quando a Constituição não faz uso do termo “na forma da lei” ou outro assemelhado, acontecendo em incisos como X e LXXV, art. 5°.
Dada a sua indeterminação, a reserva legal tácita apresenta muitas dificuldades, porquanto ora pode ser considerada caso de necessária concretização, como ocorre no art. 5°, X, da CF; ora de reserva legal efetivamente, o que acontece no caso do art. 5°, XV, primeira parte, quando garante ao titular a liberdade de locomoção no território nacional em tempo de paz. Este entendimento justificaria, mesmo sem previsão de reserva, a legislação sobre o trânsito.
Parte da doutrina, fundamentada na teoria do “direito constitucional de colisão”, defende que, na falta de previsão de reserva legal, o legislador comum pode ensejar limitações na área de proteção dos direitos de três formas: estabelecendo uma harmonização prática entre os direitos fundamentais; justificando intervenções do legislador sem reserva legal com base na teoria dos “limites imanentes”, decorrente do princípio da unidade do texto constitucional; ou delimitando a área de proteção para excluir o conflito do exercício da liberdade com interesses constitucionais ou direitos fundamentais colidentes (p.148-149).
Por outro lado, os autores indicam duas formas para contornar o dilema (maneira pouco refletida utilizada pelo constituinte de 1988) relacionado à reserva legal tácita: (a) por meio de interpretação sistemática de cada direito fundamental, alertando o autor Leonardo Martins, no caso dos incisos IV e VI, do art. 5º, que as áreas de regulamentação, a despeito da aparência, sequer se comunicam, “pois o conceito de consciência e crença há de ser claramente distinguido do pensamento, valendo a reserva legal somente para o segundo caso” (p. 152); (b) por meio de recurso a outras normas constitucionais que consentem a intervenção, não obstante a falta de previsão legal. Tem-se um caso típico de direito constitucional de colisão apresentado no art. 145, § 1º, da CF, como limite constitucional do art. 5º, X.
O termo “lei”, no âmbito federal, compreende as leis complementares, ordinárias e delegadas, além das medidas provisórias, que, com as restrições materiais e formais determinadas pela Constituição possui “força de lei” (p. 153).
Direitos fundamentais sem reservas legais e direitos fundamentais de colisão
Na ausência de reservas que permitam a limitação de um direito fundamental pelo legislador, ainda assim ele poderá ser limitado pelo direito constitucional de colisão ou colidente, não podendo, pois, ser de todo “ilimitado” (p.155).
O vínculo do legislador aos direitos fundamentais tem progressões de maior ou menor discricionariedade oferecida pelo constituinte para restrição destes direitos outorgados. Tal liberdade é mais larga nos direitos com reserva legais simples, menos ampla nos direitos com reservas legais qualificadas e muito restritas nos direitos fundamentais sem reservas.
Limites constitucionais gerais em casos excepcionais
A Constituição prevê um duplo sistema de legalidade: a normal com vigência plena dos direitos fundamentais e a legalidade excepcional, em caso de graves conflitos ou ameaças à estabilidade institucional. Assim, a Carta Magna institui e regulamenta três limites extraordinários, em ordem crescente de gravidade e limitação: “Estado de defesa” (art. 136, §§ 1º e 3º, da CF), em que um decreto do Presidente da República especifica os direitos a serem afetados e o tipo de restrição; “Estado de sítio” conforme o art. 137, I, c/c o art. 139 da CF, que permite, além da restrição, também a suspensão de uma série de direitos fundamentais, mediante decreto do Presidente; e “Estado de sítio” conforme art. 137, II, c/c art. 139, caput, da CF, em que qualquer direito fundamental pode sofrer restrição e suspensão (p. 157).
Limites dos limites
A possibilidade de limitar um direito fundamental por meio de intervenções em sua área de proteção não é ilimitada, significando que é proibido proibir o exercício do direito além do necessário, traduzindo a teoria alemã dos “limites dos limites”, pela qual existe um “conteúdo essencial” não passível de ser atingido (p. 159). Este conteúdo pode ser de caráter relativo, fixado em cada caso particular, ou de caráter absoluto.
Parte da doutrina brasileira considera a necessidade de preservar o conteúdo essencial, ao sustentar que foi recepcionada pelo nosso ordenamento, havendo preferência pela teoria relativa.
Outras espécies de limites dos limites do legislador advêm das restrições impostas pelas reservas legais qualificadas e da necessidade de o legislador atender ao requisito de generalidade da lei.
O critério da proporcionalidade, como será verificado, é mais um limite para a concretização da reserva legal e de quaisquer intervenções na área de proteção dos direitos fundamentais.
Colisão e concorrência de direitos fundamentais
Com o fim de evitar confusão terminológica e porque desempenham funções enfrentadas em momentos diferentes, as figuras dogmáticas da colisão e concorrência devem ser bem distinguidas.
Colisão
Tem-se colisão de direitos fundamentais, no caso concreto, quando o exercício de um direito por um titular restringe o exercício do direito de outro titular.
A solução de tal embate é passível de controle abstrato, sendo avaliada de forma a aplicar o critério da proporcionalidade para identificar e preservar, ao máximo, os direitos envolvidos.
Os autores argumentam que a doutrina pode contribuir na fixação de limites para cada caso típico de colisão e propor soluções, cabendo ao judiciário a decisão final sempre justificada ou fundamentada da limitação do direito em disputa.
Para eles, são duas as principais ferramentas a serem usadas na solução de conflitos: “a interpretação sistemática da Constituição, isto é, sua interpretação enquanto conjunto que permite levar em consideração todas as disposições relacionadas com o caso concreto (...)”; e “o critério de proporcionalidade” (p. 162).
                        Concorrência
Acontece a concorrência quando o titular do direito pode se utilizar ao menos de dois parâmetros de direitos fundamentais em contraposição à mesma intervenção estatal, ou seja, mais de um direito fundamental incidindo sobre o mesmo comportamento ou situação pretendida.
A doutrina alemã distinguiu duas espécies principais de concorrências. “Concorrência aparente”, em que a aplicabilidade de um parâmetro de julgamento afasta os demais, empregando-se o princípio da especialidade em face da norma geral. Tal espécie subdivide-se em: “lógica”, quando a área de proteção da regra específica abrange todos os elementos da área de proteção da regra geral e pelo menos mais um; e “normativa”, quando existem elementos típicos em intersecção, sendo que uma das normas tem proximidade material maior ao caso concreto.
A segunda espécie é a “concorrência ideal”, em que as áreas de proteção não se comunicam, dando ensejo à duplicidade ou multiplicidade de parâmetros de julgamento, devendo o exame de constitucionalidade ser realizado em face de todos os direitos fundamentais que vêm à pauta.

EFEITOS VINCULANTES E EFEITO HORIZONTAL DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS

Série acadêmica

Fichamento do texto: “Efeitos vinculantes e efeito horizontal dos direitos fundamentais”, p. 96-115, In: DIMOULIS, Dimitri; MARTINS, Leonardo. Teoria geral dos direitos fundamentais. 3. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011.

EFEITOS VINCULANTES E EFEITO HORIZONTAL DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS
Aplicação imediata dos direitos fundamentais e a “reserva do possível”
O art. 5º, § 1º, da CF, prescreve que os direitos fundamentais vinculam direta e imediatamente todas as autoridades estatais, inclusive do poder legislativo, e que os seus titulares não necessitam “aguardar autorização, concretização ou outra determinação estatal” para exercer tais direitos (p. 96).
Entretanto, existem as “normas de baixa densidade normativa” (p. 97), normalmente de direitos sociais ou prestacionais, conforme o desejo do constituinte, o que não significa dizer a que não tenham aplicabilidade imediata, nem tampouco que haja a figura da “reserva do possível”.
A aplicação imediata desses direitos funda-se no dever do legislador de cumprir suas obrigações de regulamentação e no dever dos tribunais de fazê-lo respeitar essa norma ou suprir sua falta por inconstitucionalidade por omissão.
Já a reserva do possível não pode ser arguida pelo Estado, pois, primeiro, ele pode utilizar uma gama de medidas políticas para possibilitar uma prestação, em que pesem, para tal, prováveis intervenções em direitos fundamentais de resistência. Aqui, ressaltamos a importância de fomentar as discussões políticas em sala de aula, nos cursos de direito, haja vista o quão esta disciplina está impregnada em qualquer decisão que envolva recursos públicos, sem falar na principal “matéria-prima” do direito, a lei, resultante que é da atividade política legislativa.
Em segundo lugar, o Judiciário só pode declarar inconstitucionalidade de leis orçamentárias e de políticas públicas, se houver critérios ou prioridades para tal que importem em mensuração de valores. Como inexiste na Constituição hierarquia dos direitos fundamentais, não é praticável a ele apreciar se certo direito é “possível”.
Terceiro, a impossibilidade de o Estado atender direitos prestacionais tanto em nível geral quanto individual não pode servir como limite constitucional.
Destarte, os autores defendem que “o intérprete e o aplicador do direito não devem se preocupar com a reserva do possível, e sim com a determinação rigorosa da área de proteção do direito” (p. 101). E, assim, ao Estado cabe a realização das prestações, “sendo as alegações de ‘impossibilidade’ irrelevantes, tal como é irrelevante a alegação do contribuinte de que se encontra na impossibilidade de pagar seus impostos” (p. 102).
Destinatários ou sujeitos passivos das normas de direitos fundamentais
Em sentido amplo, o Estado é o principal destinatário do dever de respeitar os direitos fundamentais (efeito vertical), que a eles se vincula imediatamente, trazendo em seu bojo consequências a outros titulares pela “via indireta” da apreciação do poder Judiciário (p. 103).
O efeito horizontal dos direitos fundamentais diz respeito ao dever que o Estado tem de proteger tais direitos contra agressões provenientes de particulares. E isto pode ser garantido por meio da legislação ordinária, seja na esfera penal, para ofensas graves, seja na civil, trabalhista, comercial, etc. em ofensas menos graves.
Os particulares como destinatários das normas de direito fundamental (efeito horizontal)
O efeito horizontal afigura-se necessário quando, entre particulares em conflito, há clara desproporção de poder social, apesar de serem juridicamente iguais, equilibrando suas forças. Outra forma para se reconhecer este efeito é investigar a influência de normas constitucionais delineadoras de direitos de resistência na interpretação e aplicação de cláusulas contratuais.
E como esse efeito se apresenta no caso concreto?  Ele se manifesta na forma direta, é dizer, na aplicação imediata de normas constitucionais em lides entre particulares. Pode ocorrer na forma indireta ou mediata, em que os direitos fundamentais expressam-se na legislação comum. Neste caso, eles se irradiam sobre a legislação ordinária.
O critério para utilização da teoria do efeito horizontal não é de desigualdade material, mas de desequilíbrio de posições no interior da relação jurídica, que depende do caso concreto.
O efeito horizontal indireto remete principalmente ao dever do juiz de observar a irradiação dos direitos individuais, sob pena de propalar uma decisão inconstitucional. O fundamento normativo deste efeito, no Brasil, pode ser a ligação do Estado, inclusive o Judiciário, aos direitos fundamentais (art. 5º, § 1º, da CF). É bom sempre lembrar “que o efeito horizontal tem caráter mediato/indireto” (p.109).
No efeito direto ou imediato, o destinatário das normas de direito fundamental continua sendo o Estado, que tem o dever de pacificar os conflitos interindividuais. Para o reconhecimento deste efeito, é necessária a mediação do Estado, quer dizer, somente o Estado-juiz está diretamente vinculado e seu fundamento jurídico funda-se mais uma vez no art. 5º, § 1º, da CF. Já o particular, ao contrário, está diretamente atrelado apenas ao direito infraconstitucional.

TITULARES DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS

Série acadêmica

Fichamento do texto: “Titulares dos direitos fundamentais”, p. 76-91, In: DIMOULIS, Dimitri; MARTINS, Leonardo. Teoria geral dos direitos fundamentais. 3. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011.

TITULARES DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS
Retrata a visão de que os direitos fundamentais vinculam dois ou mais sujeitos de direito, figurando, de um lado, o sujeito ativo, detentor ou titular do direito, e, de outro, o sujeito passivo designado como destinatário da obrigação de respeitar o direito.
A Constituição não garante a titularidade universal dos direitos fundamentais, mas a certos grupos de pessoas e, além disso, cada categoria de direitos possui titulares diferentes. Passa-se, então, à análise da titularidade destes direitos.
Titularidade dos direitos de status negativus do art. 5º da CF
O princípio da igualdade, enunciado na primeira parte do caput deste artigo, significa que todas as pessoas submetidas à lei brasileira têm o direito de a ela subordinar-se sem sofrer qualquer discriminação. Embora tenha havido boa intenção por parte do constituinte, este princípio funciona hoje, a nosso entender, mais como uma norma programática, constituindo-se mera igualdade formal, muito distante ainda da almejada igualdade de fato.
Os demais direitos do caput do art. 5º têm titularidade mais restrita, uma vez que são garantidos expressamente “aos brasileiros e estrangeiros residentes no País”. O termo “brasileiros” envolve quem tem nacionalidade brasileira, não importando a maneira e o momento da aquisição, salvo algumas exceções como na proteção da extradição, que é absoluta apenas para os brasileiros natos (art. 5º, LI, da CF).
Quanto ao termo “estrangeiros residentes no País”, os autores informam que não possui fundamentação constitucional, por igualar os residentes aos não residentes, a intenção da doutrina de oferecer “uma interpretação extensiva considerando que é residente qualquer estrangeiro que se encontre em trânsito no território nacional” (p. 78).
Nos incisos do art. 5º, os titulares são designados por: “todos”, “ninguém”, “homens e mulheres”, “qualquer pessoa”, “o preso”, “qualquer cidadão”, “o condenado”, “os reconhecidamente pobres”, apesar de muitos incisos não terem nenhuma referência explícita.
Quando o inciso não determina ou quando usa termos genéricos, como “todos” e “ninguém”, os titulares do direito fundamental são apenas os “brasileiros e os estrangeiros residentes no País”.
Por outro lado, acontece dupla limitação quando o inciso é mais restritivo que o caput, ao estabelecer categorias específicas, tais quais “presos”, “condenados”, “cidadãos” ou “pobres”. A limitação de não serem brasileiros ou estrangeiros residentes e a de, mesmo o sendo, não possuírem a qualidade descrita no inciso.
Entendemos que os estrangeiros em trânsito, sem residência fixa, gozam também da proteção dos direitos do caput, assim como dos demais direitos de resistência do art. 5º, por zelo mesmo ao regime e aos princípios adotados pela Constituição, como tão bem aduz o § 2º deste dispositivo. Um deles é o citado princípio do “in dubio pro libertate” que já poderia conciliar a questão. Porém, nada impede que o constituinte derivado o melhore, de forma a pôr termo a tais polêmicas, já que, neste caso, não se estaria retirando nenhum direito.
Para minimizar o desconforto com a omissão do constituinte, a doutrina constitucional brasileira buscou meios para atestar aos estrangeiros não residentes a titularidade dos direitos fundamentais do art. 5º, da CF, agrupando suas análises em quatro argumentos.
a) “Argumento da obviedade”. É a proposta de alguns autores que afirmam serem os direitos do art. 5º “de todos aqueles que se encontram submetidos ao ordenamento jurídico brasileiro...” Esta posição é defendida pelo STF. Já para os autores, esta interpretação é equivocada, pois a vontade do constituinte estaria sendo ignorada e poderia acontecer uma inaceitável inversão “dos papéis entre o criador e o aplicador do direito“ (p. 82).
b) “Argumento dos direitos naturais”. Segundo este ponto de vista, o constituinte não poderia limitar estes direitos nem tampouco negá-los a determinados grupos de pessoas, por serem “imprescritíveis ou inerentes ao ser humano” (p. 82). Os autores informam que o poder constituinte é ilimitado e, como tal, só garante direitos conforme a sua vontade.
c) “Argumento da dignidade humana”. Propõe a combinação do princípio prolatado pelo art. 1º, III, com o art. 5º, da CF, realizando “uma interpretação extensiva deste último para reconhecer a titularidade dos direitos a todas as pessoas.” (p. 83). Esta proposta é insatisfatória para os autores, primeiro, porque a dignidade humana constitui-se num conceito muito abstrato, não permitindo saber quais direitos devem ser garantidos. Segundo, porque o constituinte quis adotar exceções ao este princípio fundamental, utilizando a regra: “lex specialis derogat legi generali”.
d) “Argumento dos direitos decorrentes” (p. 83). Defende que os direitos oriundos da incorporação dos tratados internacionais reconhecidos pelo § 2º, do art. 5º, oferecem argumento para alargar os titulares dos direitos fundamentais. Porém, se o tratado possuir força de lei ordinária, poderá ser alterado, não cabendo alegação de inconstitucionalidade da lei que o modificou. A nosso ver, há uma inconformidade, na medida em que a própria Constituição garante o direito adquirido (conquistado pelo titular por meio do tratado, que tem valor de lei ordinária) da ação de lei ulterior, como preceitua o art. 5º, XXXVI.
O catálogo de direitos fundamentais do art. 5º tem caráter exaustivo, não podendo ser acrescido por outros instituídos mediante fontes infraconstitucionais. Os autores acrescentam que para corrigir a omissão do constituinte no tocante aos estrangeiros não residentes, faz-se necessária emenda à Constituição ou incorporação de tratado internacional em consonância com o § 3º, art. 5º, da CF.
Titularidade dos direitos sociais
Em alguns dispositivos do art. 6º da CF, o constituinte usa termos como “assistência aos desamparados”, em que o titular, “desamparado”, demanda uma circunstância social ou temporal. Situação similar envolve os direitos de proteção à maternidade e à infância. Restou ao legislador ordinário, com o controle do Judiciário, solucionar a determinação dos seus titulares e em que circunstâncias.
Nos demais direitos desse artigo, por não haver indicação de titularidade, subentende-se que esta é representada por todos os que necessitam de educação, saúde, alimentação, trabalho, moradia, lazer, segurança e previdência social. A própria Constituição ratifica este entendimento, ao afirmar que: “a saúde é direito de todos...”, no art. 196; a assistência social é de quem dela necessitar, como aduz o art. 203; e “a educação, direito de todos...”, art. 205.
Criou-se um paradoxo político-constitucional, pois o art. 5º da CF não havia necessidade de ser tão restritivo quanto aos direitos de resistência dos não residentes, ao passo que o art. 6º não precisava ser tão inconvenientemente generoso, por importar vultosos investimentos ao Estado, concedendo-lhes direitos típicos das pessoas vinculadas ao Brasil.
Os art. 7º ao art. 11 dizem respeito aos trabalhadores urbanos e rurais, sendo que em alguns casos a Constituição aumenta, diminui ou modifica a titularidade dos direitos sociais. No art. 10, há uma especificidade quando garante a participação dos trabalhadores nos colegiados de órgãos públicos, nos quais os seus interesses estejam em jogo.
Recorrendo à classificação de Jellinek, são encontrados dispositivos no capítulo dos direitos sociais da Constituição que se inserem ora nos direitos de resistência, tais como o direito à associação profissional e sindical do art. 8º, o direito de greve do art. 9º ou até mesmo a proibição do trabalho infantil e juvenil do art. 7º, XXXIII; ora nos direitos políticos, tal qual o do art. 10.
Titularidade dos direitos políticos
O principal requisito do titular dos direitos políticos é ter nacionalidade brasileira. Os arts. 14 e 15 da CF instituem os demais, e outras normas constitucionais incluem algumas especificações.
Uma das particularidades desses direitos são os limites etários dos seus titulares, o que ocorre no alistamento e voto obrigatório para os maiores de dezoito anos (art. 14, § 1º, I, da CF), na idade de 35 anos como condição de elegibilidade para Presidente da República (art. 14, § 3º, VI, a), etc.
Os estrangeiros exercem direitos políticos no Brasil principalmente em dois casos: os portugueses que aqui residem permanentemente, mesmo que não possuam nacionalidade brasileira, desde que haja contrapartida em Portugal para brasileiros (art. 12, § 1º, da CF); possibilidade de atuação dos estrangeiros em partidos políticos (art. 17). A titularidade desta atuação é universal. No entanto, o legislador infraconstitucional, ao regulamentar este artigo, exclui da participação partidária oficial todos os estrangeiros e alguns brasileiros (art. 16, da Lei 9.096/95), o que é suscetível de inconstitucionalidade.
Titularidade dos direitos coletivos
Nos direitos coletivos tradicionais, a titularidade depende do tipo de direito. Já para os “novos” direitos coletivos, há diferenciações.
Os titulares dos direitos dos consumidores dependem de norma ordinária, conforme art. 5º, XXXII, da CF. O delineamento destes consumidores está a cargo da Lei 8.078/90 (Código de Defesa do Consumidor).
O direito ao meio ambiente é concedido pelo art. 225, da CF, de forma universal a quem se encontrar no país, apesar de haver interpretações minoritárias considerando o termo “povo” de forma nacionalista, o que carece de fundamento.
Os direitos à solidariedade e ao desenvolvimento são abstratos e compara-se a normas programáticas, beneficiando “a todos e a cada um em separado” (pág. 89).
Titularidade das garantias fundamentais
As garantias preventivas relacionam-se com as formas de organização do Estado, e a Constituição as adota pelo princípio da separação dos poderes, estabelecendo modos de controlar entre si as autoridades estatais, a fim de preservar os direitos fundamentais da interferência indesejável de agentes de poder.
Quanto às garantias repressivas, a regra é que os próprios titulares do direito podem acioná-las, apesar de a Constituição estabelecer, em alguns casos, a titularidade de forma precisa, como no mandado de segurança coletivo (art. 5º, LXX, da CF), e, em outros, permitir que o legislador ordinário o amplie, tal qual o “habeas corpus”, a exemplo do art. 654, do CPP.
As pessoas Jurídicas como titulares dos direitos fundamentais
As pessoas jurídicas podem ser equiparadas às físicas, desde que o gozo do direito seja compatível com suas finalidades e natureza, tal ocorre na maioria dos direitos de resistência, como o de propriedade ou do sigilo de correspondência.
A Constituição chega, em alguns casos, a expressar tal titularidade, ao permitir às associações representarem seus filiados (CF, art. 5º, XXI) ou aos sindicatos defenderem a sua categoria (art. 8º, III).
A regra do art. 5º, da CF, é restringir os sujeitos de direito às pessoas físicas. Parte da doutrina e alguns julgados do STF tentaram corrigir esta opção do constituinte ao propor uma “interpretação extensiva” (p. 91). Porém, os autores defendem que as pessoas jurídicas, apesar de necessitar da tutela constitucional, não a possui, podendo o legislador ordinário limitá-la e diferenciá-la do tratamento dado às pessoas físicas. Em razão disso, eles propõem uma reforma constitucional com o propósito de corrigir esta distorção.

domingo, 15 de setembro de 2013

CATEGORIAS E FUNÇÕES DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS

Série acadêmica

Fichamento do texto: Categorias e funções dos direitos fundamentais, p. 57-75, In: DIMOULIS, Dimitri; MARTINS, Leonardo. Teoria geral dos direitos fundamentais. 3 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011.

Categorias e funções dos direitos fundamentais
Baseados nas definições de Jellinek, distinguem três categorias de direitos fundamentais segundo a relação entre o Estado (E) e o indivíduo (I).
A primeira corresponde aos direitos de status negativus ou pretensão de resistência à intervenção estatal, que consistem em “E não deve interferir em I”, protegendo a liberdade do indivíduo da ação do Estado. Trata-se de obrigação de não fazer algo afiançada pela Constituição, “direito de resistência” ou até “direito de defesa” (p. 58-59). Instituídos já nas Declarações do século XVIII, estes direitos fazem parte da concepção liberal clássica de preservar as liberdades individuais, com o propósito de liberar o usufruto da propriedade e, com isso, as atividades econômicas tão almejadas pela burguesia.
A segunda categoria refere-se aos direitos de status positivus, sociais ou prestacionais, consistentes em “E deve interferir na esfera de I”, possuindo o indivíduo o direito positivo de obter algo, o que se coaduna com o termo “direitos sociais”, já que tem o objetivo de satisfazer a amplas parcelas da população. Estes direitos podem ser de duas espécies: (a) prestações materiais, quer dizer, oferta de bens ou serviços a hipossuficientes ou oferta universal de serviços monopolizados pelo Estado; e (b) prestações normativas referentes à criação, por parte do legislador, de normas que protegem interesses individuais. Estes direitos, apesar de serem amplamente positivados no século XX, já constavam de textos dos séculos XVIII e XIX (p. 60-61).
A última categoria abrange os direitos de status activus, políticos ou de participação, traduzido na forma ativa “I pode interferir no E”, o que possibilita a “intromissão” do indivíduo na esfera política do Estado, mediante o direito de sufrágio e de participação da vontade política, como plebiscito, referendo, iniciativa popular ou fazer parte de partidos políticos. Tais direitos foram previstos nos textos constitucionais ou Declarações a partir do século XVIII, conhecendo grande evolução no tocante à extensão de seus titulares (p. 61).
Por trás desse esquema trialista de Jellinek, existe uma bipartição da relação entre as duas esferas, Estado e indivíduo, consubstanciada nos direitos que importam ação e nos que envolvem abstenção. No polo ativo, temos o poder de ação do indivíduo, expressos nos direitos políticos, e dever de agir do Estado, nos direitos sócio-prestacionais. Já no lado passivo, temos dois deveres de omissão, manifestados na proibição de intervenção do Estado por meio dos direitos de resistência individual e na vedação de resistência do indivíduo à ação estatal, quando ele não possuir o direito fundamental. Nesta classificação, há quatro relações entre Estado e indivíduo, portanto, duas positivas e duas negativas.
Além desse esquema, que se mostra o mais aceito na atualidade, destacam-se duas importantes teorias: a unitária e a binária. A primeira refuta a organização dos direitos fundamentais em categorias diferentes, ao enfatizar suas semelhanças estruturais, evitando, por exemplo, a tendência de depreciação dos direitos sociais. Porém, a despeito da “’dignidade’ constitucional” de todos os direitos fundamentais, sustenta que classificá-los não significa hierarquizá-los, mas ressaltar suas funções que são distintas. A segunda, também chamada “teoria dualista”, distingue os direitos fundamentais em direitos de resistência (liberdades negativas) e direitos prestacionais (liberdades positivas) (p. 62-63). E os direitos políticos, em que ponto se encaixariam? Nos direitos de resistência, afirmam seus defensores, o que não convence, já que a função dos direitos políticos não se confunde com aquela dos direitos de resistência.
A classificação de Jellinek e as demais não contemplam a titularidade coletiva dos direitos fundamentais, confirmando as suas deficiências e a necessidade de análise de alguns casos particulares. No que tange aos “direitos coletivos tradicionais”, cuja titularidade é individual, mas de “expressão” coletiva, ainda se enquadram no esquema de Jellinek, como os direitos de reunião e associação, art. 5º, XVI e XVII, da CF, e o de criação de partidos políticos, art. 17 (p. 64).
No entanto, com o surgimento no século XX dos “novos direitos coletivos”, direitos difusos ou transindividuais, conflitos concretos e teóricos, ocasionados por sua garantia constitucional, tornaram-se evidentes, provocando tensões por vezes insolúveis. Dentre estes direitos, destacam-se o direito ao meio ambiente, dos consumidores e de solidariedade, ao exprimirem valores e deveres entre países e grupos sociais. Há uma absoluta indeterminação de seus titulares, indicados por termos como: “todos”, “os brasileiros”, “os trabalhadores”. Além disso, os interesses originados desses novos direitos “estão soltos, desagregados, disseminados”, demonstrando “intensa litigiosa interna”, afirma a doutrina (p.65).
O alemão Carl Schmitt reconheceu disposições constitucionais denominadas posteriormente de “garantias de organização”, cuja finalidade “é criar e manter instituições que sustentem o exercício dos direitos e garantias fundamentais” (p. 66). Segundo ele, há duas espécies dessas garantias: (a) “garantias de instituições privadas” como a família, o casamento e a propriedade, quando o indivíduo pode exigir do Estado regulamentação e medidas concretas para exercer tais direitos; e (b) “garantias de instituições públicas”, organizações estatais como a Administração Pública, tribunais e estrutura eleitoral (p. 67). Acrescentamos que o Estado brasileiro ainda não apresenta uma estrutura pública de todo organizada, todavia os esforços para tal são enormes, sobretudo a partir de 2003 com a implantação mais palpável do Estado Social, aproximando-se mais do que propugna a Carta de 1988.
Apesar da inércia da doutrina e do ordenamento jurídico brasileiros, examina várias categorias de deveres fundamentais.
- “Deveres estatais implícitos e não autônomos” (p. 68), que consistem no dever do Estado de agir para efetivação dos direitos sociais e no dever de abster-se de condutas que impeçam o gozo dos direitos de resistência e políticos. De caráter não autônomo por serem reflexo do respectivo direito fundamental.
- “Deveres estatais explícitos e não autônomos” (p. 69), representando os deveres estabelecidos pela Constituição, ao obrigar o Estado em relação ao indivíduo. Também é reflexo do respectivo direito.
- “Deveres não autônomos dos particulares?” (p. 69). Enfoca que estes deveres só vinculam o Estado (sujeito passivo) e não os particulares. Por isso, há “assimetria entre direitos e deveres fundamentais dos particulares” (p. 70).
- “Deveres autônomos dos particulares” (p. 70), quando a Constituição designa deveres a determinadas parcelas da população, tal qual a educação como dever de família (art. 205, da CF). São de baixa densidade normativa.
- “Deveres de criminalização” (p. 72), impondo deveres normativos ao Poder Legislativo para tipificar criminalmente certas condutas (art. 5º, XLII, da CF).
- “Deveres de tutela” (p. 73), ao indicar o dever do Estado de proteger o direito fundamental de agressões oriundas de particulares, consubstanciado no dever de promover a segurança, de prevenção de riscos e até de proibição de certas condutas.
- “Deveres fundamentais acompanhados de deveres do titular?” (p. 73). Segundo a doutrina dominante, alguns direitos fundamentais podem apresentar, como contraposição, um dever do titular de usufruir seu direito de maneira solidária, de acordo com o interesse social.
Tem-se, assim, uma estrutura bifásica dos deveres fundamentais, quando a Constituição enuncia e a lei regulamenta, na medida em que o art. 5º, § 1º, da CF, atribui “aplicação imediata” e vinculativa apenas aos direitos e às garantias, e não aos deveres fundamentais, e em que são vagos os termos que instituem tais deveres.
Por fim, apresentam-se as garantias constitucionais correspondentes às disposições que previnem e/ou concertam violações de direitos. Dessarte, podem ser preventivas, “garantias da Constituição”, quando limitam o poder estatal e concretizam o princípio da separação dos poderes; ou repressivas, “remédios constitucionais”, que podem impedir violações de direitos ou desfazer lesões oriundas destas violações.

A INTERNACIONALIZAÇÃO DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS

Série acadêmica

Fichamento do texto: Internacionalização dos direitos fundamentais”, p. 36-46, In: DIMOULIS, Dimitri; MARTINS, Leonardo. Teoria geral dos direitos fundamentais. 3. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011.

A internacionalização dos direitos fundamentais
O movimento de internacionalização dos direitos fundamentais, aqui designados “direitos humanos”, foi consequência do desenvolvimento do direito internacional no século XX, sobretudo, após a Segunda Guerra Mundial.
Enfoca da seguinte forma as dimensões dessa internacionalização: “(a) riquíssima produção normativa internacional em prol dos direitos humanos (...); (b) crescente interesse das organizações internacionais pelos direitos humanos e criação de organizações cuja principal finalidade é promovê-los e tutelá-los; (c) criação de mecanismos internacionais de fiscalização de possíveis violações e de responsabilização de Estados ou indivíduos que cometem tais violações; (d) intensa produção doutrinária em âmbito internacional (...)” (p.36).
O relacionamento binário entre o Estado e o indivíduo é afetado com esta evolução, uma vez que aos direitos fundamentais vincula-se uma nova discussão do princípio da soberania nacional, culminando com diversas mudanças tais como: (a) titularidade universal de direitos, “independente da nacionalidade e do lugar de residência”, não excluindo certas categorias (mulheres, crianças, minorias étnicas, indígenas, etc.); (b) probabilidade de responsabilização do Estado por comissões, tribunais e outras autoridades internacionais; (c) demasiada politização da matéria em decorrência da realização de variados compromissos entre os Estados e autores internacionais com a intenção de tornar efetivos os direitos humanos (p. 37).
Acrescentamos, neste ponto, que os Estados hegemônicos - ditos “civilizados”, como bem consta na alínea c, art. 38, do Estatuto da Corte Internacional de Justiça, ao citar uma das fontes do Direito Internacional Público, in verbis, “os princípios gerais de direito, reconhecidos pelas nações civilizadas” (quais nações?) -, prevalecendo-se dos seus poderios econômicos e bélicos em relação à hipossuficiência da maioria das demais nações, no mais das vezes, utilizam-se do direito internacional, como instrumento, e do belíssimo discurso dos direitos humanos, como “chamariz”, para pressionar politicamente a comunidade internacional no sentido de efetivar grandiosos interesses, com o fim último de ampliar cada vez mais os seus mercados consumidores.
Sustenta, entretanto, que o fortalecimento do direito internacional não afeta a superioridade do Estado nacional, primeiro porque ele continua possuindo um poder coercitivo insuperável em seu interior, quando da resolução de problemas ligados à limitação dos direitos fundamentais, baseado que está na sua própria Constituição. O Estado ainda é o principal protetor dos direitos humanos que, respaldado na Carta Magna, promove tais direitos a normas jurídicas supremas dentro de sua jurisdição.
Em segundo lugar, são muito limitados os casos em que indivíduos requerem a tutela das autoridades internacionais invocando normas do direito internacional, comparados com a grande quantidade de desavenças resolvidas no âmbito interno.
Terceiro, ocorre o fenômeno da duplicação, em que quase todos os direitos humanos tutelados pelo direito internacional também são assegurados pelo direito interno, porém de “forma mais completa, com menos reservas legais e dotados de maiores garantias” (p. 38).
No que concerne ao princípio da complementaridade condicionada, implícito no art. 5º, § 2º, da CF, o titular interessado só será beneficiado por tratados internacionais de direitos humanos, se três requisitos forem observados: (a) “origem contratual da norma de direitos humanos”, positivada em tratados internacionais e acordos assemelhados, excluindo-se os costumes, princípios gerais ou outras fontes do direito internacional público; (b) “conformidade constitucional dos tratados internacionais”, reconhecendo-se como sua única base de validade a Constituição, em linha com o que preceitua o art. 102, III, b e 105, III, a, da CF; (c) “validade dos tratados internacionais de acordo com a forma de ratificação”, referindo-se à maneira de incorporação dos tratados prevista constitucionalmente nos arts. 49, I e 84, VIII c/c art. 5º, § 3º, da CF (p. 40-41).
Argumenta que o posicionamento de alguns juristas e da última jurisprudência do STF, com base no § 2º do referido artigo, acerca da supralegalidade dos tratados internacionais relacionados aos direitos humanos não convence, ao indicar que o catálogo de direitos fundamentais asseverados na Constituição não deve ser interpretado em favor do Estado e sim da liberdade do indivíduo. O desejo do constituinte foi de não ensejar nenhuma hierarquia entre a lei e estes tratados, tal a límpida manifestação por meio dos arts. 102, III, b e 105, III, a.
A Emenda Constitucional 45/2004 acrescentou o § 3º ao art. 5º, que prescreve a equivalência dos tratados e convenções internacionais às emendas constitucionais, quando aprovadas em dois turnos de votação, por maioria de três quintos dos membros de cada Casa do Congresso Nacional. Destarte, o tratado internacional aprovado da forma citada torna-se, no plano interno, superior às normas infraconstitucionais, passando a integrar o “bloco de constitucionalidade”, atendendo, claro, às limitações materiais fundadas nas “cláusulas pétreas” do art. 60, § 4º, da CF (p.43-44).
Assim, verificam-se atualmente no Brasil duas formas de incorporação de tratados internacionais sobre direitos humanos. A primeira, aprovada sob o mesmo processo das emendas constitucionais, só pode ser alterada por meio de ulterior emenda constitucional, não admitindo mudanças tendentes a abolir normas do tratado, transformadas em cláusulas pétreas. A segunda engloba os tratados aprovados na forma ordinária, com força jurídica de lei, podendo ser derrogados ou ab-rogados por outra lei subsequente.
As colisões dos direitos fundamentais tutelados pela Constituição com os direitos fundamentais garantidos nos tratados internacionais incorporados devem ser pacificadas conforme o § 2º, art. 5º, da CF. A dessemelhança, segundo os autores, é que, se o tratado possuir força de lei ordinária, poderá ser alterado, o que resulta em precariedade dessa forma de incorporação, já que não cabe alegação pelo titular do direito de inconstitucionalidade da lei que o modificou. Aqui, a nosso ver, há uma inconformidade, na medida em que a própria Constituição garante o direito adquirido (no caso, conquistado pelo titular por meio do tratado, que tem valor de lei ordinária) da ação de lei ulterior, como preceitua o art. 5º, XXXVI.

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