segunda-feira, 14 de maio de 2012

DISTINÇÃO ENTRE DIREITO E MORAL

Série acadêmica

1. NOÇÃO DE DIREITO
O Direito se identifica com a noção de justiça, seu maior valor. Possui vários significados que se correspondem: a) sistema de normas de conduta imposto pelo Estado a fim de regular as relações sociais, o que equivale ao conceito de “ordem jurídica” e os juristas denominam de direito objetivo; b) faculdade concedida a uma pessoa para mover a ordem jurídica a favor de seus interesses, o que os juristas chamam de direito subjetivo; c) ramo das ciências sociais que estuda o sistema de normas que regulam as relações sociais, designado pelos juristas de ciência do direito.
“O Direito é a norma das ações humanas na vida social, estabelecida por uma organização soberana e imposta coativamente à observância de todos", segundo Roberto Ruggiero.
Já Miguel Reale afirma que "aos olhos do homem comum o Direito é a lei e ordem, isto é, um conjunto de regras obrigatórias que garante a convivência social graças ao estabelecimento de limites à ação de cada um de seus membros."
De acordo com a teoria da coercibilidade, "o Direito é a ordenação coercível da conduta humana."
Pode ser dividido, sob diversos critérios e assuntos, de várias maneiras: público e privado; objetivo e subjetivo; positivo e natural; etc. Sem a pretensão de detalhar neste trabalho cada uma dessas divisões, faz-se necessária uma ligeira exposição sobre estas últimas. O Direito positivo faz referência ao conjunto de normas jurídicas que regem o comportamento humano num determinado tempo e espaço. Trata-se, assim, de normas coercivas. Por sua vez, o Direito natural diz respeito à ordem pública e social como um todo, independente de normas materiais, pois emana da Moral, da Ética e da consciência de um povo, refletindo no direito positivo, considerando que o legislador deve levar em conta o valor social da norma, pois sua finalidade é torná-la obrigatória a todos, mas principalmente àqueles que não respeitam o que é moralmente correto se não houver uma conseqüência séria que os obriguem a fazê-lo. O Direito natural representa um equilíbrio entre o que é certo e o que é errado.
2. NOÇÃO DE MORAL
O maior valor da Moral é o bem, que é considerado tudo aquilo que promove o homem à plena realização, assim como à do próximo.
Convém diferenciar a Moral positiva da Moral natural. Esta consiste na ideia de bem, invariável no tempo e no espaço, captada diretamente da natureza, quer dizer, na ordem que envolve a vida humana e os objetos naturais. Considera como base o que há de permanente no gênero humano.
Por outro lado, a Moral positiva é revelada dentro de uma dimensão histórica, ou seja, a interpretação que faz um homem, de um determinado tempo e lugar, em relação ao bem. Distingue-se em três esferas, conforme Heinrich Henkel: Moral autônoma, Ética superior dos sistemas religiosos e Moral social.
Segundo Paulo Nader: “A Moral autônoma corresponde à noção de bem particular a cada consciência. (...) A consciência individual, que é o centro da Moral autônoma, com base na experiência pessoal, elege o dever-ser a que se obriga.”
Na Ética superior dos sistemas religiosos, as noções fundamentais sobre o bem são consagradas e transmitidas pelas seitas religiosas a seus fiéis.
A Moral social constitui um conjunto predominante de princípios que, em cada sociedade e em cada época, orienta a conduta das pessoas. Na certeza de que seus atos serão julgados por esses princípios, cada indivíduo procura socialmente agir em conformidade com as exigências da Moral social. Assume, portanto, um caráter heterônomo e impõe às pessoas uma maneira de agir não elaborada por sua própria consciência.
3. DIFERENCIAÇÃO ENTRE DIREITO E MORAL
3.1. Por Reale
A Moral, para se realizar, deve contar com a adesão dos obrigados. Quando se pratica um ato, consciente de sua moralidade, já se aceitou o mandamento a que obedece.
E com o Direito? Haverá sempre uma adequação entre a forma de pensar e agir e o fim que a regra jurídica prescreve? Reale finaliza, dizendo, após uma longa exposição em que um casal de velhos, em situação de insuficiência econômica, procura os seus serviços profissionais para garantir a prestação de alimentos por parte do filho, um industrial, que a negava:
A Moral é incompatível com a violência, com a força, mesmo quando se manifesta juridicamente organizada. O filho que paga, mensalmente, a prestação alimentícia por força do imperativo da sentença, só praticará um ato moral no dia em que se convencer de que não está cumprindo uma obrigação, mas praticando um ato que o enriquece espiritualmente [...] (REALE, 2002, p. 46).

3.2. Grécia e Roma
Os gregos não chegaram a diferenciar, na teoria e na prática, as duas ordens normativas. Platão considerou a “justiça como virtude”. Aristóteles a “justiça como o princípio de todas as virtudes”, apesar de atentar para o seu aspecto social. Portanto, para eles, o Direito e a Moral se equivaliam.
Foi Roma que deu origem à Ciência do Direito, por meio principalmente do primeiro grande sistema jurídico, representado pelo Corpus Juris Civilis (ano 533 d.C.). Essa codificação situou os fenômenos jurídicos distintamente da Moral. Porém, não houve uma teoria diferenciadora. Ao considerar o Direito como “a arte do bom e do justo”, o jurisconsulto Celso confundiu as duas esferas, já que o conceito de bom pertence à Moral. Os invocados princípios “viver honestamente, não lesar a outrem, dar a cada um o que é seu”, formulados nas “Institutas” de Justiniano e considerados como a definição romana de Direito, ressaltam a não diferenciação doutrinária entre o Direito e a Moral, uma vez que “viver honestamente” possui caráter puramente moral. Em contrapartida às duas citações, verifica-se a afirmação do jurisconsulto Paulo: “nem tudo que é lícito é honesto”. Sem diferenciar, o autor fez referência às duas esferas.
3.3. Critérios de Thomasius, Kant, Fichte e Del Vecchio
Em sua obra, Fundamenta Júris Naturae et Gentium, o alemão, Thomasius, formulou o primeiro critério de distinção, pretendendo limitar a área do Direito ao foro externo das pessoas, não concordando que o poder social interferisse nos assuntos ligados ao foro interno, reservado à Moral. Se, de forma geral, os dois processos normativos assim se caracterizam, não seria exato dizer que o Direito só cuida daquilo que se exterioriza, sem levar em conta o mundo da intenção. Em muitas situações, vemos o Direito interessar-se pelo “animus da ação”, pela vontade, como acontece em matéria penal, em que a intenção do agente é relevante à configuração do delito ou em matéria civil, quando atos jurídicos podem ser anulados por dolo, erro, coação ou fraude. Por outro lado, a Moral não se satisfaz somente com a boa intenção, pois exige a prática do bem.
Para Kant, uma conduta está de acordo com a Moral, quando é motivada, unicamente, pelo respeito ao dever, pelo amor ao bem. Quanto ao Direito, este não tem de se preocupar com os motivos que determinam a conduta, senão com os seus aspectos exteriores. Em relação à Moral, ele expõe: “aja de tal maneira que a máxima de teus atos possa valer como princípio de legislação universal”. Ao reconhecer a autonomia da consciência, exige que a conduta possa servir de modelo para o homem, pois somente assim terá valor moral. Já em relação ao Direito: “procede exteriormente de tal modo que o livre uso de teu arbítrio possa coexistir com o arbítrio dos demais, segundo uma lei universal: liberdade”. Infere-se que o fundamento do Direito repousa na liberdade.
Fichte informa que o Direito aceita situações que a Moral não concorda, como no caso de um devedor ser levado à miséria. Entretanto, Del Vecchio transmite que só haveria contradição se o Direito obrigasse a uma conduta não permitida pela Moral. Assevera também que “são conceitos que se distinguem, mas não se separam”.
3.4. Modernos critérios de distinção
3.4.1. Quanto à forma
Especificidade do Direito e a forma abstrata da Moral: enquanto o Direito se manifesta em um conjunto de regras que definem a dimensão da conduta exigida, que determina a forma de agir, a Moral, em suas três esferas, estabelece uma diretiva mais geral.
Bilateralidade do Direito e a unilateralidade da Moral: as normas jurídicas possuem uma estrutura imperativo-atributiva, quando ao impor um dever jurídico a alguém, atribuem um poder a outrem. Cada direito equivale a um dever. Miguel Reale chama de “bilateralidade atributiva”, assim definindo: “uma proporção intersubjetiva, em função da qual os sujeitos de uma relação ficam autorizados a pretender, exigir, ou a fazer, garantidamente, algo”.  A Moral, com uma estrutura mais simples, impõe apenas deveres. Por ela, ninguém tem o poder de requerer uma conduta de outrem.
Exterioridade do Direito e interioridade da Moral: o Direito cuida das ações humanas em primeiro plano e, em função destas, quando necessário, investiga o animus do agente. Já a Moral se preocupa pela vida interior das pessoas, como a consciência, julgando os atos exteriores apenas como meio de aferir a intencionalidade. O espanhol Elias Diaz afirma que “o Direito se limita aos atos exteriorizados, enquanto que a Moral se ocupa tanto dos interiorizados quanto dos exteriorizados.”
Autonomia e heteronomia: segundo Heinrich Henkel, a adesão espontânea ao padrão moral é inerente à Moral autônoma e peculiar à Ética superior, o mesmo não ocorrendo em relação à Moral social, já que o agente se sente compelido a seguir os mandamentos que a sociedade formula aos seus membros. A Moral social, portanto, não é autônoma. Por sua vez o Direito possui heteronomia, quer dizer, sujeição ao querer alheio. O indivíduo não cria o dever-ser, como na Moral autônoma.
Coercibilidade do Direito e incoercibilidade da Moral: entre os processos que regem a conduta social, apenas o Direito é coercível, sendo esta coercibilidade sua principal característica, capaz de agregar a força estabelecida do Estado para garantir o respeito às suas regras. Por seu lado, a Moral não possui o elemento coativo. Apesar disso, as normas da Moral social não deixam de exercer certa intimidação.
3.4.2. Quanto ao conteúdo
A ordem do Direito e o aperfeiçoamento da Moral: o objetivo do Direito limita-se a estabelecer e a garantir um ambiente de ordem, a partir do qual possam atuar as forças sociais. A função primordial do Direito é estrutural: o sistema de legalidade oferece firmeza ao edifício social. A Moral visa ao aperfeiçoamento do ser humano e por isso é absorvente, estabelecendo deveres do homem em relação a si mesmo, ao próximo e, pela Ética superior, para com Deus, abrangendo todas as suas esferas.
A Teorias dos Círculos e do “Mínimo Ético”
Círculos concêntricos: segundo Jeremy Bentham, “a ordem jurídica estaria incluída totalmente no campo da Moral. Os dois círculos seriam concêntricos, com o maior pertencendo à Moral.” Destarte, infere-se que o campo da Moral é mais amplo do que o do Direito, e que este está submetido àquela.
Ilustração da Teoria dos Círculos
Círculos secantes: para Du Pasquier, “a representação geométrica da relação entre os dois sistemas seria a dos círculos secantes. Assim, Direito e Moral possuiriam uma faixa de competência comum e, ao mesmo tempo, uma área particular independente.” Pode-se citar a assistência a filhos, amparada por lei, e a honra aos pais, como exemplos da faixa de interseção, das faixas independentes do Direito e da Moral, respectivamente.
Círculos independentes: Hans Kelsen concebeu os dois sistemas como esferas disjuntas, desvinculando o Direito da Moral. Para ele, “a norma é o único elemento essencial ao Direito, cuja validade independe de conteúdos morais.” Esse pensamento condiz com a teoria positivista do Direito.
Teoria do “Mínimo Ético”: concebida por Jellinek, essa teoria baseia-se na ideia de que o Direito representa o mínimo de preceitos morais indispensável ao bem-estar da coletividade. Para ele, “toda sociedade converte em Direito os axiomas morais estritamente essenciais à garantia e preservação de suas instituições.” A prevalecer este entendimento, o Direito estaria implantado inteiramente nos domínios da Moral, configurando, assim, a hipótese dos círculos concêntricos.
Teoria do Mínimo Ético
4. CONCLUSÃO
O Direito, apesar de se distinguir cientificamente da Moral é enormemente influenciado por ela e dela recebe valorosa substância. Como se observou neste pequeno texto, tal distinção não é tarefa das mais fáceis.
Foram diversas teorias e critérios de diferenciação, formulados a partir do início do século XVIII, todos sendo alvos de tantas críticas que correm o risco de retrocesso histórico à época greco-romana, em que as normas constituíam um todo homogêneo.

REFERÊNCIAS

LIMA, Hermes. Introdução à Ciência do Direito. 32. ed. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 2000.
NADER, Paulo. Introdução ao estudo do Direito. 28. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2007.
REALE, Miguel. Lições preliminares do Direito. 27. ed. São Paulo: Saraiva, 2002.
RUGGIERO, Roberto. Instituições de direito civil. Vol. 1. Trad. Paolo Capitanio. 8. ed. Capinas, SP: Booksller Editora, 1999.
WASSER Advogados. Artigo: Direito e Moral - conceitos. Disponível em http://www.advocaciaassociada.com.br/informacoes.asp?IdSiteAdv=2803&action=exibir&idinfo=1807. Acesso em 14/05/2010.
FERNANDES, R. J. Amorim. Notas de aula. Natal: UFRN, 2009.

Para citar este texto: SOUSA, M. Ticiano Alves de. Distinção entre Direito e Moral. Natal, mai. 2012. Disponível em: <http://mticianosousa.blogspot.com.br/2012/05/distincao-entre-direito-e-moral.html>. Acesso em: xx.xx.xxxx.

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