quinta-feira, 30 de janeiro de 2014

ARTIGO - O INSTITUTO DA TUTELA NO ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO: ASPECTOS PRINCIPIOLÓGICOS E GERAIS

Série acadêmica
Artigo originalmente publicado na Revista FIDES – Revista de Filosofia do Direito, do Estado e da Sociedade , um periódico científico semestral, voltado à publicação de trabalhos científicos  e de iniciação científica – na área jusfilosófica, organizado pelos estudantes e professores do Curso de Direito da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, destinado a fomentar a pesquisa no meio acadêmico brasileiro. Sítio: http://www.revistafides.com.

SOUSA, Marcos T. A. de. O instituto da tutela no ordenamento jurídico brasileiro: aspectos principiológicos e gerais. FIDES, Natal, vol. 4, n. 2, p. 263-280, jul./dez. 2013. ISSN 2177-1383.

O INSTITUTO DA TUTELA NO ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO: ASPECTOS PRINCIPIOLÓGICOS E GERAIS

RESUMO
Aborda os princípios, a responsabilidade civil e os aspectos gerais do instituto da tutela, enfocando que o Estatuto da Criança e do Adolescente incorporou os valores constitucionais, mas preferiu remeter a maior parte desta regulação ao Código Civil. Verifica, no âmbito deste, a maior preocupação com os bens patrimoniais em detrimento da proteção do tutelado. Constata que há de se revisar o Código Civil, para enquadrá-lo aos preceitos da Constituição Federal e ao relevo dispensado por esta às relações familiares, adaptá-lo aos avanços do mencionado Estatuto e prever formas de inserir o Estado como responsável mais incisivo na relação tutelar.
Palavras-chave: Tutela. Criança e Adolescente. Princípios. Responsabilidade Civil.

1   INTRODUÇÃO

A evolução da sociedade atual, no que concerne aos direitos e garantias fundamentais e aos direitos sociais, tem conferido ao instituto da tutela, principalmente após a promulgação da Constituição Federal de 1988, relevante importância, vez que seu fundamento é o dever de solidariedade atribuído ao Estado, à sociedade e aos parentes em favor do tutelado – as crianças e os adolescentes. Primeiro, porque ao Estado cabe a regulação dos respectivos deveres, direitos e garantias; segundo, qualquer cidadão que atenda aos requisitos legais pode ser delegado pelo judiciário para assumir esse dever; e, por último, são os parentes as pessoas inicialmente solicitadas a prestar esse encargo, salvo dispensa legal.
Nesse sentido, a tutela representa um serviço de interesse público prestado por particular em caráter compulsório, imposto pela lei, tal qual a obrigação de prestar o serviço militar, a convocação para ser mesário ou para ser jurado.
Todavia, para o Código Civil atual, a tutela é tratada como um negócio jurídico unilateral, e será demonstrado que este diploma está mais preocupado com a preservação dos bens patrimoniais do tutelado e, por conseguinte, com o órfão rico, restando em segundo plano a proteção integral do vulnerável. Tanto é assim que até admite o casamento do tutor com o tutelado, esquecendo o laço afetivo que os une e uma possível relação paternal ou maternal futura.
Já para o Estatuto da Criança e do Adolescente, a tutela é considerada a segunda etapa da inserção da criança em família substituta – que tem a guarda como a primeira e a adoção como a última –, atribuindo ao tutor ônus de caráter educacional, assistencial e protetivo, em consonância com o que prescreve a Constituição Federal.
Diante disso, o presente artigo tem como objetivo discutir como a tutela é tratada no ordenamento jurídico brasileiro, com ênfase específica nos princípios aplicáveis, na responsabilidade civil dos agentes envolvidos, além dos aspectos gerais que regem o instituto. Para tanto, foram realizadas pesquisas exploratórias tendo por base textos doutrinários, a legislação em vigor consubstanciada no Código Civil, no Estatuto da Criança e do Adolescente e no Código de Processo Civil e em conformidade com a Constituição Federal, além da jurisprudência dos tribunais.

2   CONTEXTUALIZAÇÃO E PRINCÍPIOS

Os antecedentes históricos da tutela remontam aos romanos. Neste período, o pai exercia o poder sobre todos os filhos, independente da idade, e sobre os demais descendentes considerados incapazes. Com o seu falecimento, todos se tornavam livres. Aos menores impúberes e às mulheres, incluindo as púberes, era consentida a designação de tutores, a fim de proteger sua pessoa e seu patrimônio. No tocante às mulheres, a tutoria era exercida “em caráter permanente, para proteger sua condição de debilidade do sexo” (VENOSA, 2003).
Ao longo do tempo, a tutela foi sofrendo adaptações tendentes a proteger os menores incapazes. Ainda influenciado pelo direito romano, o Código Civil de 1916 autorizava o avô paterno ou o materno a nomear o tutor testamentário para os netos. Esta possibilidade foi revogada pelo Código Civil de 2002, pois praticamente já se encontrava em desuso, além de não manter o mesmo direito para a avó, o que afrontava o princípio da igualdade preconizado pela Constituição Federal de 1988.
O ser humano, durante a menoridade, necessita de quem o eduque, proteja, defenda e gerencie os seus bens. O Estado, a quem compete originalmente promover tais desígnios junto às crianças e aos adolescentes – criança até doze e adolescentes até os dezoito anos de idade, no contexto do Estatuto da Criança e do Adolescente –, confia-os aos pais, por meio do poder familiar. Na falta destes, por morte, ausência ou por já não poderem exercer aquela função, o Estado a transfere a terceiro, parente ou não, que será seu tutor. Desta maneira, Rodrigues (2008, p. 398) considera a tutela um instituto de caráter nitidamente assistencial que visa a substituir o poder familiar em face das pessoas cujos pais faleceram, se ausentaram, tiveram o poder familiar suspenso ou dele foram destituídos. Aliás, o Estatuto da Criança e do Adolescente, em seu art. 28, considera a tutela a segunda etapa da inserção da criança em família substituta – que tem a guarda como a primeira e a adoção como a última –, atribuindo ao tutor ônus de caráter educacional, assistencial e protetivo.
A tutela possui natureza jurídica de múnus público, o qual representa um encargo ou ônus, conferido pela lei e pelo Judiciário aos cidadãos em benefício do interesse público e da ordem social. Neste âmbito, ensina Dias (2011, p. 609-610) que a tutela é múnus público concedido, preferencialmente, a um parente ou até a um estranho, para zelar por uma pessoa menor de idade e administrar seus bens, sendo o tutor o titular de um poder-dever sobre a pessoa e os bens do pupilo.
Constata-se, então, que a natureza jurídica da tutela é idêntica à do poder familiar, apesar de constituir um poder mais limitado, haja vista os genitores possuírem um compromisso maior com os filhos em decorrência do vínculo de filiação. Assim, são consideradas mais amplas as prerrogativas do poder familiar em relação à tutela. Em realidade, apesar da semelhança, Gonçalves (2011, p. 188) afiança que esta consiste num sucedâneo daquele e que são incompatíveis, na medida em que, se os pais recuperarem o seu poder ou sobrevier a adoção ou o reconhecimento do filho, cessará a tutela.
A tutela, como instituto de interesse público, visa a suprir as incapacidades de fato e de direito das pessoas que não as possuem e a permitir “a representação ou assistência do incapaz – criança ou adolescente –, a administração dos seus bens e o auxílio que for necessário para a sua manutenção, criação e educação” (WALD; FONSECA, 2009).
Muito embora o Código Civil de 2002, no art. 1.523, IV e parágrafo único, admita o casamento do tutor com o tutelado, esquecendo o laço que os une e uma possível relação paternal ou maternal futura, a tutela deve reger-se por princípios norteadores que privilegiem os direitos humanos fundamentais, sobretudo o direito à saúde, à alimentação adequada, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito e à convivência familiar e comunitária, além de proteger o menor de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão, como ratifica o caput do art. 227 da Constituição Federal.
Quanto ao Estatuto da Criança e do Adolescente, reservou à tutela uma topografia de destaque, pois além de abordá-la ao longo do texto, o instituto está especificado no seu Título II – Dos Direitos Fundamentais –, Capítulo III – Do Direito à Convivência Familiar e Comunitária –, Seção III – Da Família Substituta –, Subseção III – Da Tutela –, o que revela a importância oferecida ao tema.

2.1 Princípios envolvidos

Sem pretender esgotar o tema, visitam-se os mais destacados princípios que enquadram o instituto da tutela: o princípio da dignidade da pessoa da humana, da solidariedade familiar, do melhor interesse, da proteção integral da criança e do adolescente, da isonomia, da universalidade, da reserva do possível, da afetividade, da unicidade da tutela e da boa-fé. Os oito primeiros têm relevo constitucional explícito ou implícito e status de direitos fundamentais.
O princípio da dignidade da pessoa humana, disposto como um dos fundamentos da República brasileira no art. 1º, III, da Constituição Federal, é considerado por Barroso (2010, p.38) como a moral sob a forma de Direito, sendo calcado num mínimo – valor intrínseco[1], autonomia da vontade[2] e valor comunitário[3]– o qual o Estado há de tomar como parâmetro de ponderação, havendo colisão entre direitos, em qualquer nível de interpretação ou aplicação, dado seu caráter neutro e universal.
A dignidade é princípio que conduz e orienta as ações e decisões dos poderes públicos, permeando todos os Títulos da Constituição Federal. Nesta visão, “as normas que formam a organização jurídica contemporânea da família – incluindo a tutela – sempre se espelham na ótica da dignidade da pessoa humana, pois não existe ser humano sem dignidade” (MENEZES, 2010). Ademais, este princípio revela-se um dos principais a fundamentar o Estatuto da Criança e do Adolescente no que concerne à valorização das crianças e dos adolescentes dentro das relações familiares, havendo referência expressa nos arts. 3º, 15 e 18 deste diploma.
O princípio da solidariedade familiar caracteriza-se pela aplicação do disposto no art. 3º, I, da Constituição Federal, a propósito de construir uma sociedade livre, justa e solidária, com reflexo no círculo familiar, vez que o Estado não consegue suprir todas as necessidades de quem precisa – especialmente das crianças e dos adolescentes –, valendo-se dos parentes e dos responsáveis. Neste diapasão, a solidariedade não deve ser apenas patrimonial, mas também afetiva e psicológica. Além do dispositivo citado, este princípio encontra amparo, relativamente ao tema em tela, nos arts. 226, § 8º, e 227 do mesmo diploma normativo.
O princípio do melhor interesse da criança e do adolescente está previsto no art. 227, caput, da Constituição Federal, assim como nos arts. 4º, caput, e 5º do Estatuto da Criança e do Adolescente. O desafio preconizado neste princípio é converter a população infanto-juvenil em sujeito de direitos, para que ela não seja tratada como objeto passivo, mas como titular autêntica e primordial de direitos e garantias.
O princípio da proteção integral da criança e do adolescente encontra-se implícito no art. 227 da Constituição Federal e permeia todo o Estatuto da Criança e do Adolescente. Entretanto, não obstante ser posterior a este diploma, o Código Civil não dispensou o mesmo tratamento ao princípio, praticamente repetindo o que já aduzia o Código Civil de 1916, conforme enfatiza Dias (2011, p. 611):

O instituto da tutela, de forma injustificada, olvidou-se da doutrina da proteção integral, introduzida no sistema jurídico pela Constituição [...]. A maior atenção às pessoas até os 18 anos de idade ensejou uma sensível mudança de paradigma, tornando-se o grande marco para o reconhecimento dos direitos humanos das crianças, adolescentes e jovens. [...].Mas, ao tratar da tutela, a nada disso atentou o Código Civil, limitando-se, praticamente, a copiar a legislação anterior, não se adequando sequer à nova terminologia.

O princípio da isonomia impede tratamento jurídico desigual para situações iguais e representa a viabilização da igualdade material no mundo real, haja vista a insuficiência prática da igualdade formal prevista no art. 5º, caput, da Constituição Federal. Assim, vislumbra-se no seu art. 227 autorização do constituinte a que o Estado promova discriminações objetivas relativas à criança e ao adolescente, sendo o instituto da tutela uma delas.
O princípio da universalidade, implícito no art. 227 da Constituição Federal para o âmbito infanto-juvenil, consagra os direitos da criança e do adolescente como fundamentais, de forma que a proteção a tais sujeitos converta-se em realidade e que estes direitos possam ser garantidos em sua plenitude a todos que deles necessitarem.
Já o princípio da reserva do possível é uma construção do Tribunal Constitucional Federal alemão, ao entender que os direitos a prestações positivas “estão sujeitos à reserva do possível no sentido daquilo que o indivíduo, de maneira racional, pode esperar da sociedade” (KRELL, 2002 citado por SIQUEIRA, 2010). Tal princípio tem sido aplicado hoje pelo Judiciário brasileiro, com esteio no § 1º, art. 5º da Constituição Federal, apenas quando cabível, aos casos envolvendo o direito à saúde, ao acatar a justificativa do Estado de que as necessidades dos indivíduos são infinitas enquanto são finitos os recursos orçamentários para provê-las. O seguinte julgado explicita este e outros princípios aqui analisados, envolvendo o fornecimento de fraldas descartáveis a menor com paralisia cerebral.

APELAÇÃO. ECA. FRALDAS DESCARTÁVEIS. DIREITO A SAÚDE. [...]. Menor que comprovadamente sofre de PARALISIA CEREBRAL, CID G 80.3. Fraldas descartáveis. Com atenção ao peculiar de cada caso concreto, firmou-se o entendimento desta Corte que o fornecimento de fraldas descartáveis está incluído no dever constitucional dos entes estatais de atender integralmente o direito à saúde de crianças e adolescentes. Princípios da Isonomia, da Universalidade e da Reserva do possível. Em razão da proteção integral constitucionalmente assegurada à criança e ao adolescente, a condenação dos entes estatais ao atendimento do direito fundamental à saúde não representa ofensa a princípios, dentre eles, princípio da isonomia, da universalidade e da reserva do possível e nem caracteriza ofensa a restrições orçamentárias. Bloqueio de valores. O bloqueio de verbas públicas para o fim de garantir que o Estado cumpra direito fundamental do cidadão encontra respaldo na Constituição da República e no Estatuto da Criança e do Adolescente. Custas judiciais. Descabe condenação em custas processuais nas ações da competência do juízo da infância e da juventude, nos termos do art. 141, §2º do ECA. Deram parcial provimento.[4]

O afeto, tão presente nas relações familiares, que incluem a tutela, na lição de Tartuce (2012, p. 28), significa interação ou ligação entre pessoas, da qual resulta carga positiva, evidenciada no amor, ou negativa, manifestada pelo ódio. Não alheia à consolidação fática do afeto nas relações familiares, a jurisprudência cada vez mais vem admitindo a afetividade como princípio jurídico, decorrente, sobretudo, da dignidade humana, da solidariedade familiar e da convivência familiar garantida à criança e ao adolescente, independente da origem biológica (arts. 227 e 226, § 8º, da Constituição Federal). O STJ, revisando posição anterior, demonstrou a evolução do tema, causando impacto ao reconhecer o princípio da afetividade em decisão relativa ao abandono afetivo do filho pelo pai, conforme expõe Tartuce (2012, p. 29):

Surgiu mais recente decisão do próprio STJ em revisão à ementa anterior, ou seja, admitindo a reparação civil pelo abandono afetivo (STJ, REsp 1.159.242/SP, Rel. Min. Nancy Andrighi, Terceira Turma, julgado em 24/04/2012, DJe 10/05/2012). Em sua relatoria, a Min. Nancy Andrighi ressaltou que o dano moral estaria presente diante de uma obrigação inescapável dos pais em dar auxílio psicológico aos filhos. Aplicando a ideia do cuidado como valor jurídico, a magistrada deduziu pela presença do ilícito e da culpa do pai pelo abandono afetivo, expondo frase que passou a ser repetida nos meios sociais e jurídicos: ‘amar é faculdade, cuidar é dever’. (Grifos do autor)

O princípio da unicidade da tutela está baseado no art. 1.733 do Código Civil, ao dispor que, no caso de irmãos órfãos, dar-se-á apenas um tutor, ensejando-se facilitar a administração do patrimônio e manter juntos os irmãos, em razão dos laços de afetividade que os unem. No entanto, há mitigação a este princípio nos arts. 1.742 e 1.743 do mesmo diploma normativo, quando inserem, respectivamente, as figuras do protutor[5] e do cotutor[6]. Como enfoca Diniz (2010, p. 1238), o poder do tutor é uno e indivisível, sendo um encargo pessoal. Porém, isso não obsta a cessão da tutela, uma concessão parcial do encargo que se denomina tutela parcial ou cotutoria.
Quanto ao princípio da boa-fé, ele é considerado uma regra de conduta em que as partes devem agir com eticidade, consoante os parâmetros de confiança, honestidade, lealdade e veracidade de ação e informação. Foi ancorado, no âmbito da tutela, pelo art. 1.741 do Código Civil, ao exigir do tutor o cumprimento dos seus deveres com zelo e boa-fé, o que é extensível ao protutor e ao profissional técnico cotutor, referidos acima. A boa-fé pode tornar-se objetiva no caso do art. 1.751 do Código Civil, em lição concebida pelo doutrinador Tartuce (2011, p. 1172):

Antes de assumir a tutela, e diante do dever de informar anexo à boa-fé objetiva, o tutor declarará tudo o que o menor lhe deva, sob pena de não lhe poder cobrar, enquanto exerça a tutoria, salvo provando que não conhecia o débito quando a assumiu [...]. Se o tutor não cumprir esse seu dever em momento oportuno, acaba perdendo um direito de cobrança.

Portanto, haverá a caracterização da boa-fé objetiva do tutor, independentemente de dolo ou culpa, salvo se conseguir provar que desconhecia a dívida ao tempo em que se avocou ao encargo.

3   ESPÉCIES DE TUTELA

A tutela se constitui um negócio jurídico unilateral e deve a nomeação do tutor obedecer a uma forma especial, sem a qual pode restar nula, por imposição dos arts. 107 e 166, IV, do Código Civil. De acordo com a fonte da qual se origina a instituição da tutela, ela pode ser classificada nas espécies a seguir enfocadas: documental, testamentária, legítima e dativa.

3.1 Tutela documental

O direito de nomear o tutor pertence aos pais em conjunto, desde que estejam aptos a fazê-lo (art. 1.729 do Código Civil). Além disso, há nulidade absoluta se a nomeação foi feita por genitor que não detinha o poder familiar ao tempo da morte (art. 1.730 do Código Civil). O parágrafo único do art. 1.729 prescreve: “A nomeação deve constar de testamento ou de qualquer outro documento autêntico”.
Neste diapasão, Dias (2011, p. 612) defende a espécie documental que se materializa quando a nomeação do tutor, por um ou ambos os pais, for levada a efeito por meio de escritura pública ou particular, codicilo ou carta, desde que não haja dúvida a respeito do signatário. Pode-se entender que tal espécie não deixa de ser testamentária, pois, como se verificará a seguir, só produzirá efeito após a morte do nomeante.

3.2 Tutela testamentária

Em conformidade com o que aduz o parágrafo único do art. 1.729 do Código Civil, o testamento é outra forma de nomeação do tutor para a instituição da tutela por qualquer um dos pais. Como o art. 1.863 do mesmo diploma normativo veda o testamento em conjunto, cada um deve nomear o tutor em instrumentos diferentes.
Ademais, é válida a nomeação em testamento nulo ou anulável quando não vulnerada a vontade do nomeante. Deve-se lembrar que, mesmo com a nomeação, a tutela dependerá sempre da aprovação do magistrado. Por outro lado, podem os pais expressamente excluir alguém para o exercício da tutela, tornando-o incapaz para o encargo. Deve o tutor nomeado por testamento ou por documento autêntico, após trinta dias da abertura da sucessão, entrar com pedido em juízo para o controle do ato (art. 37 do Estatuto da Criança e do Adolescente).

3.3 Tutela legítima

Esta espécie de tutela se dá quando a nomeação não foi feita pelos pais, situação em que são convocados os parentes consanguíneos, segundo uma ordem de preferência estabelecida pelo art. 1.731 do Código Civil. Em qualquer dos casos, o juiz escolherá entre eles o mais apto a exercer a tutela, sempre em benefício do tutelado, o que acontece pelos delineamentos dos princípios do melhor interesse, da proteção integral da criança e do adolescente e da afetividade, ainda que o tutor escolhido não esteja no rol legal.
Nessa direção, orienta o STJ, no REsp 710.204/AL, ao declarar que a ordem de nomeação prevista no referido dispositivo é flexível e pode ser modificada segundo o interesse do tutelado, em claro alinhamento com os princípios supra mencionados. Além disso, informa que, na falta de nomeação pelos pais, os tios podem ser nomeados tutores, se for para maior benefício do menor. Veja-se a ementa:

CIVIL. RECURSO ESPECIAL. ORDEM DE NOMEAÇÃO DE TUTOR. ART. 409, DO CC/1916. ART. 1.731 DO CC/2002. TUTELA EM BENEFÍCIO DO MENOR.
- A ordem de nomeação de tutor, prevista no art. 409, do Código Civil/1916 (art. 1.731 do Código Civil/2002), não inflexível, podendo ser alterada no interesse do menor.
- Na falta de tutor nomeado pelos pais, podem os tios ser nomeados tutores do menor, se forem os mais aptos a exercer a tutela em benefício desse. Recurso especial não conhecido.[7]

3.4 Tutela dativa

A tutela dativa deriva de sentença judicial quando da falta, exclusão, remoção ou escusa do tutor legítimo ou testamentário, bem como da ausência de parentes em condições de exercer a tutela, cabendo ao juiz nomear tutor idôneo e residente no domicílio do menor (art. 1.732 do Código Civil). Trata-se, portanto, de uma espécie de tutela subsidiária, por meio da qual as crianças e os adolescentes cujos pais forem desconhecidos, falecidos, ou quando suspensos ou destituídos do poder familiar, terão tutores nomeados pelo juiz ou poderão ser incluídos em programa de colocação familiar (art. 1.734 do Código Civil c/c art. 28 do Estatuto da Criança e do Adolescente).
Em todas as espécies de tutela analisadas, havendo irmãos órfãos, dar-se-á apenas um tutor comum, consoante preceitua o princípio da unicidade da tutela. Porém, caso seja nomeado mais de um tutor por disposição testamentária ou documental e sem indicação de precedência dos irmãos, deve-se entender que a tutela foi confiada ao primeiro que constar no descritivo. Os demais lhe sucederão pela ordem de nomeação em caso de morte, incapacidade, impedimento ou escusa do tutor.

4   IMPEDIMENTO E ESCUSA DO TUTOR

Por impedimento legal, algumas pessoas não podem ser tutoras, seja por incapacidade ou por ilegitimidade para exercer essa função (art. 1.735 do Código Civil). Outras pessoas podem exercê-la, mas têm a faculdade de se escusar (art. 1.736 do Código Civil). Estas regras, incluindo a do art. 1.737 analisada abaixo, são taxativas, pois “tanto para as proibições quanto para as escusas o direito estabelece as respectivas hipóteses, em enumeração taxativa, não se admitindo interpretação extensiva” (LÔBO, 2011).
No primeiro dispositivo, o inciso inicial engloba as pessoas absolutamente incapazes – os menores impúberes, os que não tenham discernimento para praticar atos da vida civil e os que não possam exprimir a sua vontade – e os relativamente incapazes – os menores púberes, os viciados em drogas, os excepcionais e os que tenham discernimento reduzido –. O segundo inciso apresenta uma proibição que não se coaduna com o preceito do art. 1.751 do Código Civil discutido alhures, ao impor que o tutor declare, antes de assumir a tutela, o que o menor lhe deva. Já o sexto inciso, refere-se aos magistrados, escrivães, promotores de justiça ou aos delegados de polícia.
No segundo dispositivo, art. 1.736, as hipóteses de escusa enumeradas “podem ou não ocorrer, havendo um direito potestativo das pessoas elencadas” (TARTUCE, 2011). O primeiro inciso, que se refere às mulheres casadas, admite uma exceção que fere o princípio constitucional da igualdade de gêneros expedido nos arts. 5º, I, e 226, § 5º, da Constituição Federal. Nesta mesma linha, declara o Enunciado 136 da I Jornada de Direito Civil: “Proposição sobre o art. 1.736, inc. I: [...] revogar o dispositivo 24. Justificativa: não há qualquer justificativa de ordem legal – e constitucional –a legitimar que mulheres casadas, apenas por essa condição, possam se escusar da tutela” [8].
Quanto ao segundo inciso, referente aos maiores de sessenta anos, há que se discutir se tal exceção já não é discriminatória, eis que esta idade foi prevista no Código Civil de 1916, época em que a média de vida não alcançava quarenta anos. Atualmente, a longevidade média dos brasileiros atinge mais de setenta e quatro anos de idade[9].
Outro inciso controvertido é o sétimo, concernente aos militares em serviço, porquanto o que deveria ser previsto era a possibilidade de escusa a quem, em função da profissão, tiver pouca disponibilidade de tempo, quais os trabalhadores offshore[10], os que trabalham fora do seu domicílio, os que laboram em regime de turno ininterrupto de revezamento ou apenas no turno noturno, os próprios militares entre outros.
Ademais, o tutor dativo não pode ser obrigado a aceitar tal encargo se houver no lugar de domicílio parente idôneo, consanguíneo ou afim, que possa exercê-lo (art. 1.737 do Código Civil). Deve-se acrescentar que a menção feita pelo dispositivo aos parentes afins é inadequada, “uma vez que não têm direito de pleitear alimentos, nem estão arrolados na ordem de vocação hereditária” (LÔBO, 2011).

5   EXERCÍCIO DA TUTELA

Ao receber os bens da criança ou do adolescente, o tutor cuida de administrá-los, passando a representar o tutelado menor de dezesseis anos de idade, ou assisti-lo após os dezesseis e até os dezoitos anos em todos os atos da vida civil (art. 1.747, I, do Código Civil, c/c art. 142 do Estatuto da Criança e do Adolescente).
Alguns pontos de diferenciação entre o poder familiar e a tutela devem ser verificados, levando-se em conta que aquele só pode ser exercido pelos pais. O primeiro deles é o dever de afetividade que não pode ser exigido do tutor, sobretudo quando não for parente.
Em que pese à exigência do princípio da boa-fé, a falta desse dever de afeto pode espraiar-se a todos os atos praticados pelo tutor, o que justifica a inspeção judiciária aludida no art. 1.741 do Código Civil, a fiscalização dos atos do tutor delegada ao protutor, art. 1.742, e a autorização direta do juiz para os atos elencados no art. 1.748, ou, na falta desta, a sua aprovação posterior.
Outra distinção se apresenta pelo fato de o poder familiar não ser passível de delegação, mas o tutor pode se socorrer do juiz em caso de necessidade de correção do menor. Mais uma das diferenças entre a tutela e o poder familiar se manifesta no tocante à condição de usufrutuário, permitida neste último instituto (art. 1.689, I, do Código Civil).
Os artigos 1.740[11] e 1.747 do Código Civil relacionam as atribuições que ao tutor compete praticar independente de autorização do Judiciário, embora sujeitas a acompanhamento judicial, tanto no que se refere à inspeção do juiz quanto à fiscalização confiada ao protutor.
Mais restritivo, o art. 1.748 do mencionado diploma elenca outros atos a serem praticados pelo tutor, porém com a necessidade de outorga judicial. Ressalta-se que a falta desta gera a ineficácia do ato até a confirmação posterior do juiz, não optando o legislador pela sua invalidade.
Sem prejuízo das situações mencionadas, há atos que o tutor não pode praticar ainda que haja autorização judicial, sob pena de sua nulidade absoluta, segundo disciplina o art. 1.749 do Código Civil. São atos que dizem respeito a interesses conflitantes ou que resultem em empobrecimento do pupilo. Em tais casos, cabe reconhecimento de ofício da nulidade e a ação correspondente é imprescritível, como determina o art. 169 do mesmo diploma.
Os bens imóveis do tutelado podem ser vendidos quando houver para ele manifesta vantagem, desde que tenham prévia avaliação e aprovação judiciais por meio de alvará (art. 1.750 do Código Civil), de maneira que “em havendo a venda sem essa vantagem e aprovação do juiz, o negócio jurídico é nulo de pleno direito, pois é caso de nulidade virtual, eis que a lei acaba proibindo o ato de forma inversa, sem, contudo, cominar sanção, conforme o art. 166, VII, segunda parte, do Código Civil” (Tartuce, 2011).
Com exceção da tutela das crianças e adolescentes em situação de maior vulnerabilidade, referida no art. 1.734 do Código Civil, o tutor faz jus, nos demais casos, a remuneração pelos seus encargos, devendo ser proporcional à importância dos bens administrados. Além disso, ao protutor cabe uma gratificação módica pela fiscalização realizada.
Cumpre acrescentar que a prestação de contas é um dever decorrente da tutela, que subsiste mesmo que os pais da criança ou do adolescente tenham-na dispensado, pois o que se visa com o exercício do múnus público é, justamente, a proteção do tutelado.

5.1 Responsabilidade civil das partes

O tutor responde pelos prejuízos causados ao pupilo pela sua administração. Esta responsabilidade, entretanto, é subjetiva, tendo em vista a dependência de prova de que o ato praticado, ou a sua omissão, ocorreu por negligência, imprudência, imperícia, ou dolo (art. 1.752, primeira parte, do Código Civil).
Deve-se ressaltar que, pelo ato do tutelado, a responsabilidade do tutor é objetiva indireta, sobretudo se alcançar terceiros, conforme os arts. 932, II, e 933 do referido diploma. Como se pode observar, a Lei Civil trata o tutor com extremo rigor, mormente na parte patrimonial, a qual prioriza demasiadamente, tornando a tutela, além de um múnus, um fardo que aumenta com a complexidade dos haveres do pupilo. Neste sentido, observa Pereira, citado por Venosa (2003, p. 421):

A responsabilidade do tutor não se limita, obviamente, ao resultado contábil de sua prestação de contas. Se da sua gestão resultar prejuízo ao tutelado, incumbe-lhe o dever de ressarci-lo, segundo as regras que presidem a composição do princípio da responsabilidade civil: procedimento culposo do tutor, dolo causado, relação de causalidade entre um e outro.

O protutor e as pessoas que tenham concorrido para o prejuízo responderão solidariamente pelos danos causados pelo tutor (art. 1.752, § 2º, c/c arts. 942 e 932, II, do Código Civil). Isso quer dizer que qualquer um deles pode responder pela totalidade da dívida. Essa hipótese de solidariedade legal alcança, além do protutor, o juiz, o cotutor ou qualquer pessoa que haja concorrido culposa ou dolosamente – responsabilidades subjetiva e solidária, portanto – para o prejuízo ao tutelado.
A importância que o legislador dá à intervenção do juiz, por meio do art. 1.744 c/c o art. 1.745, parágrafo único do Código Civil, é tanta que lhe atribui responsabilidade direta e pessoal quando, negligenciando na escolha do tutor, causar prejuízo ao menor. Salienta-se que esta responsabilização não é do Estado, não obstante atue em nome deste, já que responderá com seus bens particulares.
Por outra banda, ensina Lôbo (2011, p. 419) que a lei também atribui responsabilidade subsidiária ao juiz quando não exigir caução suficiente ou não motivar sua dispensa se os bens do menor forem de considerável valor, e ainda quando não remover o tutor que se tornou suspeito. Nestes casos, a responsabilização é subjetiva, todavia exige-se somente a culpa do juiz, e não o dolo, pela regra geral do art. 133 do Código de Processo Civil. Aqui, os bens do juiz só respondem se os do tutor não saldarem o prejuízo causado ao menor.
Destarte, constata-se, de acordo com a análise até aqui realizada, que o Estatuto Civil oferece uma proteção demasiada aos bens patrimoniais do tutelado, o que denota uma priorização do órfão rico, a ponto de os demais itens protetivos que compõem o instituto da tutela tornarem-se secundários, enquanto o contrário recomendam os princípios discutidos.

6   CESSAÇÃO DA TUTELA

A forma regular da extinção da tutela é o advento do termo final do prazo bianual em que o tutor era obrigado a servir, salvo se ele quiser continuar na função e o juiz entender que é o melhor para o infante (art. 1.765 do Código Civil). Pode o tutor continuar com o encargo, desde que o magistrado entenda seja o melhor para o tutelado, tendo como referência os princípios do melhor interesse e da proteção integral da criança ou do adolescente. Neste aspecto, o art. 1.198 do Código de Processo Civil estabelece a manifestação tácita do tutor, quando este deixar transcorrer dez dias do término do prazo de dois anos sem requerer a sua exoneração, exceto dispensado juiz.
Antes do término do prazo, a tutela será extinta, independentemente da intervenção do juiz, nas seguintes situações: quando o tutelado for emancipado ou atingir a maioridade; se conseguir cair sob o poder familiar, no caso de adoção ou de reconhecimento da paternidade ou da maternidade (art. 1.763 do Código Civil); o óbito do tutelado ou sua ausência, quando se presume falecido. Guardando relação com a exposição do inciso I deste dispositivo, colaciona-se o autoexplicativo julgado:

Apelação Cível. Negócios jurídicos bancários. Ação declaratória de inexistência de débito. Instituto da tutela. Cessação das obrigações do tutor. A partir do dia em que a tutelada completou a maioridade, automaticamente cessou as obrigações do tutor, consoante preceitua o artigo 1763, I, do Código Civil. In casu, comprovado que foi Maria Aparecida quem solicitou os empréstimos e que, à época da contratação, já havia completado a maioridade, seu antigo tutor não responde pelas dívidas contraídas. Apelo desprovido.[12]

Convém acrescentar que as hipóteses difundidas neste artigo não são exaustivas, porquanto a cessação da tutela é possível em outras situações, a exemplo do óbito do tutelado ou a sua ausência quando se presume falecido.
Dependem de decisão judicial a exoneração ou remoção do tutor, nas hipóteses que o levam a incapacidade de exercer a tutela, conhecidas posteriormente ao início do exercício ou do desvio da conduta que leve o menor ao prejuízo por negligência ou prevaricação. Subordina-se também à decisão do juiz as hipóteses de escusa legítima cujos motivos sobrevieram após aceita a tutela (art. 1.764, II do Código Civil).
Quanto à remoção evidenciada no dispositivo do art. 1.764, III, do Código Civil, é de bom alvitre, segundo Madaleno (2008, p. 853), considerar que “por igual é a causa de cessação da tutoria por remoção judicial do tutor quando acusado de conduta dolosa ou culposa na administração dos bens e da pessoa do tutelado.” Acresça-se que incumbe ao Ministério Público ou a quem tenha interesse legítimo requerer a exoneração ou remoção do tutor como assinala a redação do art. 1.194 do Código de Processo Civil.
A seguinte decisão do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul enfatiza o explanado e relaciona-a ao Estatuto da Criança e do Adolescente:

Agravo de Instrumento. Ação de Remoção de Tutor c/c Colocação em Família Substituta.
À semelhança da destituição do poder familiar, a destituição da tutela deve ser enfrentada como medida excepcional e, principalmente, drástica. Para que prospere o pleito de destituição deve restar rigorosamente comprovada a ausência de condições, por parte do tutor, para o exercício do múnus, nos termos do art. 24 do ECA, que se aplica tanto ao poder familiar quanto à tutela, por força do comando contido no art. 38 do estatuto. In casu, restou evidenciado que a apelante não possui condições de exercer a tutela, que, hodiernamente, assume prerrogativas e deveres semelhantes aos atinentes ao poder familiar. Recurso Desprovido.[13]

Com efeito, esse julgado fortalece a análise acima, ao interpretar a destituição da tutela, à semelhança da remoção do poder familiar, como medida excepcional, de sorte que deve restar cuidadosamente comprovada a inexistência de condições do tutor para exercer a tutoria conforme o art. 24 c/c o art. 38 do supramencionado diploma.
Salienta-se que uma das maneiras, não incomum no Brasil, que torna o tutor incapaz e, por conseguinte, o sujeita à exoneração do exercício da tutela é o cometimento de crime doloso contra o pupilo, punido com pena de reclusão, como preconiza o art. 92, II, do Código Penal.

7   CONCLUSÕES

Do quanto foi exposto acima, depreende-se que os valores emanados da Constituição Federal de 1988 não foram totalmente incorporados à legislação infraconstitucional, no que tange ao instituto da tutela. O Estatuto da Criança e do Adolescente de 1990, provavelmente pela proximidade temporal de sua sanção em relação à promulgação da Constituição Federal, conseguiu traduzir esses preceitos, porém, remeteu a maior parte da regulamentação do tema em tela ao Código Civil de 1916, vigente à época, o qual ainda guardava resquícios do direito romano.
Esperava-se, entretanto, que o Código Civil de 2002 oferecesse um tratamento, relativo à tutela, à altura do que foi ofertado a outros temas do direito de família e do que foi oferecido pelo Estatuto da Criança e do Adolescente aos demais assuntos atinentes às crianças e aos adolescentes. Porém, como se verificou, isso não ocorreu a contento.
Dessa maneira, o Código Civil não deu à tutela o devido relevo que foi dispensado às relações de família, escusando-se a atentar que este instituto, ao determinar a convivência entre o tutor e o pupilo, tende a gerar tanta afetividade que estes conviventes poderão tornar-se pai e filho. Assim, o supramencionado diploma, além de não se adequar às novas terminologias – ao se referir ao menor absoluta e relativamente incapaz, quando deveria tratá-lo por criança e adolescente –, preferiu priorizar os bens patrimoniais e, portanto, o órfão rico, descurando do tratamento isonômico, da afetividade, do melhor interesse e da proteção integral do vulnerável.
No que concerne à responsabilidade civil, inobstante quase sempre ser subjetiva e isentar o Estado, há um tratamento razoavelmente adequado dispensado pela legislação, o que facilita, de certa forma, a defesa do vulnerável e do terceiro prejudicado na relação de tutela e a subsunção do caso concreto pelo intérprete do direito, embora não raro este se acorra aos princípios constitucionais e do Estatuto da Criança e do Adolescente atinentes ao instituto, em um esforço hermenêutico de interpretação e integração.
Destarte, espera-se do legislador brasileiro uma revisão do instituto da tutela no âmbito do Código Civil, de maneira a enquadrá-lo, integralmente, aos preceitos constitucionais, a adaptá-lo aos avanços do Estatuto da Criança e do Adolescente e a prever formas de inserir o Estado como um responsável mais incisivo na relação de tutoria.

REFERÊNCIAS

BARROSO, Luís Roberto. A Dignidade da pessoa humana no direito constitucional contemporâneo: natureza jurídica, conteúdos mínimos e critérios de aplicação. [s.l.], 2010. Disponível em: <http://www.luisrobertobarroso.com.br/wp-content/uploads/2010/12/Dignidade_texto-base_11dez2010.pdf>. Acesso em: 19 maio 2013.


DIAS, Maria Berenice. Manual de direito das famílias. 8. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011.


DINIZ, Maria Helena. Código civil anotado. 15. ed. São Paulo: Saraiva, 2010.


GONÇALVES, Carlos Alberto. Direito de família. Sinopses Jurídicas. 15. ed. São Paulo: Saraiva, 2011.


LÔBO, Paulo. Direito civil: famílias. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2011.


MADALENO, Rolf. Curso de direito de família. Rio de Janeiro: Forense, 2008.


MENEZES, Elda Maria Gonçalves. Os princípios da solidariedade familiar e dignidade da pessoa humana aplicáveis no âmbito do direito a alimentos. Conteúdo Jurídico, Brasília, DF, out. 2010. Disponível em: <http://www.conteudojuridico.com.br/?artigos&ver= 2.29161>. Acesso em: 07 maio 2013.


RODRIGUES, Sílvio. Direito civil: direito de família. 28. ed. São Paulo: Saraiva, 2008.


SIQUEIRA, Julio Pinheiro F. Homem de. Da reserva do possível e da proibição do retrocesso social. Revista do Tribunal de Contas do Estado de Minas Gerais, Belo Horizonte, v. 76, n.3, jul./set. 2010. Disponível em: <http://revista.tce.mg.gov.br/Content/Upload/Materia/1017. pdf>. Acesso em: 20 maio 2013.


TARTUCE, Flávio. Manual de direito civil. Rio de Janeiro: Forense, São Paulo: Método, 2011.


______. O princípio da afetividade no direito de família: breves considerações. Consulex, Brasília, DF, v.16, ano XVI, n. 378, p. 28-29, out. 2012.


VENOSA, S. de Salvo. Direito civil: direito de família. 3. ed. São Paulo: Atlas, 2003.


WALD, Arnoldo; FONSECA, Priscila M. P. Corrêa da. Direito civil: direito de família. 17. ed. São Paulo: Saraiva, 2009.


THE INSTITUTE OF GUARDIANSHIP IN BRAZILIAN LAW: PRINCIPLES AND GENERAL ASPECTS

ABSTRACT
Discusses the principles, the civil responsibility and the general aspects of the institute of guardianship, focusing on the Statute of the Child and Adolescent incorporated constitutional values, but preferred to refer most of this regulation to the Civil Code. Checks, within this, the biggest concern with capital assets over the protection of the ward. Notes that there is to revise the Civil Law, to fit it to the precepts of the Constitution and the relief dispensed by this family relations, adapting it to the advancements of the said Statute and provide ways to enter the State as responsible sharper in relation protect.
Keywords: Guardianship. Child and Teenager. Principles. Civil Responsibility.




[1]Cumpre destacar que o valor intrínseco da pessoa humana, no plano filosófico, é o elemento ontológico da dignidade, traço distintivo da condição humana, do qual decorre que todas as pessoas são um fim em si mesmas. Do valor intrínseco decorrem direitos fundamentais como o direito à vida, à igualdade e à integridade física e psíquica.
[2]A autonomia da vontade, no plano da moral, é o elemento ético da dignidade humana, associado à capacidade de autodeterminação do indivíduo, ao seu direito de fazer escolhas existenciais básicas. A autonomia tem uma dimensão privada, subjacente aos direitos e liberdades individuais, e uma dimensão pública, sobre a qual se apoiam os direitos políticos. Condição do exercício adequado da autonomia pública e privada é o mínimo existencial, isto é, a satisfação das necessidades vitais básicas.
[3]O valor comunitário é considerado o elemento social da dignidade humana, identificando a relação entre o indivíduo e o grupo, está ligado a valores compartilhados pela comunidade, assim como às responsabilidades e deveres de cada um. Para minimizar os riscos do moralismo e da tirania da maioria, a imposição de valores comunitários deverá levar em conta (a) a existência ou não de um direito fundamental em jogo, (b) a existência de consenso social forte em relação à questão e (c) a existência de risco efetivo para direitos de terceiros.
[4]TJRS. AC 70041663170. Oitava Câmara Cível. Rel. Rui Portanova. j. 28/04/2011. DJe. 09/05/2011.
[5]Protutor é aquele que, nomeado pelo juiz, fiscaliza os atos do tutor, conforme preconiza o art. 1.742 do CC.
[6]Cotutor é o especialista técnico, pessoa física ou jurídica, que, delegado pelo tutor e sob aprovação do juiz, exerce parcialmente a tutela, segundo o art. 1.743 do CC.
[7]STJ. RESP 710.204/AL. Terceira Turma. Rel. Min. Nancy Andrighi. j. 16/08/2006. DJU. 04/09/2006.
[8]BRASIL. I Jornada de Direito Civil, de 12/09/2002. Disponível em: <http://www.stj.jus.br/publicacaoseriada/index.php/jornada/article/viewFile/2612/2690>. Acesso em: 20 maio 2013.
[9]Para informações complementares, conferir: BRASIL. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE. Em 2011, esperança de vida ao nascer era de 74,08 anos. Rio de Janeiro: [s.n], 29 nov. 2012. Disponível em: <http://saladeimprensa.ibge.gov.br/noticias?view=noticia&busca=1&dnoticia=2271>. Acesso em: 19 maio 2013.
[10]Trabalhador offshore é aquele que exerce a sua profissão em uma unidade marítima fixa ou móvel.
[11] Confere-se no Código Civil, art. 1.740, que: “Incumbe ao tutor, quanto à pessoa do menor: I - dirigir-lhe a educação, defendê-lo e prestar-lhe alimentos, conforme os seus haveres e condição; II - reclamar do juiz que providencie, como houver por bem, quando o menor haja mister correção; III - adimplir os demais deveres que normalmente cabem aos pais, ouvida a opinião do menor, se este já contar doze anos de idade.”
[12]TJRS. AC 70031352966. Décima Segunda Câmara Cível. Rel. Des. Umberto Guaspari Sudbrack. .j. 22/09/2011. DJe. 26/09/2011.
[13]TJRS. AI 70010800563. Oitava Câmara Cível. Rel. Des. Catarina Rita Krieger Martins. j. 30/07/2005. DJe. 15/07/2005.

sábado, 23 de novembro de 2013

OS DIREITOS FUNDAMENTAIS

Série acadêmica
Fichamento do texto: “Os Direitos Fundamentais”. BONIFÁCIO, Artur Cortez Direito Constitucional Internacional. São Paulo: Método, 2008. Cap. 2.
OS DIREITOS FUNDAMENTAIS
ASPECTOS TEÓRICOS
Fundamentais são os direitos, os quais, por essência ou natureza, são imprescindíveis à afirmação do homem e de sua dignidade, reconhecidos como tais pelo Estado e pela sociedade em qualquer circunstância de tempo e lugar, não se destinando a se privilegiar setores sociais individualizados, dirigindo-se a todos os homens.
Expressões como direitos fundamentais, direitos do homem, direitos humanos, liberdades públicas, direitos subjetivos públicos, direitos individuais, direitos políticos e civis são utilizadas sem distinção de forma ambígua e imprecisa. Além de outros conceitos aproximados da noção de direitos fundamentais como: direitos da personalidade, interesses difusos, garantias institucionais e outros.
Jorge Miranda menciona três designações com radical comum, centrado no direito natural: direitos do homem, direitos fundamentais ou liberdades públicas.
Os direitos fundamentais, sob determinado ponto de vista, são deduzidos dos direitos naturais, da concepção do que a natureza humana indica como fundamental. As liberdades públicas têm, em essência, um direito natural, a liberdade, nos limites regulamentares traçados pelo Estado.
Já a expressão “direitos do homem” ganha visibilidade porque tem por referenciais revoluções, lutas e conquistas, com afetação jurídica em favor do homem, da defesa dos seus direitos de liberdade, igualdade e propriedade.
As declarações de direitos inglesas, americanas e francesas, dos séculos XVII e XVIII, são indicativas da elaboração de um conceito que tem como base teórica e filosófica o jusnaturalismo e a concepção individual e liberal dos direitos do homem.
Nesse período, os direitos do homem, de caráter natural, eram encarados como uma resistência ao Estado absolutista. Após a Segunda Grande Guerra, com a Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948), tem-se uma visão de homem num contexto maior, da humanidade.
Na referida declaração de 1948, temos a utilização invariável de direitos do homem, enfatizando o universalismo e a preocupação com questões relacionadas à humanidade e a dignidade humana.
Em contraposição aos direitos naturais, é utilizada, em países anglo-saxões, a expressão “direitos civis”, em nome da defesa dos direitos individuais, o que reduz a dimensão dos direitos fundamentais, esquecendo a importância dos direitos sociais, institucionais, de interesses difusos e outros.
Os direitos subjetivos públicos mostram uma qualidade de direitos que pertencem ao indivíduo, garantidos pelo Estado, enquanto ordem jurídica objetiva. Assim a ênfase que se dá a esse conceito é muito mais na organização do Estado e na concessão de direitos ao indivíduo do que na atribuição de direito ao homem como direito próprio.
Os direitos da personalidade, estudados no âmbito do direito civil, dizem respeito a direitos de extrema harmonização com os fundamentais, na medida em que se referem a direitos intrínsecos do homem, desde o nascimento, ou seja, os direitos à proteção de sua identidade moral, física, à imagem, à intimidade, à vida, à integridade pessoal, à liberdade, os quais são constitucionalmente assegurados.
Os interesses difusos têm afinidade com os direitos fundamentais, sendo costume identificá-los na amplitude do seu conceito. Um interesse difuso tutela vontades de uma coletividade, e o resultado beneficia a todos, pois a vantagem obtida quanto ao objeto é de todos, indivisivelmente.
As garantias institucionais, segundo Carl Schmitt, distinguem-se dos direitos fundamentais, na medida em que consistem na proteção constitucional a instituições juridicamente reconhecidas ou a certos institutos ou fins, num ambiente amparado pelo Estado.
Na Constituição brasileira, os direitos e garantias fundamentais estão no Título II, não havendo uma separação metodológica, o que cabe à doutrina desvendar quais são os direitos e onde estão as garantias. Aqueles indicam a tutela de posições jurídicas subjetivas; já as garantias referem-se a um estágio posterior, que viabiliza os direitos declarados, assegurando a sua realização.
A expressão “direitos individuais” já não atende a todas as dimensões  dos direitos fundamentais, pois não abrange segmentos dos direitos fundamentais dirigidos às instituições ou aos entes coletivos e às pessoas jurídicas.
Com o Estado liberal, houve uma evolução na positivação das conquistas individuais, políticas e históricas dos direitos humanos nas Constituições Estatais, exigindo-se do Estado uma abstenção em respeitam  às liberdades públicas.
Com o Estado social, consolidou-se a inclusão dos direitos sociais, a princípio nas Constituições Mexicana (1917), Russa (1918) e Alemã (1919), reclamando-se do Estado uma atuação em favor dos direitos fundamentais.
Na perspectiva de constitucionalização, acompanham-se os estágios vividos pelo Estado: no estado de direito, direitos individuais; no estado social, direitos sociais; no estado de direito democrático, ambos e outros decorrentes da igualdade, liberdade e solidariedade.
Pode-se afirmar que os direitos fundamentais são abrangidos pela Constituição, tipificados ou não, segundo uma textura constitucional aberta.
Os direitos fundamentais são, portanto, os direitos naturais ou universais do homem, individual ou coletivo, constitucionalizados, é dizer, dispostos na Constituição formal e material.
O DUPLO SENTIDO DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS
Duas categorias de normas se sobressaem, com reflexos na ordem constitucional de qualquer Estado: direitos fundamentais em sentido formal, positivados na Constituição, e direitos fundamentais em sentido material, acrescidos pela cláusula aberta, com vinculação substancial ao regime e princípios da Carta Magna e aos tratados internacionais de direitos humanos.
A fórmula codificada de seleção e enumeração dos direitos fundamentais, em sentido formal, tem sido seguida por inúmeras Constituições, o que se constitui um aspecto significativo do Constitucionalismo.
No Brasil, a Constituição de 1988 traz o Título II, referente aos direitos fundamentais, logo em seu início, demonstrando inequivocamente a opção estatal pela garantia desses direitos.
Além disso, na Constituição brasileira, os direitos fundamentais se apresentam na forma mais rígida, ao integrarem uma parte imune à ação do poder reformador (art. 60, § 4º, IV, CRFB). Eles se constituem num núcleo normativo de garantia de identidade do Estado, limitador do poder de reforma, assim como da continuidade e estabilidade constitucionais.
O sentido formal alcança também a regra de que esses direitos têm aplicabilidade imediata e seu conteúdo normativo orienta e limita a ação dos Poderes Públicos.
Os direitos fundamentais, considerados em sentido material, congregam todos os direitos fundamentais atrelados pelos radicais justificadores de sua materialidade e por aqueles que a Constituição tomou como tais.
Na Constituição brasileira, a partir da tutela dos bens vida, liberdade, igualdade, segurança e propriedade, são revelados vários direitos subjetivos, ramificando e reconduzindo à tutela da cidadania e dignidade humana.
O sentido material dos direitos fundamentais implica em reconhecer as suas categorias: direitos declarados, liberdades, garantias, direitos sociais, direitos institucionais, direitos de participação política, ou no revelar de posições jurídicas tuteladas em favor de seus titulares.
As normas de direito fundamental, em sentido formal, formam um subconjunto das normas desses direitos, em sentido material, no sentido de que estas contêm aquelas.
Há, na maioria das Constituições, direitos fundamentais implícitos, tacitamente incluídos, cuja garimpagem resulta da interpretação integrada das proposições constitucionais. Tais direitos, bem como a criação de outros, se relacionam com a atividade judiciante e com o poder de decisão dos juízes.
Existe um entrelaçamento de normas de direitos fundamentais não escritas na Constituição, fora do catálogo, mas a ela atreladas por afinidade material, considerando a sua textura aberta.
Leis ordinárias, tratados internacionais ou mesmo normas de caráter administrativo podem contemplar direitos fundamentais, ainda que não sejam formalmente, porém desde que afetadas pelo radical da dignidade da pessoa humana.
O art. 5º, § 2°, da CRFB, reza que a enumeração do catálogo dos direitos fundamentais não exclui a existência de outros decorrentes do regime e dos princípios adotados, assim como dos tratados internacionais que o Brasil seja parte.
Há preceitos incluídos no catálogo que não consolidem um direito fundamental?
O autor considera que as normas dispostas no catálogo serão tratadas com a visão de afinidade material, por meio da qual as normas configuradoras dos direitos fundamentais atraem-se para a raiz comum.
A compatibilidade material será mais facilmente detectável se conhecermos as dimensões dos direitos fundamentais. Na primeira dimensão, temos os direitos subjetivos individuais, civis e políticos, colocando em posições antagônicas o indivíduo e o Estado, sendo a geração do Estado Liberal, culminada pelos desdobramentos da Revolução Francesa.
Na segunda dimensão, o núcleo material volta-se à igualdade, que se consuma pelos direito econômicos, sociais e culturais. Representada pelas Constituições do Estado Social, com ações positivas em favor da sociedade, iniciadas pelas Constituições Mexicana (1917), Soviética (1918) e de Weimar (1919).
A terceira geração é direcionada à humanidade, como o direito à paz, à fraternidade, ao meio ambiente, à comunicação, de proteção do patrimônio comum da humanidade e ao desenvolvimento.
Os direitos de quarta dimensão são produtos do mundo globalizado, como o direito à democracia, à informação e ao pluralismo.
Para reconhecimento de um fundamento material de direitos fundamentais, tem-se a convicção de que o texto constitucional e a sua aplicação real tenderão a ampliar o rol dos desses direitos, conforme as dimensões que se forem acrescendo.
CARACTERÍSTICAS DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS
Os direitos fundamentais são aqueles caracterizados pela essencialidade à pessoa humana, individualmente ou em comunidade, em que a sua ausência despe o homem de dignidade.
Esses direitos são inatos, intransferíveis, irrenunciáveis, inegociáveis, pois são muito caros ao homem e representam bens jurídicos de extrema relevância à pessoa humana.
A Constituição brasileira, no âmbito dos direitos fundamentais, tem por princípios a universalidade (art. 5º, caput), a igualdade (arts. 5º, caput, e 3º, IV), a proteção judicial (art. 5º, XXXV), a imodificabilidade (art. 60, § 4º, IV), a aplicação imediata (art. 5º, § 1º), a textura aberta (art. 5º, § 2º) e a vinculação de todos os poderes aos seus comandos.
As razões e a natureza dos direitos fundamentais recomendam caracterizá-los em históricos, irrenunciáveis, inalienáveis, e imprescritíveis. Às vertentes dos direitos humanos, acrescenta-se a universalidade, a indivisibilidade, a inviolabilidade, a interdependência, a complementaridade e a efetividade.
A historicidade advém das lutas revolucionárias históricas, e da sua positivação, no curso de sua trajetória evolutiva.
Os direitos fundamentais são irrenunciáveis porque aderem à essência da dignidade do homem, não se podendo renunciar ao direito de viver, à liberdade, aos direitos da personalidade.
A inalienabilidade diz respeito ao fato de não se poder dispor dos direitos fundamentais, assim como se passa na órbita do direito privado, é dizer, não se materializam pelo valor patrimonial, econômico e financeiro. Frutos da dignidade humana, eles não se transferem.
São imprescritíveis, sendo exigíveis a qualquer tempo, por serem personalíssimos.
Os direitos fundamentais são invioláveis, impondo diretrizes e regramentos que devem ser obedecidos por todas as autoridades públicas, pelas instituições privadas e sociedade em geral.
A efetividade dos direitos fundamentais encontra-se no plano de sua realização prática, apesar da efetivação dos direitos econômicos, sociais e culturais, já que dependem de recursos e substanciam uma igualdade material.
Na interdependência, os direitos são interdependentes com a relação entre um direito declarado e a garantia que o assegura.
Já a complementaridade exige uma análise global, porquanto a natureza humana deve ser vislumbrada em sua totalidade, significando que o intérprete da norma de direito fundamental deve ter em mira o atendimento de todas as suas dimensões.
OS DIREITOS FUNDAMENTAIS NA ORDEM INTERNA E NA ORDEM INTERNACIONAL
Os direitos fundamentais se projetam identicamente nos dois âmbitos citados, pois eles são também direitos humanos positivados.
Os fundamentos materiais dos direitos fundamentais são os mesmos em qualquer parte, porque são partes do processo político e histórico dos direitos humanos e do constitucionalismo.
Questões ecológicas, econômicas, políticas e de humanidade, que eram até bem pouco tempo visualizadas isoladamente, começam a aproximar o direito constitucional do direito internacional público pelo viés dos direitos humanos.
Internacionalizar a Constituição ou constitucionalizar o direito internacional parte naturalmente da política externa universal dos Estados em favor dos direitos humanos fundamentais. No plano internacional, esses direitos são de uma matriz superior, porque voltados à consecução de uma vida digna a cada homem do planeta.
A universalidade e indivisibilidade saíram como grandes traços da Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948, e marcaram o reconhecimento de que, para ser titular de direitos, basta ser humano.
Um fenômeno cultural de natureza universal e com substancialização material na política de proteção dos direitos fundamentais vai se sobrepondo às ações internas, num processo de absorção cujos resultados já são visíveis, sendo a criação do Tribunal Penal Internacional apenas um deles.
No Brasil, a constitucionalização vem seguindo esses passos, com um significativo avanço na atual Constituição. O constituinte brasileiro, acompanhando a tendência global, percebeu o momento e não se fechou à dialética instigante do tema.
UNIVERSALIDADE
Os direitos fundamentais são dirigidos à espécie humana, à sociedade universal, ao homem e à sua dignidade, não excluindo ninguém. É por isso que as Constituições, ao tratar do tema, em nome da universalidade, garantem a sua aplicação a nacionais e a estrangeiros.
A proposta universal dos direitos fundamentais, que se imbrica com a dos direitos humanos, tem resistências de ordem cultural dignas do relativismo cultural, no qual a religião ou os costumes étnicos e políticos se sobrepõem aos ideais de igualdade e liberdade.
Com a universalidade vem a indivisibilidade. Já a amplitude material dos direitos fundamentais, não admite que, ao se intentar a conquista de uma sorte de direitos, se imagine a desistência dos demais.
NATUREZA JURÍDICA
No âmbito de uma teoria geral dos direitos fundamentais, encontram-se diversas categorias de direitos em razão da posição jurídica do indivíduo em relação ao Estado.
Três observações precisam ser colocadas: os direitos fundamentais constituem, em sua maior parte, um catálogo, podendo ser tomados subjetiva e objetivamente, e, em função disso, compõem dois grandes grupos: os direitos negativos ou de defesa e os direitos positivos ou de prestação.
O primeiro aspecto, a Constituição brasileira obedece a uma tendência universal de movimento constitucionalista e positivação de uma declaração de direitos fundamentais em catálogos.
Em outro prisma, os direitos fundamentais obedecem a uma dupla dimensão, subjetiva e objetiva. Na dimensão subjetiva, são direitos que o seu titular pode exigir do Estado ou de um particular, consistindo em interesses, vontades e faculdades do indivíduo, constitucionalmente previstas.
Já a dimensão objetiva consiste nos direitos assegurados pelo Estado em favor da comunidade, na consecução dos seus valores e fins.
Com a terceira perspectiva, os direitos fundamentais podem ser divididos em dois grupos: os direitos de defesa ou negativos e os de prestação ou positivos.
A natureza jurídica implica a constitucionalização de direitos com as qualidades referidas, reivindicando uma fragmentação material baseada em direitos naturais e humanos, reconduzidos ao princípio maior de proteção da dignidade da pessoa humana. Destarte, são direitos subjetivos de liberdade, de igualdade, de fraternidade, de defesa da paz social, de interesses difusos, de democracia universal, enfim, a integração humana na ordem internacional.

O SISTEMA JURÍDICO

Série acadêmica
Fichamento do texto: "O Sistema Jurídico". BONIFÁCIO, Artur Cortez. Direito Constitucional Internacional. São Paulo: Método, 2008. Cap. 1.
O SISTEMA JURÍDICO
O SISTEMA JURÍDICO E O FIM DO DIREITO: A QUESTÃO DA DECIDIBILIDADE
O enfoque dado ao direito, segundo o autor, se reflete na eficácia jurídica e social dos direitos fundamentais, contribuindo, para esse fim, a mobilidade e a plasticidade do sistema, num contexto de positividade em que a Constituição atrairá a legitimação dos poderes constituídos, o que garante a segurança jurídica.
Independente de se considerar as características de complexidade, indeterminação, vaguidade, ambiguidade e multivocidade, que compõem as possibilidades de análise do conceito de direito, tem-se presente a ideia mínima do sistema normativo, no qual comportamentos e condutas de convivência são regulados sob variáveis estabelecidas previamente.
O direito tem um conceito científico, que pode ser constatado segundo enunciados próprios, métodos compatíveis com sua natureza e objetos específicos.
A linguagem do direito traz um discurso comunicativo por intermédio da cultura, da produção jurídica, do legislador, das fontes do direito e do aplicador da norma. Esta linguagem normativa, ao ser aplicada com harmonia e contextualização, conduz a um sentido voltado para instrumentalização do direito, envolvendo uma atividade interpretativa.
Compete à dogmática os conceitos e o alcance semântico dos signos, e ao aplicador da norma a especialização do direito quando se volta a problemas de decisão.
Adverte-se que o sistema jurídico, tridimensionalmente, envolve uma realidade de fato (ser), um dever-ser (norma), fincado em fundamentos materiais consistentes (valor), o que fomenta a decisão.
O direito é um fenômeno relacional em que as pessoas reclamam prestações materiais uma das outras ou do Estado, que podem ser alcançadas pacificamente ou não. Neste caso, a proteção judiciária pode ser acionada, por meio do direito subjetivo público, a fim de que o Estado-juiz se pronuncie imparcialmente com produção normativa secundária e individuada para o caso concreto.
A criação do intérprete, na saída do sistema jurídico após a valoração e concretização, é uma norma de decisão política do direito, expressão de um Poder Constituído.
As decisões no âmbito dos poderes internos, mesmo que em última instância, dissociados dos direitos fundamentais positivados internamente na Constituição ou externamente, mas com correspondente explícito ou implícito no texto Magno, podem e devem ser reexaminadas, por meio de uma análise de validade e eficácia.
A relação dialética entre a legalidade e a legitimidade passa por um esforço exegético que legitima as ações do Estado ao aprovar os seus próprios valores, decorrentes dos fatores reais de poder, signatários de um momento histórico, econômico, social e político, que respaldou a produção de um documento fundamental munido de força normativa e norteador da ação do Juiz e responsável pela validade e equilíbrio do sistema jurídico.
A Constituição e os valores e princípios adotados por ela legitimarão as ações do Estado no exercício de quaisquer de suas funções.
O direito deve ser a expressão da legalidade, porém, enquanto norma de decisão, deve se aproximar do legítimo para buscar o sentido da justiça. 
Como linguagem voltada para a sociedade, o direito deve redirecionar o seu exame metodológico e científico para os fins de seu sentido pragmático, o que passa pelo trabalho do intérprete, respaldado pelo Estado Democrático de Direito, pelo respeito dos direitos fundamentais do cidadão, sob o manto da supremacia constitucional.
A FUNÇÃO SUPREMA DA CONSTITUIÇÃO NO SISTEMA JURÍDICO
Em sentido normativo, a Constituição é um sistema de normas formais e materialmente superiores, fonte de produção de outras normas e conforma a ação dos poderes públicos. Ela é a norma das normas, o instrumento jurídico de validação das normas e o seu referencial de manutenção no sistema.
A Constituição é composta por normas que regulam a estrutura do Estado, a forma de organização do poder, a proteção dos direitos fundamentais e a abertura para as relações internacionais.
O princípio da supremacia da Constituição, pilar do sistema jurídico, é resultado da autoridade legitimada pelo processo constituinte. Este princípio realça os aspectos: i) disciplina a existência e o funcionamento dos órgãos e agentes que compõem a estrutura do Estado; ii) é modelador das relações jurídicas em geral; iii) dele se defere uma conformação dos demais ramos do direito; iv) direciona a interpretação do direito e permite a defesa da Constituição, pelo controle de constitucionalidade.
O referido princípio direciona o exercício das quatro funções do Estado: política, legislativa, administrativa e judiciária.
A rigidez e a dificuldade de modificação do texto constitucional estabelecem um nexo de causa e efeito com a supremacia. Tal binômio é essencial para a tranquila convivência democrática, trazendo a garantia de manutenção dos enunciados normativos e de valores caros à sociedade.
O princípio da supremacia é basilar à interpretação Constitucional, tendo primazia lógica e cronologicamente. Assim, órgãos do Estado e juristas conduzem suas atividades interpretativas, adequando-as aos valores dos direitos fundamentais da Constituição. O princípio destina-se também a todos que trabalham com a ciência jurídica e com o direito positivo, assim como aos cidadãos comuns.
Um dos fundamentos do controle de constitucionalidade, o princípio da supremacia da Constituição constitui-se em mecanismo de defesa dos valores constitucionais. Feri-lo é fragilizar a sociedade e o Estado, porquanto ali estão depositados os mais puros fundamentos da existência de uma determinada formação estatal.
O sistema brasileiro de controle constitucional é composto pelo Supremo Tribunal Federal, encarregado do controle direto e concentrado, cujos efeitos se estendem a todos os incluídos na mesma situação jurídica.
Já os juízes singulares exercem controle de constitucionalidade difuso em decisões restritas a caso concreto, podendo chegar ao STF por meio de recurso extraordinário.
A supremacia da Constituição comanda relações de integração entre a ordem jurídica anterior e a nova Constituição, novando as normas materialmente compatíveis e revogando as que com ela são incompatíveis, tendo em vista a soberania do poder constituinte para repetir ou não princípios anteriormente vigentes.
DO DIREITO INTERNO E DO DIREITO INTERNACIONAL. MONISMO E DUALISMO, A NOVA CONCEPÇÃO DA ORDEM JURÍDICA
Com a Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948, seguida pelos pactos de direito civis e políticos e de direitos econômicos, sociais e culturais, seguiu-se um sistema jurídico universal de proteção da dignidade da pessoa humana.
Manifesta-se um direito voltado para a preservação dos valores fundamentais vinculados ao conceito de dignidade tais como a vida, a segurança, a liberdade, a igualdade, a propriedade, a saúde, a educação, o meio ambiente, o trabalho e outros.
As normas internas dos Estados e as de direito internacional público convivem num sistema jurídico único ou são sistemas separados, ou há combinação entre eles?
Há os que defendem, como Kelsen, a existência de um só sistema jurídico, uma só unidade e uma só ordenação, em que o direito interno se subordina ao Direito internacional, como uma parte do todo, numa posição que se alinha ao monismo.
De outro lado, os que seguem Heinrich Triepel indicam a existência de duas ou mais ordens jurídicas, separadas e com diversidade de fontes (leis internas x tratados), destinatários (sujeitos individuais e coletivos x Estados) e mecanismos de garantia (mecanismos internos de sanção x mecanismos de sanção pouco eficientes), que se define como dualismo.
No monismo, com primado do direito interno, a ordem existente é a ordem estatal interna, que coexiste com as normas de direito internacional público, porém podendo ser revogadas a qualquer tempo.
Já o monismo, com primado de direito internacional, constitui-se em dois pontos de vista: no primeiro, a norma de direito interno é totalmente subordinada à de direito externo, pois nesta estaria a validação de todo o sistema jurídico; o monismo moderado atribui à norma de direito interno que contrarie a norma externa o caráter de infração a ser resolvida pelos próprios meios oferecidos pelo sistema.
O dualismo encontra dificuldades práticas, não oferecendo respostas a situações tópicas como a validação dos princípios e costumes de direito internacional geral ou comum. A subordinação do direito externo ao direito interno prevê a integração da norma de direito internacional ao direito interno, quando terá sua eficácia garantida.
Entre essas opções constitucionais, o Brasil optou por uma clara abertura ao direito internacional com positivação de uma série de princípios de jus cogens, no art. 4º, da CF, que funcionam como regras imperativas internamentes. Destarte, a nossa Constituição seguiu na direção de um monismo moderado, mas respeitando a ordem interna naquilo que for produto de um sistema social e político.
O DIREITO ENQUANTO ORDEM UNIVERSAL DE JUSTIÇA
Para ser chamado de direito, um sistema de normas, regras e princípios requer a presença da sociedade, destinatária dos seus fins de justiça e âmbito de incidência dos seus comandos, sendo o direito um fenômeno humano que acompanha a evolução social.
Práticas do direito continuaram em grupos sociais menores e em segmentos da sociedade, formando-se microssistemas jurídicos em que há espécies de sanção e respeito à autoridade, o que nos leva a uma dupla conclusão: i) O direito conduz a toda uma sorte de valores e princípios superiores que consolidam o poder em qualquer âmbito social, institucionalizado ou não; ii) A experiência jurídica antecede à noção de sociedade política, de poder político e de Estado.
O direito, mediante juristas, intérpretes e aplicadores, vem constituindo-se em frente contra desmedidas interferências do poder econômico, com sacrifício da sociedade.
A união do direito com a justiça deve ser extrema, sendo impossível imaginar um “divórcio”; pelo contrário: o direito tem a sua legitimidade vinculada à justiça, a qual se cede do direito para realizar os seus intentos de efetivação do bem comum.
A justiça é um valor diferenciado formado por vários valores que se integram à sociedade no momento de sua história. Ela é densificada por valores superiores como a liberdade, a igualdade, a solidariedade.
Temos a justiça nos seguintes sentidos: de virtude universal; de razão formal/material, distributiva/comutativa de proporcionalidade, mérito, redistribuição, igualdade, necessidade, entre outras conotações.
Na medida em que foi elaborada nova leitura no papel do homem, a aplicação da justiça, na comunidade internacional, deixou de ser vontade dos Estados. Nesse sentido a justiça é um valor superior que tem origem anterior ao ordenamento jurídico, sendo um valor de direito natural.
Ao analisarmos a Constituição brasileira, encontramos verdadeiras pautas de justiça, presentes desde o Preâmbulo e inseridos em todo o seu texto. Destarte, estamos diante do valor justiça que o Direito Constitucional incorporou e que o direito internacional elegeu como meta mais recente
O direito deve descortinar os valores da sociedade interna e internacional e direcioná-los para a produção normativa, traduzindo-os em legitimas formas de expressão de justiça. O direito serve-se deles para a realização de sua finalidade, o que já asseguraria o seu caráter universal de justiça.
No pós-positivismo, as regras e princípios de direito natural transformam-se em normas jurídicas positivadas nos textos internos e nos tratados internacionais, sempre quando o conteúdo material volta-se para a proteção dos direitos humanos.
A ordem universal de justiça tende a transmutar-se em uma ordem universal de concretização da justiça, por meio dos órgãos internacionais e internos de aplicação, uma vez que normas de direito natural são positivadas pelos Tratados Internacionais e pelas Constituições.
A ação do Poder Judiciário nos casos concretos deve estar a serviço do direito, devendo acompanhá-lo com pressupostos de postulados constitucionais de um Estado Democrático de Direito, num plano interno, e os imperativos de direito internacional dos tratados de direitos humanos na esfera externa.
O Direito Constitucional Internacional é posto para favorecer uma ordem universal de justiça, que se coloca no plano da supranacionalidade.

Postagem em destaque

MONOGRAFIA - A BIOINVASÃO DE AMBIENTES AQUÁTICOS PROVOCADA PELA ÁGUA DE LASTRO DAS EMBARCAÇÕES E SUAS CONSEQUÊNCIAS JURÍDICAS

Série acadêmica Atualizado em 16/09/2015. Este Trabalho de Conclusão de Curso foi originalmente publicado na  Biblioteca Digital de Monogra...

Postagens mais visitadas