Série
acadêmica
ESTADOS SOBERANOS NO CONTEXTO DA SUBIDA DO NÍVEL DO MAR: REQUISITO TERRITORIAL E RESPONSABILIDADE À LUZ DE PIERRE BOURDIEU[1]
Para citar este ensaio: SOUSA, M. T. A.; SOUSA, M, J. M. Estados soberanos no contexto da subida do nível do mar: requisito territorial e responsabilidade à luz de Pierre Bourdieu. MTiciano Sousa. Natal, 03 jan. 2024. Disponível em: https://mticianosousa.blogspot.com/2024/01/estados-soberanos-no-contexto-da-subida.html. Acesso em: DD/MM/AAAA.
RESUMO
O território é o requisito principal do Estado soberano, enquanto
sujeito de direitos e obrigações, no Direito Internacional Público e no Direito
do Mar. Pretende-se
analisar se este paradigma resistiria à ameaça de desaparecimento de
países insulares e costeiros provocada pela subida do nível do mar. E como o
Estado lesado seria capaz de postular a responsabilidade por fatos
internacionalmente ilícitos que redundaram nesta elevação. Para tanto, utiliza-se
a pesquisa bibliográfica exploratória relativa à doutrina especializada e ao
regime jurídico internacional, sob o crivo de Pierre Bourdieu. Constata-se a
necessidade de criar Entidades Sociais com legitimidade e titularidade para suscitar
a responsabilidade internacional de Estados terceiros.
PALAVRAS-CHAVE: Estado soberano; Território; Subida do nível do mar; Entidade social; Responsabilidade internacional.
SOVEREIGN STATES IN THE CONTEXT OF SEA LEVEL RISE: TERRITORIAL REQUIREMENT AND RESPONSIBILITY IN THE LIGHT OF PIERRE BOURDIEU
ABSTRACT
Territory
is the main requirement of the sovereign State, as subject of rights and
obligations, in Public International Law and the Law of the Sea. It aims to
analyze whether this paradigm would resist the threat of the disappearance of
island and coastal countries caused by rising sea level. And how the injured
State would be able to claim responsibility for internationally illicit acts
that resulted in this elevation. To this, exploratory bibliographical research
is used regarding specialized doctrine and the international legal regime, in
the light of Pierre Bourdieu. There is a need to create Social Entities with
legitimacy and ownership to raise international responsibility from States.
KEYWORDS: Sovereign State; Territory; Sea level rise; Social Entity; International responsibility.
Sumário: 1. Introdução; 2.
Contextualização fática da subida do nível do mar; 3. Paradigma do território
como pilar dos Estados soberanos; 4. Responsabilidade internacional pela perda
parcial ou total do território de um Estado; 5. Considerações finais.
1. INTRODUÇÃO
Todo o regime jurídico internacional,
é dizer, o Direto Internacional Público, Direito Internacional do Mar, Direito
Internacional do Ambiente e outros deste âmbito, está consubstanciado no
paradigma do território como um pilar principal do Estado-nação soberano, para
habilitá-lo como sujeito de direitos, de obrigações, de legitimidade e de
autodeterminação.
No entanto, o que poderia acontecer juridicamente,
se o Estado-nação assistisse à submersão física do seu próprio território em
decorrência da subida do nível do mar? E quem seriam os responsáveis por tal situação?
Este é um contexto deveras extravagante e excepcional, qual seja, a ameaça do
desaparecimento territorial parcial ou total de países insulares e/ou costeiros
de baixa altitude provocado pela subida do nível do mar, que, por sua vez, é
decorrente do aquecimento global, o qual tem como causas principais as
atividades humanas, fenômenos em cadeia cujas regulamentações são objetos de
estudo do Direito Internacional Público, Direito Internacional do Mar e Direito
Internacional do Ambiente.
Um dos objetivos do presente ensaio é
analisar se o paradigma da teoria amplamente aceita de que o Estado-nação
soberano, calcado no requisito territorial, em que governo e população
desenvolvem os seus patrimônios culturais, sociais e econômicos, resiste às
circunstâncias atuais de ameaça de desaparecimento de territórios. E, neste contexto,
como o Estado afetado e seu análogo sem território seriam titulares da
capacidade de postular, em face de Estados terceiros, a responsabilidade por fatos
internacionalmente ilícitos que provocaram a elevação do nível do mar, assunto
tratado como outro objetivo. Ressaltando-se, desde já, que tais objetivos serão
confrontados, no que couber, com o texto “Para uma Sociologia da Ciência” de
Pierre Bourdieu[2] e
com o critério de falsificação de Popper.
Para tanto, esse trabalho baseou-se
em pesquisa bibliográfica exploratória qualitativa relativa à doutrina
especializada, ao regime jurídico internacional, aos costumes – incluindo os
Projetos de Artigos acerca da responsabilidade internacional e da prevenção de danos
transfronteiriços, ambos da Comissão de Direito Internacional (CDI) e a escassa
jurisprudência –, à luz do sistema jurídico internacional e do referido texto
de Pierre Bourdieu.
2. CONTEXTUALIZAÇÃO FÁTICA DA SUBIDA DO NÍVEL DO MAR
Há estudos científicos no âmbito do
Painel Internacional sobre Mudanças Climáticas (IPCC) – órgão criado em 1988
por iniciativa do Programa das Nações Unidas para o Ambiente (PNUA) e da
Organização Meteorológica Mundial (OMM) para estudar e acompanhar as mudanças
climáticas[3]
–, dando conta de que, até 2100, mantendo o cenário atual das emissões de gases
de efeito estufa (GEE), o mar se eleve até 101 cm em relação ao que era no
início do século XX[4],
fazendo com que desapareçam total ou parcialmente Pequenos Estados Insulares em
Desenvolvimento (PEID) e diminuam os territórios de países costeiros[5].
A situação da alteração climática é
resultante, sobretudo, das atividades econômicas industriais – pela liberação
dos GEE nos países industrializados em maior escala desde a revolução
industrial – e agropecuárias – pelas derrubadas e queimadas das florestas a fim
de expandirem as fronteiras agrícolas nos países em desenvolvimento.
Nesse sentido, pode-se constatar que
há correlação entre a inflexão das curvas de mudança do clima com a revolução
industrial a partir de 1830[6],
ocorrendo acentuada variação no gradiente de aumento de temperatura nas últimas
décadas[7],
bem além do lento gradiente considerado natural entre os ciclos glaciais.
Todos os Estados insulares e costeiros
correm o risco de serem afetados pela elevação do nível do mar, porém, as
consequências parecem mais eminentes e iminentes nos PEID. O país insular
Kiribati perdeu quase totalmente seu território, e o governo, antecipando-se à
catástrofe do seu país, conseguiu comprar 20 km² de terras nas Ilhas Fiji e lá
instala gradativa e provisoriamente sua população[8].
Solução temporária, porque, i) além de Kiribati, Estados como Tuvalu, Ilhas
Marshall, Estados Federados da Micronésia e Palau, no Oceano Pacífico Sul, e
Maldivas, no Oceano Índico, entre outros, começaram a sentir o encolhimento de
seus territórios[9], pela
falta de espaço, escassez de água doce e mantimentos, ou ii) estes Estados não conseguirão honrar seus
compromissos financeiros, porquanto pode faltar a sua maior fonte de
subsistência, os recursos marinhos oriundos dos seus espaços marítimos.
Nesse contexto, Portugal, como país
costeiro, já perdeu 13 km² de seu espaço territorial continental de 1958 a 2018[10].
No Brasil, a invasão do mar nas regiões costeiras tornar-se-á preocupante, caso
a elevação de temperatura alcance 2ª C ou mais em relação à temperatura do
período pré-industrial, de acordo com os cenários apresentados – para 1,5, 2, 3
e 4º C – em várias cidades pelo sítio do Mar sem Fim[11].
Todavia, a maioria dos estudiosos do
Direito ainda têm focado o tema de maneira a que a existência continuada do
Estado apenas seja assegurada conforme as regras tradicionais do Direito Internacional[12],
tendo em conta, sobretudo, o requisito territorial.
Esse quadro fático levanta questões
jurídicas que ensejam respostas do Direito Internacional Público, do Direito do
Mar e do Direito Internacional do Ambiente, com o propósito de conformação e
adequação às novas realidades.
3. PARADIGMA DO TERRITÓRIO COMO PILAR DA EXISTÊNCIA DOS ESTADOS SOBERANOS
Historicamente, o Estado aparece
próximo ao seu perfil moderno, e similar aos contornos atuais, entre os séculos
XV e XVI, inobstante a existência de sociedades politicamente organizadas com elevado
grau de desenvolvimento e autonomia, a exemplo das cidades de Veneza, Pisa, Modena,
Milão e Bolonha, conhecidas por quebrar o isolamento do período medieval, ao
intensificarem, entre elas e com outras sociedades, atividades de intercâmbio[13].
Bem antes, foram exemplos as cidades-Estados de Esparta e Atenas na Antiguidade
Clássica.
Assim, o Estado sofreu transformações,
sendo a principal delas decorrente dos Tratados de Paz de Westfália de 1648, em
que os Estados passaram a possuir formas autônoma e independente com
características soberanas e nenhuma subordinação a outro poder, inclusive o
religioso[14]. A
partir do final do século XVIII, o Estado moderno e a Nação moderna fundiram-se
para formar o que se conhece hoje por Estado-nação, sujeito principal de direitos
e deveres no Direito Internacional, consubstanciando uma instituição criada
para organizar as atividades humanas dentro de um território[15].
Nesse sentido, pode-se afirmar que no
Direito Internacional Público atual o Estado nasce quando restarem reunidos todos
os seus elementos constitutivos, é dizer, “comunidade de indivíduos, território
fixo e determinado, governo autônomo e independente e finalidade”[16].
Por outro lado, essa construção foi
reforçada com o acréscimo da “Capacidade de entrar em relações com os demais
Estados” na Convenção Panamericana sobre Direitos e Deveres dos Estados de 1933
(Convenção de Montevideo de 1933)[17],
apesar de não constar o elemento “finalidade”, quando positivou, em seu art. 1.º,
os requisitos para que um Estado seja reconhecido internacionalmente como tal,
tornando-se, portanto, uma norma costumeira universal[18].
Ora, essa disposição dos requisitos
para a formação do Estado soberano, de uma previsão regional, passou a ser tão substancial
que alcançou o patamar de norma costumeira internacional, alçando o requisito
do território à categoria de “princípio da territorialidade” em que orbitam as
relações jurídicas internacionais dos Estados. O território é, portanto, a base
da população, a área geográfica onde as pessoas se associam e se organizam,
vindo a exercerem o seu direito à autodeterminação[19].
Na Convenção das Nações Unidas sobre
o Direito do Mar (CNUDM) de 1982, Convenção de Montego Bay, nos arts. 3º e seguintes,
há um princípio implícito de que “a terra domina o mar”[20],
numa alusão a que os mares internos, territorial, bem como a zona contígua,
zona econômica exclusiva (ZEE) e plataforma continental (PC), além dos recursos
vivos e não vivos destes espaços, estão a depender juridicamente da porção
territorial do Estado.
Quanto ao direito à autodeterminação,
Catherine Blanchard sustenta que, do ponto de vista da autonomia e da
independência, não pode ser plenamente exercido sem uma vinculação ao
território. E, como não existe hoje territórios disponíveis, a única forma de garantir
a autodeterminação dos povos dos PEID seria mudar a maneira de entender e
aplicar os direitos territoriais[21].
O pilar da existência do território determinado
já foi posto à prova no Direito Internacional em casos como: o da República
Democrática Alemã, que foi absorvida pela República Federal da Alemanha; do povo
judeu, que foi realocado no Oriente Médio pela criação do Estado de Israel em
1948; e da Santa Sé, ligada ao Estado da Cidade do Vaticano antes de ser reconduzida
à Cidade do Vaticano, em 1929, pelo Tratado de Latrão. Contudo, tais refutações
empíricas (políticas), com repercussões jurídicas, não foram suficientes para
fazer cair a teoria do Estado soberano fulcrada sobretudo no seu requisito geográfico
do território, porquanto sempre havia um território definido ou almejado
naqueles casos e, portanto, a perspectiva temporal de retomar ou voltar ao
espaço físico de direito dos respectivos populações e governo. Não há precedentes
para o desaparecimento físico permanente do território dos Estados, entretanto[22].
Como se pode perceber, o
desaparecimento parcial ou total de um território de um Estado soberano pela
elevação do nível do mar, levando a deslocamentos forçados de populações, é uma
situação inusitada e deveras grave que demanda muito esforço e espírito de solidariedade
e cooperação da comunidade internacional, a fim de se chegar a bom termo, até
para o bem dos demais Estados, tanto do ponto de vista interno, social e
politicamente considerado, quanto do externo, em termos político e humanitário.
É com esse contexto que os cientistas
jurídicos do Direito Internacional Público, do Mar e até do Direito Internacional do Ambiente se deparam e podem
questionar como resolver o impasse do paradigma atual do Estado soberano determinado
nas bases dadas pela Convenção de Montevideo de 1933, sobretudo no que respeita
ao requisito central do território determinado.
Considerando o critério de
falsificação de Popper, ao sustentar que um enunciado universal nunca é
induzido dos enunciados singulares, mesmo com a maior quantidade de casos que seja,
mas um único contraexemplo de um enunciado singular é capaz de contradizer um
enunciado universal e, por conseguinte, refutá-lo[23],
pode-se examinar a possibilidade de aplicar o método dedutivo para refutar o
paradigma atual dos Estados soberanos, centrado no requisito territorial.
Javier Echeverria traz um exemplo
bastante elucidativo de aplicação do critério de falsificação adotado por
Popper, que consiste em afirmar o enunciado universal do tipo “todos os homens
são mortais”. Mesmo que cada indivíduo singular morra, por maior que seja a
quantidade de casos, o enunciado não seria comprovado pela experiência, pois aqui
não caberia a indução. Porém, se conseguisse mostrar que determinado homem não
morreu, após vários séculos, estaria o enunciado universal posto seriamente em
questão, senão plenamente refutado[24].
Destarte, pela regra lógica fundamental
para as ciências empíricas, sintetizada na expressão [(p => q) ^ ~q]
=> ~p, pode-se examinar as consequências
diretas, q, derivadas da proposição p. Entretanto, constatando a
negação desta consequência, ~q, se chegarmos à negação da proposição, ~p, teríamos a sua refutação[25].
Por conseguinte, aplicando esse critério à situação problema em tela, considerando que a existência de um Estado soberano, centrado no requisito do território, seja a proposição universal, p, deste paradigma, a consequência, q, seria o território permanente e definido. Contudo, o território “permanente e definido” do Estado soberano Kiribati, como já verificado no Item 2 acima, está em vias de desaparecer inexorável e definitivamente, ~p, devido à elevação do nível do mar, com o que restaria refutada a proposição do Estado soberano dependente do requisito do território pelo método de Popper. A menos que fossem desprezados os direitos da população deste Estado à luz dos direitos humanos, da autodeterminação e até das consequências migratórias para outros Estados terceiros.
Como se analisou anteriormente, não é
só o Estado de Kiribati que está a ponto de desaparecer, todos os Estados dos PEID
se encontram ameaçados, tendo em vista as baixas altitudes de seus territórios.
Mas, um só teste proposto por Popper, utilizando o Estado soberano de Kiribati
como exemplo real, é capaz de refutar o paradigma jurídico do Estado soberano fundamentado
principalmente na sua base territorial.
Há, é certo, uma Convenção Relativa
ao Estatuto dos Refugiados (ACNUR) de 1951[26],
mas seu art. 1.º, n.º 2, prevê que, para haver a proteção de refugiado, a
pessoa deve ter “fundado temor de ser perseguida por motivos de raça, religião,
nacionalidade, grupo social ou opiniões políticas, se encontrar fora do país de
sua nacionalidade e que não pode ou, em virtude desse temor, não quer valer-se
da proteção desse país”, sendo tal temor personalizado[27].
O que comprova a inaplicabilidade deste regime aos deslocados ambientais.
Foi nesse sentido que decidiu o Tribunal
de Imigração e Proteção da Nova Zelândia, é dizer, os deslocados ambientais não
se subsomem na proteção da Convenção Relativa ao Estatuto dos Refugiados, mormente
porque a situação é enfrentada pelas populações no seu conjunto, não devendo
ser personalizado a um determinado indivíduo requerente[28].
Portanto, após a refutação do
paradigma do Estado soberano atual, tendo como pilar o requisito do território,
pelo critério de falsificação de Popper, e permanecendo incerta a situação
humanitária dos deslocados ambientais devido à elevação do nível do mar, sob o
regime da proteção do Estado soberano original em vias de desaparecer, e sob o
regime de proteção aos refugiados, não resta outra alternativa senão desenvolver
outro paradigma jurídico ou ampliar o atual com fim de abrigar também esse novo
modelo de Estado desterritorializado.
Por oportuno, deve-se, nessa altura, lembrar a lição de Canaris, trazida por Jesús Vega López, que prega o complemento da concepção histórica e evolutiva de Kuhn com a concepção lógica de falsificação de Popper, a propósito de prevalecerem as melhores teorias, ao considerar
que el popperismo debe complementarse con una concepción histórica y evolutiva del desenvolvimiento de las ciencias como la que ofrece kuhn, en la que se hace entrar en juego a otros factores pragmáticos, incluso irracionales en la dinâmica científica. Sólo de este modo podría encontrarse una repuesta aceptable al hecho de que la mayoría de las teorías falsadas cuentan de algún modo con un nucleo de verdad y que siempre se impongan las mejores teorías, es decir, las más correctas o próximas a la verdad[29].
E o que propõe Thomas Kuhn? Segundo
Pierre Bourdieu, Kuhn defende que o “paradigma” ou “matriz disciplinar” é que
determina as ações de parte importante dos cientistas, que a aceita, e tende a
impor-se a todos os outros cientistas, até alcançar tudo que for capaz segundo
a sua lógica e sem intervenção externa, apesar de subsistirem alguns enigmas
sem solução. Daí se dá a “tensão essencial” da ciência, quando a revolução implica
em tradição. Ou seja, um verdadeiro revolucionário na ciência possui grande
domínio da sua história, se entrega a jogos complexos dominados por regras
preestabelecidas, para se tornar um inovador eficaz que descobre novas regras e
peças, não alguém que ignora a tradição. Um revolucionário na ciência tem
capital, um grande domínio de conhecimento coletivo acumulado, conservando
aquilo que supera[30].
Pode-se, então, conceber o paradigma
da territorialidade como requisito fundamental para o Estado soberano como a
matriz disciplinar de que fala Kuhn e afirmar que esta atingiu tudo que foi
capaz nas relações jurídicas internacionais entre os Estados. Entretanto, não
deve ser desprezado, deve sim continuar sendo aplicado aos Estados que dispõem de
território, até para que estes possam abrigar as pessoas deslocadas devido à subida do
nível do mar, bem como deve ser tomado como base para novas teorias. A tensão
essencial se faria estabelecer para que novo ou novos modelos jurídicos sejam
consensualizados, criados e aplicados aos Estados que venham a desaparecer e/ou
tenham suas populações deles deslocadas.
É bem verdade que as respostas
trazidas para tentar solucionar o problema do desaparecimento parcial ou total
do território têm sido, em sua maioria, no sentido tradicional, em linha com o
atual regime jurídico internacional, e aí está incluído o regime do mar baseado
na CNUDAM, que traz implícito o princípio “a terra domina o mar.”[31]
Tais respostas são tentativas de engendrar
tudo que for capaz para manter a resiliência do paradigma tradicional do Estado
soberano, numa analogia com o que defendeu Kuhn na leitura de Pierre Bourdieu[32].
Contudo, o grupo dos PEID não possui recursos para manter territórios
artificiais, ou manter os seus territórios atuais abrigados e drenados como o
fez o Estado holandês.
Ressalta-se nesta oportunidade que a
CNUDM traz as demarcações do mar territorial em seu art. 3.º – até 12 milhas das
linhas de base da costa em maré baixa –; da zona contígua no seu art. 33.º – 12
milhas a partir do contorno exterior do mar territorial –; da ZEE, art. 57.º, –
200 milhas a partir das linhas de base da costa –; e da PC no art. 76.º – compreende
o leito e o subsolo marinho e vai do contorno do mar territorial até 200 milhas
das linhas da costa, no mínimo, ou até 350 milhas, desde, ainda, que não
ultrapasse o bordo exterior da margem continental. O mar territorial é considerado
território do Estado, e, nas demais faixas, o Estado possui jurisdição e direitos
de exploração de recursos vivos e não vivos. É possível, então, vislumbrar a
importância dessas áreas marítimas para a economia dos Estados insulares, que trabalham
para pressionar a comunidade internacional no sentido de manterem as linhas de
base inalteradas, mesmo que haja alteração, terra adentro, ou desaparecimento
do território, com a subida do nível do mar, porquanto manteria as faixas marítimas
e, por conseguinte, os direitos de exploração de seus recursos.
As respostas tradicionais referidas
acima são nomeadamente a construção de estruturas artificiais, construção de
ilhas ou instalações artificiais, aquisição de território, o Estado dito
desterritorializado, governo no exílio e a tutela política, mas sempre
preservando o modelo do sistema westfaliano, consubstanciado no Estado territorial.
Estas alternativas serão verificadas a seguir, e vislumbradas as possibilidades
de aplicá-las aos PEID, sem a pretensão de as esgotar[33].
Com efeito, as estruturas artificiais se constituem de diques, barragens, áreas permanentemente drenadas e muros para preservação do território existente. A Holanda aplicou este modelo. E na capital das Maldivas, Malé, foram construídos muros de proteção. Quanto à construção de ilhas artificiais, há o exemplo de Hulhumalé nas Maldivas[34].
Em relação à aquisição de territórios
por um PEID ameaçado de desaparecer, esta pode ser de dois tipos: por cessão de
direitos e por fusão ou formação de federação ou união. Sem entrar nos detalhes
de cada instituto jurídico neste trabalho, verifica-se na aquisição por cessão
três subdivisões: a doação, a venda e o arrendamento. Nestes casos, o PEID poderia
exercer sua soberania sobre este território adquirido e manter seus direitos sobre
as zonas marítimas do seu antigo território. Existem exemplos desta forma de
aquisição na compra pelos Estados Unidos do território do Alasca da Rússia e das
Ilhas Virgens Americanas da Dinamarca. Já no cenário da fusão, um PEID se
fundiria com outro Estado, que manteria sua personalidade jurídica, ou formaria
uma união ou federação com um ou mais Estados, levando à criação uma nova
personalidade. Neste modelo, as zonas marítimas do PEID pertenceriam ao Estado
fundido ou ao federado. Porém, nos dois casos de aquisição, o PEID perderia a
sua condição de Estado e sua população seria governada pelas leis do Estado com
o qual se fundiu ou pelas da federação ou união formada[35].
Contudo, Rosemary Rayfuse afirma que o
estabelecimento de fronteiras marítimas equitativas já é garantido no Direito Internacional
consuetudinário hodierno, e, no processo de fusão/formação de federação, haveria
a perda de direito dos PEID, o que seria injusto e contrário ao direito[36].
Apesar da incerteza de que os PEID possam reivindicar esses direitos sobre as
zonas marítimas, como já indicado, estas zonas e seus respectivos direitos seriam
significativos, vez que ofereceriam suporte econômico para as populações
deslocadas pelo aumento do nível do mar[37].
No que tange ao mencionado Estado
desterritorializado, uma proposta sui generis foi feita pela primeira
vez por Rosemary Rayfuse, para responder aos desafios igualmente sui generis
impostos pela elevação do nível do mar[38].
Refere ao Estado que consistiria em uma forma de autoridade que representaria e
protegeria seu povo e administraria seus recursos onde estes estivessem,
controlando ainda seu território abandonado e/ou as águas territoriais, como
pode ser passível de ocorrer com um PEID[39].
À guisa dessa proposta de Estado,
existe exemplo paradigmático, a Ordem de Malta, que, existindo sem território
desde 1798, tem personalidade jurídica internacional, goza de soberania, possui
reconhecimento de alguns Estados, conquanto não seja propriamente um Estado[40].
Outra opção seria a de governo no
exílio respaldado na existência de um Estado o qual o governo representaria,
mesmo sem território. Porém, do ponto de vista de um PEID com território em
desaparecimento, existiriam duas dificuldades: a primeira é que há a possibilidade
de dispersão da população, embora os deslocamentos possam ser organizados. A
outra é que este modelo de governo agiria temporariamente, e, no caso do PEID,
isso não irá acontecer, porque seu território não reaparecerá[41].
Todas as alternativas para suprir a
falta do requisito territorial do Estado, analisadas acima, visam a conformar os
objetivos ensejados pelo sistema westfaliano: quais sejam, o fomento,
realização e proteção de segurança, a promoção da paz, da estabilidade, da
certeza, da justiça e da eficiência em prol da continuidade do Estado soberano[42],
baseado num território, ou numa condição análoga.
Nesse contexto, à luz dos
ensinamentos de David Bloor, referenciados por Pierre Bourdieu, no seu “Programa
Teórico ‘Forte’”, da análise de cada alternativa supra, depreende-se que foram
empregados, conforme o possível, os quatro grandes princípios metodológicos para
construção[43]
ou, no caso, manutenção da teoria jurídica tradicional do Estado soberano, tais
quais: i) a causalidade de cada modelo apresentado; ii) a imparcialidade, na
medida em que se analisa as consequências favoráveis e desfavoráveis para os
PEID; iii) a simetria, pois o mesmo modelo poderia levar a resultados
verdadeiros ou falsos; iv) reflexividade, este verificado em menor grau, mas seus
sinais podem ser percebidos por meio da despreocupação dos doutrinadores em apresentar
o que pode não dar certo com a manutenção do sistema jurídico internacional
tradicional westfaliano de Estado soberano baseado no requisito territorial.
Ficam patentes as tentativas de a
doutrina do Direito Internacional Público e do Mar enquadrar, na medida máxima
do seu habitus científico[44],
as novas realidades dos Estados cujos territórios estão ameaçados de
desaparecerem, para testar até onde possa ser capaz de engendrar o paradigma
tradicional, atingindo um ponto de “esgotamento intelectual” seguido de tensão
essencial, como tão bem considerou Kuhn por Pierre Bourdieu[45],
mesmo após a anterior refutação pelo método de falsificação de Popper. Contudo,
o sistema westfaliano de Direito Internacional fortemente enraizado nas noções
de territorialidade – soberania, jurisdição, regulamentação, responsabilidade –
ainda é adequado para os desafios a serem enfrentados nos períodos vindouros?[46]
E qual seria a proposta para além do
sistema tradicional, a dispensar, quando for imprescindível, o requisito do
território para o estabelecimento do Estado soberano, com o fim de preservar os
PEID?
O que sugere Catherine Blanchard, como
solução para a continuidade dos Estados insulares em risco de desaparecimento
devido à elevação do nível do mar, é a transformação destes em “entidades
sociais”, construídas a partir de uma mudança de normas existentes ligadas à
territorialidade ou a partir da desvinculação do Estado como comunidade social
do seu território[47].
Isso posto, pode-se considerar que um
sistema de direito é legítimo se: i) estiver orientado para o exercício de uma
autoridade, que, no caso atual, é a autoridade dos Estados, é dizer, uma
abordagem de legitimidade ao interesse de agir; ii) os processos empregados e
as normas aplicadas são justas e adequadas, em abordagem orientada ao
procedimento; iii) a legitimidade se dá pelo resultado adequado e justo, o que
seria orientada pelo resultado. Tais abordagens podem ser combinadas, e a mais premente
para os PEID seria a terceira, pois, apesar de estes pouco terem contribuído
para o aquecimento global, são os que mais estão sofrendo e vão sofrer com a
elevação do nível do mar[48].
Contudo, as duas abordagens seguintes
atendem não apenas aos valores do Ocidente: uma relacionada à moralidade e à
legitimidade do sistema; e outra ligada a um padrão mínimo de justiça. Ambas têm
foco num sistema internacional legítimo e moral que considera o Estado como
comunidades humanas, sem necessidade de vinculá-las a entidades territoriais.
Tal sistema internacional baseia-se num quadro normativo sincronizado com as
realidades atuais[49].
O que seria a conciliação dos aspectos fáticos com a legitimidade e a
moralidade, num padrão de justiça minimamente aceitável no regime jurídico
internacional.
Com efeito, Catherine Blanchard apresenta
três sugestões teóricas que podem ampliar o Direito Internacional Público em
ordem a acomodar as situações sui generis dos PEID, a propósito da futura
condição de Estado e de autodeterminação em caso de perda de seus territórios:
i) aproximações diaspórica e cosmopolita da organização social; ii) governança
global; e iii) a equidade e dever moral[50].
Destarte, a teoria diaspórica distancia-se
do foco do Estado-nação, reorientando-o para a Nação, entendida agora como
comunidade ou sociedade com aspectos históricos e culturais similares. Já o
cosmopolitismo impele o conceito de pertença e, sob o conceito de Nação, traz a
noção de união, em que as pessoas pertenceriam a uma comunidade global, numa
moral compartilhada, que independe de origem, cultura ou religião. Estas duas teorias
apoiam-se no pertencimento social independente do território, o que poderiam
ser usadas como garantia de continuidade dos PEID como entidades sociais[51].
Porém, possuem limitações, ao carecerem de elementos pragmáticos para formar
uma base para a organização social em relação aos direitos e obrigações das
pessoas dispersas, ou ao levantarem dúvidas sobre a garantia, a longo prazo, de
sobrevivência de uma comunidade e seu sentido de pertencimento sem vinculação
territorial[52].
Em relação à governança global, esta é
vista como uma forma de completar o papel do Direito Internacional Público com
foco na dinâmica dos processos, em contraponto às estruturas tradicionais e
estáveis. Poderia ser aplicada aos PEID para atingir uma legitimidade orientada
ao procedimento – processos globais – e ao resultado – soluções globais – sendo
a resposta do sistema jurídico internacional à adversidade dos PEID, a sugerir
uma estrutura que vai além do Estado[53].
Como limitação, a governança global é fraca para analisar criticamente o regime
centrado no Estado e sugerir alternativa de organização social desvinculada do
território[54].
No que tange à equidade e ao dever moral,
este caminho legitima o Direito Internacional a subsumir as realidades dos
Estados cujos territórios estão desaparecendo e implica em estender ou
interpretar amplamente as regras atuais, e, além disso, sugere que a comunidade
internacional esteja vinculada a um dever moral de reconhecer a continuidade dos
PEID independentemente do território[55].
A partir disso, um exemplo concreto
da ampliação das regras baseada na equidade é encontrado no direito à
autodeterminação. O PEID é titular deste direito, e a sua preservação sem estar
atrelado ao território definido estende o significado e a aplicação do direito.
Assim, a comunidade internacional teria o dever moral de reconhecer a expressão
contínua da autodeterminação das populações dos PEID, porquanto, circunstâncias
excepcionais – elevação do nível do mar, decorrente das mudanças climáticas – demandam
soluções excepcionais – afastamento do requisito clássico da condição de Estado
dado pelo território[56].
Quanto à limitação, a equidade e moralidade implicam em ampliar a aplicação das
normas atuais e dos próprios mecanismos normativos do Direito Internacional
Público, sem explicar como praticaria isso. Outra é que a equidade, ao
desencadear um dever moral para a comunidade internacional, depende da vontade
política e das realidades geopolíticas desta[57].
Para além do paradigma normativo
tradicional westfaliano, centrado no Estado soberano vinculado ao requisito
territorial, as teorias propostas consideradas em conjunto, apesar de suas
limitações, sugerem a formação de organização social num modelo de segurança e
estabilidade não vinculada ao território. Porém, estas soluções estariam
dependendo da saída da esfera teórica em direção ao comportamento e prática,
para que o Direito Internacional Público seja considerado[58].
Por oportuno, há a conformidade com
os quatro grandes princípios metodológicos já analisados acima para construção
de uma teoria jurídica, como as últimas apresentadas, segundo David Bloor,
referenciados por Pierre Bourdieu[59].
Ademais, deve-se considerar que a ciência jurídica, mormente no âmbito do
Direito Internacional Público, do Mar e do Ambiente como as ciências sociais[60],
tem grande dificuldade de fazer reconhecer a sua autonomia, pois, mesmo se
deparando com uma circunstância deveras excepcional como é a elevação do nível
do mar, ocasionada pelo aquecimento global, ainda assim, tem embaraço em se
impor no exterior do campo científico e até no seu interior. Desta forma, com
fraca autonomia, tornam-se difíceis as revoluções, vez que têm de trazer consigo
revoluções em outros campos como o político e até religioso. Ao contrário, as
ciências com mais autonomia tendem a ser lugar de revolução permanente, a
exemplo das ciências da natureza[61].
4. RESPONSABILIDADE INTERNACIONAL PELA PERDA PARCIAL OU TOTAL DO TERRITÓRIO DE UM ESTADO
Há de existir uma perspectiva de os
Estado ou, no caso de mudança de regime jurídico que contemple as inovações
sugeridas no Item anterior, as Entidades Sociais reivindicarem a
responsabilidade internacional por atos ilícitos de Estados terceiros pela
elevação do nível do mar, decorrente das alterações climáticas. Para tanto, há
de ser possível suscitar o descumprimento de obrigações internacionais por
parte destes Estados.
Assim, não existindo ainda um
instrumento internacional acerca desse assunto, a Comissão de Direito
Internacional (CDI) das Nações Unidas, baseada em discussões e estudos a
propósito da doutrina e da jurisprudência internacionais, bem como das
consultas realizadas junto a diversos Estados, elaborou o Projeto de Artigos sobre
a Responsabilidade dos Estados por Fatos Internacionalmente Ilícitos de 2001
(Projeto de Artigos de 2001). Para isto, no seu art. 2.º, três elementos necessários
são vislumbrados: primeiro, a conduta comissiva ou omissiva; segundo, a
atribuição da conduta a um sujeito de direitos, de obrigações e de legitimidade
internacionais, conferidos aos Estados; e, terceiro, a conduta deve constituir
uma violação de uma obrigação do Estado perante um instrumento internacional a
que este esteja vinculado[62].
Aqui, já se verifica que se trata de um Projeto de normas secundárias a
definirem as condições para a ocorrência de um fato internacionalmente ilícito
e suas consequências, deixando aos instrumentos convencionais as regras
primárias das obrigações dos Estados signatários[63]
– permissões, imposições, proibições etc.
Com isso, para o caso do aquecimento
global, o regime jurídico das mudanças climáticas compreende hoje os seguintes
instrumentos: Protocolo de Montreal de 1987[64],
que impõe a redução da produção e consumo das substâncias que destroem a camada
de ozônio (SDOs); Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Alterações Climáticas
(CQNUAC) de 1992[65], que
trata dos compromissos gerais direcionados à redução de GEE; Protocolo de
Quioto (CQNUAC/PQ) de 1997[66],
traz metas e cronogramas para reduzir as emissões de GEE; e Acordo de Paris (CQNUAC/AP)
de 2015[67],
apresenta metas progressivas de redução das emissões de GEE para cada país; e
Protocolo à Convenção de Genebra sobre a poluição atmosférica transfronteiriças
a longa distância relativo à redução da acidificação, da eutrofização e do
ozono troposférico (PCG99) de 1999[68],
fenômenos estes que também influenciam no clima. Além destes instrumentos, acrescentam-se
os que referem ao dever de prevenir danos transfronteiriços, no domínio do
Direito Internacional costumeiro: Declaração de Estocolmo sobre o Meio Ambiente
Humano (CNUMAH) de 1972[69],
princípio 21.º; Declaração do Rio (RIO92) de 1992[70],
princípio 2.º; o Projeto de Artigos da CDI sobre Prevenção de Danos
Transfronteiriços de Atividades Perigosas de 2001 (constituindo um projeto de
regras primárias); além do Caso Trail Smelter entre Estados Unidos x Canadá
de 1941[71].
Em vista disso, um Estado afetado
teria de levantar os três requisitos da reponsabilidade internacional a fim de
buscar reparação. O primeiro seria identificar uma conduta positiva ou negativa
que provoque o fato, sendo esta a emissão em si de GEE ou outros poluentes
atmosféricos que afetem o clima. O segundo seria evidenciar a atribuição desta
conduta ao Estado, o que, neste âmbito, seria sua falha em regulamentar,
implementar programas e fiscalizar as emissões de GEE ou outros poluentes que
afetem o clima, conforme as regulações dos instrumentos indicados acima.
O terceiro requisito da
responsabilidade é que a conduta constitua uma violação da obrigação do Estado.
Como discutido no Item 2 acima, está demonstrado que o aquecimento global decorre
principalmente das atividades humanas, mormente a partir da Revolução
Industrial. Resta saber se um PEID teria condições financeiras e políticas a ensejar
reclamações em face de grandes emissores de GEE, a partir das vigências dos
instrumentos internacionais citados. Então, uma proposta em nível de Projeto de
Acordo internacional seria atribuir difusamente aos Estados terceiros uma
compensação, mas de forma equânime e proporcional segundo os saldos de emissão
de carbono de cada país, em valor a ser depositado periodicamente em um fundo
de compensação.
A propósito, um pré-acordo nessa direção
foi firmado na 27.ª Conferência das Partes (COP-27) da CQNUAC, em novembro de
2022, acerca da criação de Fundo de Perdas e Danos para apoiar as comunidades
afetadas pelas mudanças climáticas, com participação maior dos países ditos industrializados[72],
de acordo com o princípio das Responsabilidades Comuns mas Diferenciadas
aplicado ao Direito Internacional do Ambiente[73].
Outra possibilidade para o último requisito
da responsabilidade seria o descumprimento do dever de prevenir o estabelecido
nas normas costumeiras mencionadas, ou ainda a violação grave de normas jus
cogens do Direito Internacional, prevista no art. 41.º, n.º 2, do Projeto
de Artigos de 2001 da CDI[74].
Neste caso, considera-se possível suscitar a extinção de um Estado, devido à
subida do nível do mar, como violação grave do Direito Internacional Público, e
buscar reparação tanto no sentido material como no sentido imaterial,
compreendendo, este último, a manutenção da personalidade jurídica
internacional de um PEID independentemente do seu território.
A responsabilidade pelo fato
internacionalmente ilícito constitui uma teoria que foi além da teoria da
responsabilidade civil do direito interno. Foi pensada como um conjunto de regras secundárias para
confiar os requisitos da culpa, do dolo e até mesmo do dano às normas primárias.
Foi a maneira que a CDI encontrou para enfrentar as resistências internacionais
dos Estados. Mesmo assim, ainda não foi transformada em instrumento internacional,
apesar de ser muito referenciada pela doutrina[75]
e até pelos Tribunais internacionais[76].
O que implica que esta teoria já está a ser testada no Direito Internacional Público. Porém, para ser aprovada,
esta evolução ou revolução há de trazer também consigo revoluções em outros
campos como o político, dada a fraca autonomia desse campo científico do Direito,
conforme aplicação do ensinamento de Pierre Bourdieu[77].
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Diante do acima exposto, depreende-se
que os juristas, especialmente dos ramos científicos do Direito Internacional
Público, Direito Internacional do Mar e do Direito Internacional do Ambiente, enfrentam
limites no sentido de subsumir ao regime jurídico internacional atual, pautado no
paradigma do território como um requisito essencial do Estado soberano, as circunstâncias
fáticas da ameaça do desaparecimento físico parcial ou total de territórios de
Estados insulares e/ou costeiros de baixa altitude devido à subida do nível do
mar, decorrente, por sua vez, do aquecimento global.
Assim, restou evidenciada a
necessidade de superar esses limites para, sem desprezar o paradigma
tradicional, tomá-lo como base para novos. Para isto, a comunidade
internacional tem de fomentar condições para a criação de Entidades Sociais ou
Organizações Sociais a partir de um sistema jurídico internacional que concilie
aspectos fáticos com a legitimidade e a moralidade, num padrão de justiça
minimamente aceitável. Entretanto, para serem aprovadas via instrumento internacional,
deve trazer também consigo revoluções em outros campos como o político, dada a
fraca autonomia daqueles ramos científicos do Direito, como ficou evidenciado.
Destarte, restaria patente a
revolução científica para abrigar os Estados cujos territórios podem
desaparecer, após o esgotamento intelectual da matriz disciplinar ou do paradigma
tradicional anterior, seguido pela consequente tensão essencial, e, além disto,
depois de ser este paradigma refutado conforme o método de falsificação de Popper.
Por fim, as referidas Entidades ou Organizações
Sociais, como personalidades jurídicas internacionais análogas a de um Estado
soberano, seriam ainda titulares da capacidade de arguir a responsabilidade internacional
em face de Estados terceiros com o fim de serem compensadas pela perda do seu
território e pelo deslocamento de suas populações, em decorrência da subida do
nível do mar.
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[1] Autores: Marcos T. A. de Sousa, graduado em Direito e em Matemática e pós-graduado em Engenharia de Sistemas, todos pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), Advogado; Maria J. M. de Sousa, graduada em Direito e em Letras e pós-graduada em Direito Constitucional e em Educação, todos pela UFRN, Advogada.
[2]
BOURDIEU, 2004, 167p.
[3] THE
UNITED KINGDOM PARLIAMENT, 2005, p. 2.
[4] IPCC,
2021, p. 1216.
[5] SCHOFIELD;
FREESTONE, 2019, p. 393-394.
[6]
ABRAM et al., 2016, p. 412-413; cf. também em MATHIESEN, 2016, p. de internet.
[7] IPCC,
op. cit., p. 4-11.
[8] TERADA,
2020, p. 66.
[9] BLANCHARD, 2016, p. 69-70.
[10] BASTOS,
2021, p. 240-241.
[11] MESQUITA,
2021, p. de internet.
[12] BLANCHARD,
op. cit., p. 71.
[13] MAZZUOLI,
2019, p. 650.
[14] Ibidem,
p. 615.
[15] Ibidem, p. 650.
[16] MAZZUOLI;
FIORENZA, 2013, p. 32.
[17] CONVENÇÃO
DE MONTEVIDEO. Convenções sobre direitos e deveres dos Estados e sobre Asilo
político. Montevideo, 1933. Disponível em: <https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1930-1949/d1570.htm>.
Acesso em: 04 fev. 2023.
[18] CONVENÇÃO
DE MONTEVIDEO/1933, artigo 1.º - O Estado como pessoa de Direito Internacional
deve reunir os seguintes requisitos: I. População permanente; II. Território
determinado; III. Governo; IV. Capacidade de entrar em relações com os demais
Estados.
[19] BLANCHARD,
op. cit., p. 73-74.
[20] Ibidem, p. 81; cf. ainda em CNUDM. Convenção
das Nações Unidas sobre o Direito do Mar. Montego Bay, 1982. Disponível em:
<https://gddc.ministeriopublico.pt/sites/default/files/documentos/
instrumentos/rar60B-1997.pdf>. Acesso em: 02 fev. 2023.
[21] BLANCHARD,
op. cit., p. 86.
[22] Cf.
também em BLANCHARD, op. cit., p. 68-69.
[23] ECHEVERRIA,
2003, p. 97-98.
[24] Ibdem.
[25] Ibidem,
p. 98.
[26] ACNUR.
Convenção Relativa ao Estatuto dos Refugiados. Genebra, 1951. Disponível
em: <https://www.acnur.org/fileadmin/Documentos/portugues/BDL/Convencao_relativa_ao_Estatuto_dos_Refugiados.pdf>.
Acesso em: 04 fev. 2023.
[27] Cf. também neste sentido BLANCHARD, op.
cit., p. 84.
[28] BG
(Fiji). [2012] NZIPT 800091. New Zealand: Immigration and Protection
Tribunal, 20 Jan. 2012. Disponível em: <https://www.refworld.org/cases,NZ_IPT,4f425a932.html>.
Acesso em: 06 fev. 2023.
[29] Que
o popperismo deve ser complementado com uma concepção histórica e evolutiva do
desenvolvimento da ciência como a oferecida por Kuhn, na qual outros fatores
pragmáticos, mesmo irracionais, são postos em jogo na dinâmica científica. Só
assim, se poderia encontrar uma resposta aceitável ao fato de que a maioria das
teorias de falsificação tem de alguma forma um núcleo de verdade e que as melhores
teorias, isto é, as mais corretas ou mais próximas da verdade, prevalecem
sempre (LOPEZ, 1998, p. 426). (Tradução nossa).
[30]
BOURDIEU, op. cit., p. 28-31.
[31] BLANCHARD, op. cit., p.
92-93.
[32]
BOURDIEU, op. cit., p. 30.
[33] BLANCHARD, op. cit.,
passim.
[34] Ibidem,
p. 93.
[35] Ibidem, p.
95-96.
[36]
RAYFUSE, 2013, p. 179.
[37] BLANCHARD, op. cit., p.
97.
[38]
RAYFUSE, 2009, p. 101.
[39] BLANCHARD, op. cit., p.
98.
[40] Ibidem,
p. 98-99.
[41] Ibidem,
p. 100.
[42]
RAYFUSE, 2013, p. 180.
[43]
BOURDIEU, op. cit., p. 33-34.
[44] Ibidem, p. 61.
[45] Ibidem,
p. 30.
[46] VIDAS,
2014, p. 78.
[47] BLANCHARD, op. cit., p. 104.
[48] Ibidem, p.
106.
[49] Ibidem,
p. 107.
[50] Ibidem,
p. 108.
[51] Ibidem,
p. 109-110.
[52] JEANNENEY,
2014, p. 127-128.
[53] BLANCHARD, op. cit., p.
111.
[54] KWIECIÉN,
2013, p. 303.
[55] BLANCHARD, op. cit., p.
113.
[56] Ibidem,
p. 114.
[57] BUCHANAN,
2009, p. 236.
[58]
JEANNENEY, op. cit., p. 109.
[59]
BOURDIEU, op. cit., p. 33.
[60] Ibidem,
p. 121.
[61] Ibidem,
p. 120.
[62] SAMPAIO,
2013, p. 17-20; cf. ainda ILC - International Law Commission, 2001, commentary
1, art. 2.º, p. 34.
[63] LAWSON,
2008, p. 8.
[64] PMCV87.
Protocolo de Montreal à Convenção de Viena de 1985. Montreal, 1987.
Disponível em: <https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1990-1994/d99280.htm>.
Acesso em: 19 ago. 2023.
[65] CQNUAC.
Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Alterações Climáticas. Nova
York, 1992. Disponível em: <https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/d2652.htm>.
Acesso em: 04 fev. 2023.
[66] CQNUAC/PQ.
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[67] CQNUAC/AP.
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Acesso em: 04 fev. 2023.
[68] PCG99.
Protocolo à Convenção de Genebra de 1979 sobre a poluição atmosférica
transfronteiriças a longa distância relativo à redução da acidificação, da
eutrofização e do ozono troposférico. Genebra, 1999. Disponível em: <https://en.ministeriopublico.pt/instrumento/convencao-sobre-poluicao-atmosferica-transfronteiras-longa-distancia-0>.
Acesso em: 19 fev. 2023.
[69] CNUMAH.
Declaração da Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente Humano.
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Acesso em: 19 ago. 2023.
[70] RIO92.
Declaração do Rio. Rio de Janeiro, 1992. Disponível em: <https://apambiente.pt/sites/
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Acesso em: 04 fev. 2023.
[71] Cf.
ainda em BLANCHARD, op.
cit., p. 87-88.
[72] ALVES,
2022, p. de internet.
[73] Este
princípio permitiu, com relação às alterações climáticas, estabelecer uma
divisão de responsabilidades entre os países ditos desenvolvidos e os países em
desenvolvimento, considerando os primeiros os principais responsáveis pela
regulação das alterações climáticas no âmbito da governança ambiental. A partir
da assinatura do Protocolo de Quioto (CQNUAC/PQ) em 1997, esta norma foi
institucionalizada e estabeleceu que os Estados desenvolvidos do Norte Global (referidos
como Anexo I do Protocolo) são os responsáveis por adotar medidas para mitigação
das mudanças climáticas. Por outro lado, os países do Sul Global (não o Anexo
I) comprometeram-se a cooperar nas negociações sobre as alterações climáticas e
a apresentar relatórios periódicos para contribuir com os objetivos da CQNUAC (KIESSLING;
ALONSO, 2022, p. 160).
[74] BLANCHARD, op. cit., p.
89.
[75]
GORE; ALVAREZ, 2022, passim.
[76] A
exemplo do caso Urgenda Foundation v. State of the Netherlands, segundo SUPREME
COURT OF THE NETHERLANDS. Urgenda Foundation v. State of the Netherlands
case. ECLI:NL:HR:2019:2007, Hoge Raad, 19/00135, Dec. 2019, p. 28.
[77] BOURDIEU,
op. cit., p. 120.
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