Autor: Marcos Ticiano A. de Sousa
Fazia uma tarde ensolarada
de verão em ano inicial da década de 1970, mais especificamente,
eram por volta das 15h45min de domingo na cidade serrana de Portalegre. Às 16h00min, estava
prevista a largada da esperada corrida de jegue.
Contudo, havia algo
estranho no ar. As pessoas não se dirigiram ao local original da largada, que
se daria no campo de futebol, a cerca de um quilômetro do local da
chegada, antiga prefeitura, no centro da cidade. Logo, os competidores foram informados de que o
trajeto da corrida fora mudado. Percorreriam ruas do centro, provavelmente
para atrair mais espectadores.
Com a notícia, apesar
de perceber a importância do evento, aconteceu um desânimo na alma
infanto-juvenil de Lozato, vez que sabia como ninguém do comportamento do seu jegue e tinha
a certeza de que este iria estranhar e empacar em vários pontos do novo percurso.
Só seguia bem em caminhos antes frequentados. Do contrário, era uma luta fazê-lo andar, que dirá correr e galopar.
Dias antes, nos
intervalos dos afazeres, chegou a fazer o trajeto original da corrida diversas
vezes. Devagar no início, já que o animal tanto estranhava, mas, ao final, já conseguiu alguns galopes.
A propósito, deve-se esclarecer que a montaria nos jumentos era feita pela meninada no osso mesmo, munida,
quando muito, apenas do cabresto e uma corda, não com arreios, cangalha ou
cela. Esta última prestava-se aos montadores de cavalos ou burros mulos, aquela
era usada nos jegues para o transporte de pequenas cargas.
Além disso, o pimpolho costumava
andar no jumento posicionado na parte de trás do seu lombo, sobre as patas
traseiras, ou seja, na sua garupa, pois aí havia boa estabilidade. Se alguém montasse este animal desequipado, no seu dorso ou lombo, ou sobre as patas dianteiras,
teria enorme desconforto, sobretudo no cóccix e nos “países baixos”, dada a
grande trepidação ao caminhar ou galopar.
Outra curiosidade é que
as orelhas grandes do jerico, tal como as setas luminosas de mudança de direção
dos veículos, são bons indicativos de sua intenção de virar à esquerda, à
direita ou seguir em frente. A orelha esquerda inclinada para frente e a
direita para trás indicam sua intenção de dobrar à direita. Da mesma forma, a
orelha direita envergada para frente e a esquerda para trás indicam a
intenção de curvar à esquerda. Quando as orelhas estão, as duas, verticalizadas
ou postadas para frente, o muar não mudará de direção.
–
Mas, chega de enrolação! Cadê a corrida de jegue que não começa? – pode estar se perguntando o leitor.
–
Calma
amigo, não se avexe! Kkkkk! Só mais um pouco, as coisas não são tão simples assim! – já adianto eu, para apaziguar a ansiedade.
O novo trajeto possuía quatro trechos principais e consistia em margear uma área quadrangular
composta de cinco quarteirões no centro de Portalegre, dentre estes, a praça central.
Assim, o primeiro trecho depois da largada seguia por uma rua de
aproximadamente trezentos metros de comprimento, em que, na metade final, havia,
à esquerda, uma cerca de arame farpado isolando a execução de uma obra aos fundos do
colégio municipal da cidade. Após isso, dobrava-se à esquerda para acessar o
segundo trecho de quase quatrocentos metros por avenida, na qual, à direita,
podia-se observar a Igreja Matriz e, à esquerda, a praça central, onde a maior
parte das pessoas concentrava-se para assistir à competição. Depois, o terceiro
trecho continuava, virando novamente à esquerda, ao longo de mais trezentos
metros, até curvar outra vez para a esquerda e percorrer o quarto e menor
trecho de setenta metros, que terminava na lateral da antiga prefeitura. Finalmente,
dobrava-se a esquina desta para alcançar a linha de chegada, frente à referida praça principal.
Ou seja, o trajeto todo media em torno de mil e setenta metros, nada mal para
uma corrida deste tipo.
Eram 16h00min, e os garotos estavam todos a postos. Lozato se posicionou no meio dos conjuntos, montado, como já
frisado, na garupa do jegue, a segurar a corda do seu cabresto. Quando começou a
disputa, saíram – o menino e o jegue – em baixa velocidade, o que já lhe incomodou. O
animal não conhecia muito bem aquele primeiro trecho, pois raramente passava
por ali. Para piorar, na primeira transversal, entrou à esquerda quando o guri teve de fazer grande esforço para trazê-lo de volta logo no início de sua ação.
Continuaram caminhando quase parando, e o jumento, não sei se para se vingar, ainda
passou resvalando toda a cerca de arame farpado, de tal forma que o cavaleiro chegou a ficar com
o corpo deitado sobre o lombo do bicho e a perna esquerda esticada para trás para não
rasgá-la no arame da cerca. Enquanto isto, não havia mais ninguém do lado ou atrás, todos haviam passado.
O segundo trecho era o
que o jumento conhecia bem, porquanto fazia parte de seu caminho diário, tanto
quando era levado para pastar no Sítio do Brejo ou quando trazido para as atividades diárias.
Bom, neste trecho, o bicho “partiu para dentro”. O menino inclinou-se à frente, deu corda ao cabresto e seguiram em disparada; passaram pela Igreja e pela praça principal com tanta velocidade
que ultrapassaram vários conjuntos. Também ouviu de longe murmúrios e gritarias
que mal compreendia:
–
É aquele que vai ganhar! Acho que será aquele, sim! Íhu! Íhu!
Como mencionado, essa era a parte conhecida do jerico, o que trouxe alegria, porém, ao seu
final, decepção. Eis que este não acatou as tentativas de Lozato de fazê-lo virar à
esquerda e seguir o percurso normal, passou direto no fim do trecho, como
se fosse para o quintal dos fundos de sua casa. Cerca de trinta metros depois, o garoto teve
de pular no chão, pará-lo e puxá-lo de volta ao terceiro trecho do trajeto. A
esta altura, estava tão irado que já não dizia "coisa com coisa", de tantos palavrões exprimidos contra o “diacho”[1].
Já novamente montado,
por mais que o estimulasse, o jumento não corria, andava, mais uma vez, como
a se vingar. Para completar o embaraço, tentou entrar à direita na rua transversal do
trecho que dava para a frente da casa do garoto. Mas, desta vez, este conseguiu contornar, ficando só
na tentativa, até por estarem bastante devagar. Seguiram para a parte final do
percurso com o animal demasiadamente lento, quase empacando, tanto que, quando
entraram no quarto trecho, ouviam-se pessoas falando:
–
Ah coitado, só agora esse moleque tá chegando!
Alcançado o local
definido, Lozato viu com tristeza que tinha sido o penúltimo a completar a corrida.
Já ocorria a premiação, que consistia na entrega de algo de valor
simbólico aos três primeiros colocados. Ficou ali parado, a observar o
movimento, quando constatou que o ganhador portava um imenso pedaço de madeira
usado para açoitar o corpo e o pescoço do seu jumento, a fim de fazê-lo correr
e cumprir o trajeto.
–
Desse
jeito, não gostaria de ter ganhado –
concluiu, resmungando, apesar dos
seus imaturos onze anos e da raiva que sentia do jegue.
Ainda estava absorto
com a derrota, quando um senhor, amigo do seu pai, aproximou-se e disse:
–
Mais rapaz! Quando você passou ali pela Igreja, estava numa velocidade tão danada que achei que fosse ganhar! O que aconteceu, homem?
–
Mudaram
o percurso de última hora, e o jumento só conhecia bem aquele trecho, por
ser o caminho de casa – disse o menino,
aborrecido.
–
Tem nada não, na próxima, você ganha! – observou,
tentando lhe consolar.
–
Obrigado.
Mas não sei se terá uma próxima...
[1] Misto de diabo com bicho.
Para citar este texto: SOUSA, M. T. A. de. Corrida de jegue. MTiciano Sousa, Natal, jun. 2017. Disponível em: <http://mticianosousa.blogspot.com.br/2017/06/a-corrida-de-jegue.htmll>. Acesso em: xx.xx.xxxx.
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