terça-feira, 2 de dezembro de 2014

ARTIGO - REFLEXÕES ACERCA DO FILME MEMENTO (AMNÉSIA) À LUZ DE PRESSUPOSTOS DA PSICOLOGIA JURÍDICA

Série acadêmica

1. INTRODUÇÃO
Trata-se de exame acerca do filme Amnésia (do inglês Memento) de Christopher Nolan, lançado em 2001, o qual obteve grande sucesso de crítica pelo conteúdo por demais sensível e pela forma mosaica e inovadora em que foi apresentado.
O objetivo é analisar o longa-metragem na perspectiva da Psicologia – principalmente, nos aspectos dos processos psicológicos básicos em suas funções percepto-gnósicas, atencionais e mnemônicas, nos experimentos de Bartlett e nos aspectos da psicologia do testemunho e das falsas memórias – no intuito de aplicá-la ao Direito Civil e Penal brasileiros, além de fomentar as melhores decisões judiciais no âmbito processual destas duas áreas, sempre a fomentar a dignidade da pessoa humana. Alguns dispositivos da nossa Constituição e legislação, Código Civil, Código Penal e Código de Processo Penal, atrelados ao tema, são abordados.
Assim, no presente artigo, as discussões são sustentadas a partir da articulação que se faz entre as particularidades do filme e as posições doutrinárias e legais relacionadas à Psicologia Jurídica, de maneira a externar criticamente a nossa compreensão sobre o assunto.

2. CONSIDERAÇÕES FÁTICAS
O filme Amnésia de Nolan (2001) é apresentado em duas sequências, uma em ordem reversa, em cores, e outra em ordem cronológica, em preto e branco, em um mosaico a retratar o que seu protagonista principal, Leonard Shelby, passou após um incidente bastante inusitado e desagradável.
Tendo sofrido uma pancada na cabeça, após atirar e matar um dos dois indivíduos que estupraram e asfixiaram a sua esposa, Leonard sofreu uma lesão cerebral, deixando como sequela uma amnésia anterógrada. Nesta situação, ele se lembra de todo o seu passado até o incidente, com ênfase na última imagem da sua esposa, dada a enorme carga emocional somatizada no desfecho. Porém, quanto ao presente, guarda na memória apenas o que ocorre nos últimos minutos do momento corrente.
Nessa condição, permanece com a ideia fixa de encontrar o segundo assassino fugitivo que o atingiu e vingar pessoalmente a morte da esposa, tendo em vista que a polícia deu o caso como encerrado, por não acreditar na sua versão de que havia um segundo indivíduo na cena dos crimes.
Para concretizar tal ideia fixa, Leonard organiza um sistema de anotações, em que os assuntos mais efêmeros são registrados em papéis e os mais importantes são tatuados no próprio corpo, além de fotografar tudo com uma máquina instantânea. Com isso, registra e tenta concatenar todos os fatos ligados ao seu objetivo, na intenção de suprir a falta de manutenção da memória.
Faz-se necessário, a partir dessa situação, o acréscimo de aspectos técnicos da psicologia que podem explicar a percepção do protagonista do filme em relação ao inusitado evento por ele vivificado.

3. ANÁLISE DOS ASPECTOS PSICOLÓGICOS
O filme, tão propício às incertezas das interpretações subjetivas dos expectadores quanto os processos de consolidação e evocação da memória – talvez um dos objetivos do autor –, dar a entender que o protagonista passa a viver intensa e eternamente o presente como se fosse o último momento da sua vida, com o fim de vingar a morte da esposa, a ponto de esquecer até que já houve uma vingança e, mesmo assim, continuar perseguindo o objetivo.
Nesse contexto, pode-se verificar que o protagonista continua com as funções percepto-gnósicas de sensação aos estímulos, percepção e cognição, porém, no que se refere às funções mnemônicas, após o incidente, apresenta somente a primeira fase da memória, em que consegue adquiri-la e codificá-la, perdendo-a minutos depois. As fases de consolidação e de evocação da memória não foram conservadas por Leonard. Nesta linha, deve-se acrescentar que a memória humana

é de curto ou de longo prazo. A memória de curto prazo abarca informações guardadas na memória apenas por poucos instantes. Portanto, é a memória que utilizamos para proferir uma frase gramatical que faça sentido. A memória de longo prazo contempla as informações que ficam armazenadas por mais tempo, podendo perdurar por horas, dias, anos ou mesmo décadas. A memória de longo prazo pode ainda ser dividida em memória procedural e memória declarativa. A primeira vincula-se às memórias de capacidades ou habilidades motoras ou sensoriais e o que chamamos de hábitos (Exs.: andar de bicicleta, nadar, saltar, soletrar, etc.). A memória declarativa registra fatos, eventos ou conhecimento, sendo responsável pelo armazenamento de dados passíveis de serem declarados (FLORES, 2009, p. 67).

No que se refere às funções atencionais, Luria (1984) ensina que elas correspondem ao processo mental básico organizado, que, possuindo um grau de direção e seletividade, responde pelas escolhas de elementos importantes à atividade mental, a permitir o organismo tornar-se receptivo a estímulos e reagir às excitações internas ou externas (apud BARROS, 2014). Tais funções se aplicam a Leonard, desde que não o imponha um tempo que exceda alguns minutos.
Segundo Cestaro et al. (2009), fatores objetivos e subjetivos interferem na captação dos estímulos e, por conseguinte, influenciam na percepção. São fatores objetivos: características do estímulo como intensidade, tamanho, cor e repetitividade; características do meio como o grau de iluminação e o silêncio. Já os fatores subjetivos podem ser: atenção, estado psicológico de quem recebe, processo catatímico e fadiga psíquica.
Em razão disso, podemos inferir que Leonard tenha sido influenciado pelos fatores objetivos e, predominantemente, pelos fatores subjetivos determinados pelo estado psicológico, dada a grande carga de emoção envolvida, e processo catatímico, considerada a sua grande afeição pela esposa. Tais fatores podem ter prejudicado sua percepção do que realmente ocorreu no momento do evento. Por exemplo, existem dúvidas acerca da existência da segunda pessoa a praticar o crime, e se uma delas foi realmente morta por ele, como acredita e testemunha.
É necessário ainda destacar a visão de Mira Y Lopez (2008), acerca dos fatores adquiridos que influenciam a forma como a pessoa reage, aplicando-se ao protagonista. Eles são: a prévia experiência de situações análogas, a constelação, a situação externa atual, o tipo médio de reação social e o modo de percepção da situação. "A experiência prévia de situações análogas seria o primeiro fator a considerar puramente exógeno", isto é, adquirido em vida. Sem dúvida, o exemplo vivido e a experiência anterior influenciam de modo decisivo a determinação da reação atual. A constelação significa a influência que a vivência ou a experiência imediatamente antecedente exerce na determinação da resposta à situação atual (apud LEAL, 2008, p. 178).
Outrossim, no que tange à memorização, sustentam Cestaro et al. (2009) que ela pode ser influenciada, inconscientemente, por vários fatores como emoção, associação, imaginação, sugestão, ação do tempo e repressão.
Os fatores que mais podem ter influenciado a memória de Leonard (momentos antes do evento), acreditamos, foram a emoção e a repressão. A emoção, porque as “pessoas que presenciam um assassinato [...] dificilmente se lembrarão de todos os detalhes com precisão. Tais lapsos de omissão da memória ligam-se ao bloqueio da evocação, ligado a causas emocionais” (CESTARO et al. 2009, p. 11). Já o fator repressão influencia a memória, porque significa “‘o afastamento involuntário de algo da consciência, um tipo inconsciente de esquecimento da existência de algo que nos traz constrangimento ou sofrimento’. Consiste no mecanismo de defesa mais importante e mais frequentemente usado” (SCHUTZ, 2004 apud CESTARO et al. 2009, p. 12).
Com efeito, para o período anterior ao incidente, todas as funções da memória foram preservadas, tanto que Leonard consegue executar, no presente, todas as atividades que dependem das memórias de longa duração, explícitas ou implícitas, apreendidas antes do evento, como caminhar, dirigir, ler, falar, escrever, fotografar, atirar, classificar e resgatar eventos, guardar rancor, etc.
Assim, concordamos que, a partir das experiências de Bartlett, é possível vislumbrar a organização de reações e experiências passadas do protagonista do filme em todas as suas ações do presente (1932 apud BARROS, 2014), apesar de estas serem fugazes. Desta forma, é possível verificar que os insights concebidos nas suas ações do presente fundam-se nas experiências passadas ou na “memória de um passado intersubjetivo, do tempo passado vivenciado em relação a outras pessoas [ou coisas]” (MISZTAL, 2003 apud MIDDLETON; BROWN, 2006, p. 73).
Por outro lado, observamos que os aprendizados passados de Leonard acabaram por se tornar obsoletos, já que não houve mais o fluxo contínuo de consciência, não existindo mais a recordação ou renovação desses aprendizados e a formação de outros a partir do momento da sua lesão cerebral, mesmo se fosse submetido a exercícios de condicionamentos. Estes treinamentos, com o objetivo de condicionar, não tiveram êxito no personagem Sammy, que também sofria de amnésia anterógrada, conforme revela o filme.
A inocorrência de tais efeitos, relativamente aos indivíduos sem lesão cerebral, condiz, a nosso entender, com o pensamento de William James, quando leciona que a memória deve ser considerada em termos da habilidade para ligar aspectos da nossa experiência, na medida em que estes se apresentam no fluxo contínuo da consciência, implicando alguma forma de seleção. Com efeito, é necessário fazermos escolhas relativas à natureza das conexões a serem realizadas, de maneira que nossas lembranças possam se adequar melhor aos nossos interesses e atividades. “Consequentemente, ‘na utilização prática de nosso intelecto, esquecer é uma função tão importante quanto recordar’” (JAMES, 1950, p. 679 apud MIDDLETON; BROWN, 2006, p. 72).
Em sentido semelhante, concordamos com o que elucida Bartlett, ao destacar que esquecer eventos de menor relevância resulta em grande economia cognitiva, pois o fato de o sistema de memória esquecer gradualmente as informações é adaptativo, de forma que a pessoa reterá somente as informações mais relevantes para agir sobre o meio (1932 apud BARROS, 2014).
O fato de o protagonista do filme de Nolan (2001) afirmar que não consegue parar de pensar na morte da esposa, e esta circunstância, provavelmente, se deve à enorme carga emocional envolvida no evento da sua morte, pode ser vislumbrado como uma forma de “objetificação da experiência” (MIDDLETON; BROWN, 2006, p. 93), combinado, a nosso ver, ao não acúmulo de novas memórias de longa duração a partir da lesão.
Entretanto, a ideia permanente de vingar a morte da mulher pode resultar das influências passadas de Leonard, tendo em vista, inferimos, os seus ambientes físicos e sociais de convívio, enfatizados pela banalização da violência, principalmente na mídia informativa e cinematográfica.
Esse entendimento coaduna-se com o que Bartlett chamava de “cenário organizado” definido “como a adaptação contínua e dinâmica entre as pessoas e seus ambientes físicos e sociais”. Tal cenário é um complexo que abrange a cognição e o âmbito emocional, localizado nas, e dependente das, particularidades culturais e materiais do ambiente local, não sendo possível separar o que é mental do social (1932 apud MIDDLETON; BROWN, 2006, p. 76-77).
Também concordamos com esses autores quando preconizam que os “cenários organizados tornam o mundo estável, libertando-nos do ‘determinismo cronológico’ do momento presente, mas, ao mesmo tempo, não determinam nosso pensamento de forma rígida” (BARTLETT, 1932, p. 202 apud MIDDLETON; BROWN, 2006, p. 77). O que não ocorreu com o protagonista do filme Amnésia que, como já mencionado, possuía uma ideia fixa de vingança e da qual não conseguia se libertar, mesmo quando a vingança já havia sido realizada.
Nesse contexto, é como se Leonard não conseguisse tornar-se consciente, ou seja, não conseguisse psicologicamente fazer com que o seu organismo descobrisse como voltar-se contra seus próprios “esquemas” (BARTLETT, 1932, p. 208 apud MIDDLETON; BROWN, 2006, p. 77). Segundo estes autores, estar consciente é ter uma percepção reflexiva do cenário organizado em que seus pensamentos e ações estão situados, opinião da qual compartilhamos.
Esse entendimento de Bartlett traz em seu bojo o pensamento dialético, próprio dos pesquisadores que analisam todas as variáveis envolvidas no processo psicológico, quando reagia ao “dualismo entre as esferas individual e social” de formação da memória (BARTLETT, 1932 apud MIDDLETON; BROWN, 2006, p. 76). Isto se contrapõe, de certa forma, ao entendimento – do qual não compartilhamos – de que os fatores sociais de formação da memória podem ser considerados como outro conjunto de variáveis independentes, apartado da esfera individual, que pode ser incluído nos procedimentos quando for apropriado (CONWAY, 1992; STEPHENSON et al., 1991 apud MIDDLETON; BROWN, 2006).
Nesse diapasão, conseguimos identificar mais claramente no filme Amnésia de Nolan (2001), na pessoa do personagem principal Leonard, dois dos temas-chaves estudados por Bartlett (1932 apud MIDDLETON; BROWN, 2006), quais sejam: a convencionalização, modificação da forma como ele se apropria, modifica, reconstrói ou destrói a narrativa, símbolos e artefatos, como parte de sua incessante prática de recordar o passado no presente – apesar de limitado a poucos instantes; e a objetificação, já mencionada, como a dimensão corporificada da recordação, requerendo o estudo vivo do engajamento com outras pessoas a envolver grande carga emocional, com objetos dotados de significação e com as particularidades do lugar que habita ou do local da ocorrência do fato a ser lembrado.

4. SUBSUNÇÃO AO DIREITO BRASILEIRO
Por fim, é de se indagar, perante o ordenamento jurídico brasileiro, se Leonard teria capacidade, ou não, para os atos da vida civil e se poderia, ou não, ser responsabilizado civil e penalmente.
Sob o âmbito civil, caso homem real fosse, por prescrição do art. 1.767, I, do Código Cívil (CC), ele estaria sujeito à interdição mediante curatela, devido a sua incapacidade relativa e permanente provocada pela amnésia anterógrada, porquanto representaria perigo de dano iminente e reiterado à sociedade. Nesta situação, seu curador responderia objetivamente – independentemente de culpa – pelos prejuízos provocados pelo curatelado a outrem, conforme os arts. 932, II, e 933 do CC. Além disso, combinando estes dispositivos com os arts. 928 e 934 do mesmo diploma legal, o curador deveria pagar pelo prejuízo causado. Entretanto, este teria o direito de reaver do curatelado o que pagou, contanto que ele possuísse patrimônio e não fosse comprometido o seu sustento.
Já na esfera penal, Leonard seria responsável pelos delitos que porventura viesse a cometer. Porém, a punição, mitigada pela sua condição mental, psicológica e/ou psiquiátrica, irreversível, deve ser convertida em medida de segurança, tendo em vista o perigo e a possibilidade de reiteração do delito, a ser cumprida em hospital de custódia (Instituto Psiquiátrico Forense), mantido pelo Estado para esta finalidade (art. 97, combinado com art. 26, parágrafo único, e art. 96 do Código Penal, e art. 319, VII, do Código de Processo Penal). São providências que se impõem até mesmo por força do art. 1º, III, da Constituição Federal, com fundamento na dignidade da pessoa humana.
A referida punição – convertida em medida de segurança, ressaltemos – deveria ser atenuada pelo juiz, que, principalmente para este fim, não poderia deixar de contar com a assistência de peritos psicólogos, durante a tramitação das fases de conhecimento e de execução do processo penal. É neste sentido que, em meados da década de 1960, Dourado já vislumbrava:

não se concebe, no processo penal, que se omitam os conhecimentos científicos da Psicologia, no sentido de se obter maior perfeição no julgamento de cada caso em particular. (...) Para se compreender o delinqüente, mister se faz que se conheçam as forças psicológicas que o levaram ao crime. Esta compreensão só se pode obter examinando-se os aspectos psicológico-psiquiátricos do criminoso e de seu crime (1965, p. 7 apud LEAL, 2008, p. 173).

Tal precaução se justifica pela especialidade do tema e, portanto, pela impossibilidade de o magistrado acompanhar e interpretar as particularidades da Psicologia, assegurando a adequada aplicação ao âmbito jurídico. Evita-se, assim, que injustiças sejam cometidas com pessoas que praticaram algum delito, não por serem criminosas em si, mas por possuírem disfunções mentais em maior ou menor grau.

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Entendemos que um dos objetivos do autor do filme foi correlacionar a subjetividade das várias interpretações dos expectadores com os processos de aquisição, consolidação e evocação da memória, que, como constatado, estão condicionados a variáveis diversas.
Foi verificado que o protagonista continua com as funções percepto-gnósicas de sensação aos estímulos – percepção e cognição –, entretanto, em relação às funções mnemônicas, após o incidente, apresenta somente a primeira fase da memória, em que consegue adquiri-la e codificá-la, perdendo-a minutos depois, não restando conservadas as fases de consolidação e de evocação da memória. Já as funções atencionais se aplicam a Leonard, desde que não o imponha um tempo que exceda alguns minutos.
A ideia fixa de Leonard de vingar a morte da esposa está ligada ao fato de não haver mais fluxo de consciência a partir do evento que ocasionou a sua lesão cerebral, a qual, com a enorme carga emocional envolvida, ocasionou a objetificação, consubstanciada na corporificação estática ou fixa da recordação, bem como a convencionalização, resultante da forma como ele modifica e se apropria do evento para recordar o passado no presente. Salutar seria a ocorrência de cenários organizados com a adaptação contínua e dinâmica da consciência, o que já não ocorre com o protagonista do filme, a continuar com a ideia fixa de vingança, mesmo quando ela já se realizou.
Por fim, sustentamos, com base na nossa legislação, que Leonard, caso vida real tivesse e brasileiro fosse, deveria ser interditado mediante curatela, dado que, em sua incapacidade relativa e permanente provocada pela amnésia anterógrada, representaria perigo de dano iminente e reiterado à sociedade. Penalmente, caso cometesse algum delito, deveria ser punido, mas por meio de medida de segurança, e, na tramitação das fases cognitiva e de execução do processo penal, o juiz não poderia prescindir da assistência de um psicólogo.

REFERÊNCIAS

BARROS, Priscila Magalhães. Notas de aula da disciplina Psicologia Aplicada ao Direito. Natal: UFRN, 2014.

CESTARO, Breno et al. Psicologia do testemunho: eu sei que a testemunha está mentindo e outros mitos. Manaus: UEA, [2009]. Disponível em: <http://docplayer.com.br/14491804-Psicologia-do-testemunho-eu-sei-que-a-testemunha-esta-mentindo-e-outros-mitos.html>. Acesso em: 30/11/2014.

FLORES, Marcelo Marcante. Prova testemunhal e falsas memórias: entrevista cognitiva como meio (eficaz) para redução de danos(?). Revista IOB de Direito Penal e Processual Penal, Porto Alegre, ano 11, n. 61, abr./maio 2010. p. 65-76.

LEAL, Liene Martha. Psicologia jurídica: história, ramificações e áreas de atuação. Diversa, Fortaleza, ano 1, n. 2, jul./dez. 2008. p. 171-185.

MIDDLETON, David; BROWN, Steven D. Tradução de Karin Quast. A psicologia social da experiência: a relevância da memória. Pro-Posições, Leicestershire, v. 17, n. 2 (50), maio/ago. 2006. p. 71-97.

NOLAN, Christopher. Memento (Amnésia – Trad.). Longa metragem. EUA, 2001.

Para citar este texto: SOUSA, M. T. A. de. Reflexões acerca do filme Memento (Amnésia - trad.) à luz dos pressupostos da Psicologia Jurídica. MTiciano Sousa, Natal, dez. 2014. Disponível em: <http://mticianosousa.blogspot.com.br/2014/12/analise-critica-acerca-do-filme-memento.html>. Acesso em: xx.xx.xxxx.

sexta-feira, 7 de novembro de 2014

AÇÃO DE NUNCIAÇÃO DE OBRA NOVA

Série acadêmica
FICHAMENTO DA AÇÃO DE NUNCIAÇÃO DE OBRA NOVA: WAMBIER, Luiz Rodrigues; TALAMINI, Eduardo. Curso avançado de processo civil: processo cautelar e procedimentos especiais. 10. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010. Cap. 22, p. 276-284.

A ação de nunciação de obra nova trata-se de um embargo que visa a impedir o prosseguimento de obra nociva, com o intuito de proteger a propriedade ou a posse, tendo, portanto, como fundamento o direito de propriedade.
Tem o proprietário ou o possuidor o direito de embargar a realização de obra em prédio vizinho, desde que interfira no uso normal da propriedade ou que conflite com os regulamentos administrativos.
Obra aqui significa construção, reforma, demolição, escavação, terraplenagem ou até a pintura de um prédio, bem como colheitas, extração de minérios e cortes de madeiras. Quer dizer, alteração no estado fático anterior. Mas a obra tem de ser nova e não deve estar concluída.
São três as hipóteses de cabimento da ação em comento:
a) quando a obra nova em imóvel vizinho possa prejudicar o prédio, suas servidões ou fins a que é destinado. Neste caso, a legitimidade ativa é do proprietário ou possuidor, tendo como fundamento o prejuízo ao prédio que a obra possa causar.
b) quando algum condômino estiver executando obra com prejuízo ou alteração na coisa comum. A legitimidade ativa é do condômino.
c) quando o particular realizar obra nova, em afronta à lei, regulamento ou postura. A legitimidade ativa é do Município, que tem o dever de fiscalizar as obras em respeito à coletividade.
A legitimidade passiva sempre será o dono da obra e não necessariamente o proprietário do imóvel.
É possível o prejudicado opor embargo extrajudicial, em caso de urgência, notificando verbalmente o proprietário da obra ou, na sua falta, o construtor, na presença de duas testemunhas, para que interrompa imediatamente a obra.
O prejudicado terá prazo de três dias para requerer a ratificação em juízo, quer dizer, propor a ação de nunciação em juízo, como se liminar houvesse sido concedida. Este pedido de liminar deve constar da petição inicial da ação de nunciação da mesma forma como pediria se não ocorresse o embargo extrajudicial.
Os pedidos da ação de nunciação de obra nova podem ser cumulados, contendo o da suspensão da obra nociva e o desfazimento daquilo que prejudica o autor, assim como a cominação da pena em face da inobservância do preceito e a condenação por perdas e danos. Além disso, o nunciante pode pedir a apreensão e depósito dos materiais e produtos já retirados.
Na petição inicial, devem constar além dos requisitos do art. 282 do CPC, os pedidos acima referidos, acompanhados dos documentos que provem a legitimação ativa, bem como os que comprovem o prejuízo ensejador da ação. Na ausência de prova documental, o autor pode requerer a justificação.
Deferido o embargo, este será cumprido pelo oficial de justiça que, no local, lavrará ato circunstanciado constando o estado atual da obra. Neste ato, já intimará o construtor e os operários a que não continuem a obra, sob pena de desobediência. Em seguida, o mesmo oficial citará o proprietário da obra para que, querendo, responda em cinco dias.
O procedimento segue o rito previsto para o processo cautelar, vez que se aplica, aqui, o disposto no art. 803 do CPC.
Para que possa prosseguir, a qualquer tempo, com a obra embargada, o réu deve demonstrar o prejuízo para a obra e prestar caução, salvo quando se tratar de inobservância a regulamentos administrativos.
O que pode acarretar o prosseguimento da obra não é qualquer prejuízo, e sim aquele especial ou a possibilidade de danos sérios com a sua suspensão. O prosseguimento pode ser requerido em qualquer grau de jurisdição, porém a caução, real ou fidejussória, será prestada no juízo de origem.
A sentença é principalmente mandamental, mas pode ser condenatória, no que se refere às perdas e danos. Aplicam-se subsidiariamente as regras do art. 461 do CPC.
A sentença, quando de mérito, faz coisa julgada material, visto que a cognição da ação é exauriente.
Da sentença cabe recurso de apelação nos efeitos suspensivos e devolutivos, exceto quando concede ou confirma a medida urgente de embargo.

segunda-feira, 8 de setembro de 2014

AÇÃO DE USUCAPIÃO

Série acadêmica
FICHAMENTO DO TEXTO "AÇÃO DE USUCAPIÃO": WAMBIER, Luiz Rodrigues; TALAMINI, Eduardo. Curso avançado de processo civil: processo cautelar e procedimentos especiais. 10. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010. Cap. 23, p. 285-298.

Usucapião é uma forma de aquisição originária da propriedade em função da posse continuada, durante certo lapso de tempo, de maneira que, aquele que possuir ininterruptamente a coisa como sua, por um período de tempo determinado em lei, adquire a propriedade.
É possível o possuidor somar à sua posse a dos antecessores, desde que sejam ininterruptas e pacíficas as transferências. É necessário que haja o ânimo de dono, ficando afastadas as possibilidades de usucapião por mera detenção, por posse direta ou precária, segundo os autores acima referenciados.
O tempo para usucapir varia de acordo com as modalidades previstas em lei. Independente de título e de boa-fé (usucapião extraordinário): quinze anos para usucapir.
Moradia habitual ou realização de obras ou serviços de caráter produtivo: dez anos.
Justo título e boa-fé (usucapião ordinário): dez anos.
Aquisição onerosa com registro em cartório cancelado posteriormente, mas com estabelecimento de moradia ou realização de investimentos de interesse social e econômico: cinco anos.
Imóvel rural até 50 hectares em que o possuidor tenha moradia e trabalho produtivo, desde que não tenha outro imóvel rural ou urbano (usucapião especial): cinco anos.
Imóvel urbano de 250 metros quadrados em que o possuidor tenha moradia ou de sua família, desde que não tenha outro imóvel urbano ou rural (usucapião especial para área urbana): cinco anos.
Áreas urbanas com mais de 250 metros quadrados, ocupadas por pessoas de baixa renda, desde que não tenham outro imóvel urbano ou rural (usucapião coletivo): cinco anos.
Ao promover a ação de usucapião, o possuidor já terá se tornado proprietário, se presentes os requisitos legais, acima referidos, não sendo necessária a posse atual.
As terras públicas são insusceptíveis de usucapião, conforme o art. 191, parágrafo único, da Constituição Federal (CF).
Na propositura da petição da ação de usucapião, são necessários, além dos requisitos do art. 282 do Código de Processo Civil (CPC), a identificação minuciosa do imóvel, para fins de registro no ofício competente, e o fundamento do pedido, com o fim de verificação dos requisitos e da modalidade de usucapião.
O legitimado ativo é o possuidor que alega ter completado o tempo necessário ao usucapião, mesmo que já não tenha mais a posse ou tenha somado à sua a posse dos antecedentes.
São legitimados passivos os réus certos e os réus incertos. Os primeiros são os confinantes ou aquele em cujo nome esteja registrado o imóvel. Podem ser: réus certos em local certo, quando o paradeiro seja conhecido, em que a citação será pessoal, conforme a súmula 391 do STF; réus certos em local incertos, quando se sabe quem é o principal réu da ação, mas seja desconhecido o seu paradeiro ou o dos confinantes. Neste caso, a citação será por edital, sendo obrigatória a nomeação de curador.
Já os réus incertos configuram-se quando o imóvel não se encontrar registrado, e a citação dar-se-á por edital. Segundo a jurisprudência, não é necessário nomear curador.
Os eventuais interessados ou litisconsortes necessários, os quais podem ter alguma pretensão incompatível com o usucapião, são citados por edital. Os cônjuges dos proprietários também devem ser citados.
Os representantes da Fazenda Pública da União, dos Estados, do Distrito Federal, dos Territórios e dos Municípios devem ser intimados, por via postal, para que manifestem interesse, dado que não pode haver usucapião em terras públicas.
O procedimento prossegue, após as citações e intimações, no rito ordinário. O prazo para contestação é de quinze dias, e qualquer citado pode contestar. Para o litisconsorte passivo necessário, o prazo será contado em dobro, se houver diferentes procuradores.
O Ministério Público intervirá em todos os atos do processo, podendo inclusive recorrer.
A sentença tem natureza declaratória, pois não altera a relação jurídica, apenas a reconhece como existente, retroagindo os seus efeitos ao momento em que se deu a aquisição. Além disso, a sentença torna-se título judicial com o qual o autor obtém o registro imobiliário, sendo ela transcrita no ofício respectivo por meio de mandado.
No caso de usucapião coletivo, há a distribuição paritária dos terrenos ou igual fração ideal, salvo acordo escrito entre os condôminos.
Acrescenta-se que a sentença de mérito, de procedência ou não, faz coisa julgada material, já que a cognição da ação em tela é exauriente. O efeito é erga omnes, mas a coisa julgada só vigora entre as partes e seus sucessores, uma vez que um terceiro poderá pretender a coisa como sua judicialmente.
Da sentença de usucapião cabe recurso de apelação nos efeitos suspensivos e devolutivos.

terça-feira, 17 de junho de 2014

RESENHA DA PRIMEIRA PARTE DO LIVRO: "BIOÉTICA À LUZ DA LIBERDADE CIENTÍFICA: ESTUDO DE CASO BASEADO NA DECISÃO DO STF..."

Série acadêmica
Resenha da Primeira Parte – Introdução, Capítulo 1 (parte), Capítulo 2 e Capítulo 3 – do livro: MARTINS, Leonardo; SCHLINK, Bernhard. Bioética à luz da liberdade científica: estudo de caso baseado na decisão do STF sobre a constitucionalidade da Lei de Biossegurança e no direito alemão. São Paulo: Atlas, 2014.

INTRODUÇÃO

É feita uma exposição inicial acerca da decisão proferida na ADI 3.510/DF, questão relativa ao art. 5º da Lei de Biossegurança, julgada improcedente.
A decisão é criticada, tendo em vista a não exaustão, durante o processo legislativo, dos debates legislativos relativos ao tema, bem como a inadequada discussão pátria, que parte dos não inequívocos ou consensuais conceitos de dignidade e vida humanas e das promessas do desenvolvimento da ciência e tecnologia genéticas para a cura de doenças ainda incuráveis.
Assim, foi proposta esta exposição, enfocando as complexas questões bioéticas como limites que são à liberdade científica. Tal exposição trata de uma metodologia a partir de uma teoria e uma dogmática dos direitos fundamentais inspiradas no direito alemão e compatíveis com a ordem constitucional pátria, reduzindo a breves sentenças as consequências alcançadas.
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CAPÍTULO 1
DOGMÁTICA E MÉTODO JURÍDICO-CONSTITUCIONAL DO CONTROLE NORMATIVO: COM ÊNFASE NA PROBLEMATIZAÇÃO DE CRITÉRIOS APLICÁVEIS NA INTERPRETAÇÃO DA CF

Apresenta-se a sistematização da questão jurídico-constitucional envolvida na elaboração de leis restritivas de direitos fundamentais em benefício de convicções políticas de proteção da vida e dignidade de embriões humanos. Neste sentido, será feito um esforço para identificar os fundamentos jurídico-dogmáticos quando da escolha de um método racional-jurídico diante do contexto jusfundamental envolvido no debate.

Alcance da competência do Tribunal Constitucional Federal para o controle normativo
O controle normativo alemão é concentrado e realizado pelo Tribunal Constitucional Federal. Este órgão é considerado o “juiz natural” ou “juiz legal” a dirimir dúvidas relativas à constitucionalidade das leis, de normais infralegais e de atos normativos concretos do poder público em sentido lato, mesmo que no contexto de um processo objetivo.

Parâmetros do controle normativo
A fixação desses parâmetros é decisiva para se chegar a uma decisão judicial fundada na ordem constitucional. Tal escolha dependerá de reconhecimentos jurídico-dogmáticos consolidados e da escolha de um método baseado em concepções justeóricas. A despeito do método de ponderação principiológica, foi escolhido o da análise das intervenções e dos limites dos direitos fundamentais, em que a inconstitucionalidade é verificada só depois da não presença da hipótese de justificação constitucional da intervenção do Estado, aplicando-se proporcionalmente o limite constitucional ao direito fundamental parâmetro.
A partida para a escolha dos parâmetros é a posição jusfundamental atingida pelo suposta regra de conciliação adotada pelo legislador, com sua ação comissiva, o que reduziria a sua discricionariedade, na medida em que se retira desta a possibilidade de inação.
Assim, são considerados os parâmetros: da dignidade humana (art. 1, I, GG); do direito fundamental à vida (art. 2, II, GG); e de liberdade negativa envolvida, que é a liberdade científica (art. 5, III, GG).

Dignidade humana
Para efeitos introdutórios, menciona-se o seu papel reativo frente às violações históricas elementares do que deva ser a dignidade de todo o ser humano.

Dignidade humana como “pedra angular” do Estado constitucional: dificuldades de sua definição
A certeza da necessidade de se proteger a dignidade humana tem levado a uma perigosa despreocupação jurídico-dogmática. Isto se deve às dificuldades de sua definição a fim de se identificar os alcances da norma constitucional. Destarte, hoje, busca-se, na jurisprudência do TCF e na doutrina alemã, defini-la negativamente a partir do enfrentamento casuístico de hipóteses de violação e não da ontologia conceitual.
Uma variante da teoria conceitual negativa é a “fórmula-objeto”, segundo a qual a violação da dignidade humana aconteceria quando a pessoa fosse reduzida à condição de instrumento para se alcançar outros propósitos. Porém, foi criticada como sendo muito vaga.
Além disso, para a definição, concorrem três “famílias teóricas”: as axiológico-transcendentais; as centradas na autoconstrução da dignidade pelo seu titular; e as comunicativas. As primeiras têm fundamentação jusnaturalista, com variantes kantiana, baseada na razão pura e na autonomia moral, e cristã. Há impossibilidade de atualização do conceito de dignidade humana bem como ao seu uso mediante bases teológicas e metafísicas. No segundo caso, a dignidade humana haveria de ser conquistada no desenvolvimento da personalidade ou da identidade. É insatisfatória, vez que, se o indivíduo não estiver apto a desenvolver uma identidade própria, a dignidade poderia se tornar um princípio elitista. Já as últimas fundamentam a dignidade na comunicação, em que o direito subjetivo à dignidade seria restrito à comunidade de pessoas nascidas com capacidade de interagir, o que contribui para a solução das colisões de direitos fundamentais, incluindo os reativos à vida pré-natal.
Destarte, vem à pauta o problema do reconhecimento da dignidade também aos embriões em fase pré-nidacional.

Alcance da norma: problema de sua relação com os direitos fundamentais e titularidade
Dignidade humana e direitos fundamentais
No Brasil, domina a teoria de que os direitos fundamentais em espécie seriam decorrentes da dignidade humana, sendo incomum a distinção. Entretanto, constata o autor o caráter de princípio ou preceito fundamental da dignidade humana, considerando-a absoluta, insopesável com qualquer outro bem jurídico, que não decorra da colisão entre dignidades.

Tese da imponderabilidade e caráter absoluto da dignidade humana
Como princípio fundamental, a cláusula de intocabilidade da dignidade humana, implícita no art. 1º, III, da CF, teve inspiração no art. 1, I, 2, GG, lastreados que estão na resposta histórica ao totalitarismo estatal,. Os efeitos de observar (via omissão estatal) e proteger (via ação estatal) são pressupostos para o cumprimento da referida intocabilidade.
A interpretação restritiva previne colisão normativa entre a dignidade humana e outros bens jurídico-constitucionais. Ainda assim, nos casos de dignidade contra dignidade, pode haver colisão entre dever do Estado de observar a dignidade e seu dever de protegê-la.
Assim, foram aventados dois casos concretos ocorridos na Alemanha: o dispositivo que autorizava o abate de aeronaves comerciais sequestradas e a “tortura salvadora”. No primeiro caso, o TCF declarou nulo o dispositivo por incompatibilidade entre a dignidade humana e o direito à vida. No segundo, o TCF condenou o Estado-membro à pena de multa pela ameaça de tortura e o chefe de polícia à pena administrativa mínima para a espécie.
Nesse caso, trata-se de uma colisão entre o dever do Estado de observar a dignidade do suspeito, sob custódia estatal, e o dever de proteger a dignidade da vítima, dilema quase insolúvel para alguns, ou solúvel para outros, mas com o sacrifício da imponderabilidade da dignidade. Isto porque não há hierarquia entre os citados deveres de efeitos contraditórios. O dever de observância pode ser cumprido pela demarcação da linha de proibição do excesso pela aplicação do critério da proporcionalidade, o que não é possível para o dever de proteção, que é indeterminado. Entretanto, a indeterminabilidade deste dever tem de ceder à determinabilidade daquele. Este alicerce não deve ser mexido, sob pena de se pôr em risco o “edifício do Estado democrático Constitucional”. Tal posição foi aplicada no caso relatado até por ter havido falha do Estado bem antes de cogitar a utilização do meio inconstitucional.

Titularidade do nascituro e do embrião humano pós-nidação
Há discordâncias quanto à titularidade da dignidade humana, quando vem à pauta as fases de desenvolvimento do nascituro e do embrião humano. Ainda mais quanto a este, que pode se desenvolver in vivo ou in vitro.
A opinião é de que cabe a dignidade humana ao nascituro e ao embrião após a nidação. Só que se consideram concomitantes o direito à vida e o princípio da dignidade humana, o que, segundo Schlink, não procede, dado o caráter absoluto deste. Desta forma, se poderia justificar, se proporcional, o sacrifício da vida do nascituro em face do direito fundamental da liberdade da mulher, desde que não afetada a sua dignidade. Como o dever de tutela do Estado é indeterminado, a dignidade do nascituro não estaria sendo mitigada.

Titularidade do embrião humano pré-nidação
Há autores que reconhecem, já na concepção, a dignidade humana e outros que, a partir daí, incluem concomitantemente o direito à vida. Entretanto, segundo Dreier, não haveria dignidade humana ao embrião pré-nidação até o término da individuação.
Até a nidação, argumenta-se, o embrião ainda é um divíduo e a mãe não iniciou relação com a nova vida, o que fortalece a tese da não titularidade da dignidade humana.

“Onde há vida humana, lá também há dignidade”
A concomitância entre a proteção da vida e da dignidade humana não se sustenta, porquanto seria tornar a norma do art. 1º, III, num símbolo da estabilidade democrática. Destarte, a dignidade como símbolo redundaria em fundamentalismo intolerante ou em regra retórica sem efeito ou significação normativo-dogmática.

Human life versus human being
A diferenciação entre vida humana e ser humano na fase pré-nidacional exclui a possibilidade de violação da dignidade humana e do direito fundamental à vida (DREIER) ou a relativiza (SCHLINK). Já as intervenções nas liberdades colidentes podem ser justificadas por propósitos lícitos, por intermédio da proporcionalidade.

Dignidade humana e igualdade: embriões produzidos in vitro e embriões in vivo
Para os embriões na fase pré-nidacional, se for reconhecida a sua dignidade, não há como discriminar os dos tipos, in vitro e in vivo. Porém, nos sistemas pátrio e alemão, o embrião in vivo não tem proteção do Estado-legislador, já que os métodos contraceptivos pós-concepcionais são permitidos, o que não deveria ocorrer.

Conteúdos jurídico-objetivos: efeito horizontal, deveres de proteção e função prestacional
A bidimensionalidade das normas de direitos fundamentais deriva no dever de proteção e no efeito horizontal. Este provém da teoria do “efeito da irradiação”, em que o juiz interpreta a legislação à luz dos direitos fundamentais, cuja matriz é a dignidade humana.
A função prestacional foi construída da obrigação de proteger a dignidade.
Notam-se as relevantes diferenças dos textos normativos e a irrelevância da norma do art. 1º, III, da CF, relativa à construção de um Estado social por normas específicas da CF.

Exercício negativo e “proteção contra si próprio”
De acordo com a teoria liberal, a dignidade abrange, em sua área de proteção, a modalidade de exercício negativo, tal como os demais direitos fundamentais. Assim, a proteção contra si próprio seria vedada, podendo o titular da dignidade dispor de autonomia. Mas, há casos limítrofes em que o Estado deve proteger o indivíduo, inobstante poder representar uma intervenção na sua dignidade, diante da ausência de limites constitucionais.

Direito fundamental à vida
O primordial efeito é a proibição do Estado de tirar a vida dos titulares do direito. Há o dever estatal de proteção da vida humana em face dos particulares, no qual deve o Estado considerar as colisões entre direitos fundamentais, como no caso do aborto.

Direito à vida como direito fundamental de resistência contra a intervenção estatal (status negativus)
Objeto da tutela: conceito de vida
O direito à vida equivale ao direito de estar vivo, o que corresponde a uma garantia negativa, englobando, em princípio, só a situação fática ligada à liberdade negativa do indivíduo contra a ação do Estado. Entende-se por vida a mera e simples existência corpórea.

Termo inicial da vida e titularidade pré-natal
O termo final da vida se dá pela morte cerebral; a fixação do termo inicial, porém, é controverso. O embrião humano nas fases da pré-nidação não é titular do direito à vida, segundo crescente opinião, que também considera que a dignidade pode subsistir após morte.
Há, todavia, argumentos que estendem ao zigoto a titularidade do direito à vida, considerando: espécie, continuidade, identidade e potencialidade.

Argumento da espécie
A pertinência à espécie humana seria a base a dar ao embrião o status de ser humano e, assim, a titularidade da dignidade e do direito à vida. Para os críticos, o argumento seria um “cru biologismo”, não podendo considerar simplesmente como pertinente à espécie humana.

Argumento da continuidade
O desenvolvimento contínuo do zigoto até o feto maduro para o nascimento fundamentaria o status moral do embrião como titular de dignidade e de direito à vida. Porém, segundo os críticos, o intérprete não tem como não colocar cortes normativos nas etapas identificadas, pois a omissão de cortes é que seria arbitrária. Para tanto, eles consideram a etapa da nidação a mais apropriada, por ser a mais difícil e decisiva para o embrião.

Argumento da identidade
Baseia-se no fato de que a pessoa pode, numa retrospectiva existencial, voltar à sua origem, ao momento da concepção. Este argumento carece de base, pois a identidade só pode retroagir até a nidação, quando a individuação se completa.

Argumento da potencialidade
Haveria necessidade de se antecipar o completo status jurídico ao embrião, a partir da concepção, pois antes da nidação seria pessoa nascida em potencial. Além das críticas cabíveis à continuidade, considera-se que antecipações são perigosas, porquanto somos cadáveres em potencial, o que não deve ser motivo para já sermos tratados como tais.

Liberdade científica (art. 5, III, 1, GG)
Delimitação conceitual: definição negativa
O referido dispositivo distingue dois direitos fundamentais autônomos, a liberdade de arte e a científica – liberdade de pesquisa e a de ensino. Aqui só interessa investigar a incidência da liberdade científica, incluindo o alcance de sua proteção e de seus efeitos.

Definição de ciência e sua proibitividade
Ciência é “tudo o que, segundo seu conteúdo e forma, pode ser entendido como uma séria e planejada tentativa de investigação da verdade”. Mas a liberdade científica necessita do reconhecimento por terceiro qualificado, critério que deve ser complementado por outros objetivos, não cabendo proibição rigorosa de definição, como as de pesquisa e ensino.

Alcance e bidimensionalidade sui generis
Dimensão jurídico-subjetiva versus dimensão jurídico-objetiva: proibição de instrumentalização
Na dimensão jurídico-objetiva, a liberdade científica protege a “ciência”, englobando a educação superior quando se enquadra naquela o ensino e a pesquisa. Na dimensão jurídico-subjetiva, a liberdade científica tem a natureza de um direito fundamental de resistência, cabendo ao Estado justificar ações ou omissões que a limitem. Pelo princípio distributivo do Estado de direito, a atividade de pesquisa científica é um processo aberto, não podendo ser instrumentalizada pelo Estado para o alcance de variados propósitos, sem justificação.

Liberdade científica “interna” ou membro da Administração como titular de direito fundamental
É o “direcionamento interno” em que os órgãos públicos podem ter pretensões jurídicas derivadas do citado direito de resistência contra órgãos superiores da administração.

Possível acoplamento entre status negativus e função prestacional: uma categoria sui generis de direito de resistência?
A liberdade em tela possui um aspecto prestacional que se correlaciona com o direito de resistência, o que a torna sui generis, sem perder o sentido de status negativus. A área de proteção desse direito também tem cunho normativo, conferindo-lhe também status positvus.

Intervenções estatais na liberdade científica
São muitas as hipóteses de intervenção estatal nesta liberdade, como proibir as pesquisas com embriões humanos produzidos in vitro ou com suas células-tronco. Porém, constitui um direito fundamental concedido sem reserva legal, e somente direitos e deveres fundamentais constitucionais serão limites, cabendo o ônus estatal de justificação.
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CAPÍTULO 2
JULGAMENTO DA ADI 3.510 PELO STF
SÍNTESE DO CASO E DO PROCEDIMENTO
DOS FATOS E MOTIVAÇÃO DO AUTOR

O julgamento da ADI teve como objeto o art. 5º da Lei de Biossegurança. Proposta pelo PGR, trouxe à tona o debate bioético acerca da pesquisa genética em embriões in vitro.

DA ADMISSIBILIDADE DA ADI AJUIZADA

O juízo de admissibilidade, de acordo com o art. 102, I, a, da CF, foi concluído com o recebimento da ação.

DA FASE POSTULATÓRIA DO PROCEDIMENTO

Participaram PGR, como requerente, e o Presidente da República, por meio da AGU, e o Congresso Nacional, como requeridos. O STF admitiu a participação de amicus curiae, ocorrendo grande litigiosidade em torno da validade, eficácia e vigência da norma.

DOS DEBATES E INTERVENÇÕES DE AMICI CURIAE
Preliminar: amicus curiae e fundamento de sua admissibilidade
A admissibilidade depende discricionariamente do STF a cuja “amizade” o amici curiae se presta, conforme se interpreta do dispositivo do art. 7º, § 2º, da Lei 9.868 de 1999.

Plaidoyer das partes
O autor tentou fundamentar seu pedido no direito fundamental à vida e no princípio da dignidade da humana. Já os requeridos fundaram seu pedido de improcedência da ação nos direitos à saúde e da liberdade científica. Todavia, houve superficialidade na base fática e precariedade jurídico-dogmática dos parâmetros aplicáveis, que são imprescindíveis para que a tarefa jurisdicional na ADI seja cumprida, observando-se o critério da proporcionalidade.

Amici curiae
Seus pareceres retrataram posições políticas, e pouco técnicas, que mais serviriam ao processo legislativo que à função jurisdicional, havendo deslocamento de fórum de discussão.

Parecer da Conectas Direitos Humanos e Centro de Direitos Humanos – CDH
O parecer defende a improcedência da ação, sustentando que o embrião não seria juridicamente igualado a uma pessoa, ainda mais os embriões inviáveis. Além disso, a CF não trataria do direito à vida antes do nascimento, prescrevendo a sua inviolabilidade aos “brasileiros natos”. Tais argumentos ignoram o problema jurídico-constitucional, pois ser pessoa no sentido civilista não se correlaciona com a proteção do direito à vida. Também carece de fundamento enxergar a nacionalidade e situação de residência do caput do art. 5º uma exclusão da vida humana embrionária.

Parecer do Movimento em Prol da Vida – MOVITAE
Do “ponto de vista técnico e doutrinário”, a fertilização in vitro, no contexto da reprodução assistida, provém de embriões congelados para uso, se necessário, neste contexto no futuro. Como estas células são totipotentes, podem ser usadas também para criação de tecidos no tratamento de doenças graves, em encontro entre a ética e direito. Do “ponto de vista ético”, estariam em pauta as diversas teorias acerca do início da vida e haveria um “desacordo moral razoável” num ambiente político-ideológico pluralista.
Do “ponto de vista jurídico”, fundamenta que nem o direito à vida, nem a dignidade humana seriam violados pelo dispositivo da citada Lei. Quanto ao primeiro, traz à pauta o “sentimento religioso” para, a contrário senso, fazer equiparação entre o embrião e a pessoa humana desde a fecundação. Utiliza a concepção civilista da morte cerebral para justificar o início da vida desde a nidação. Quanto ao segundo, não seria violado, pois o embrião continuaria um fim em si mesmo, e sua instrumentalização estaria excluída, só podendo ser produzido no contexto da reprodução assistida.
Contudo, do ponto de vista lógico, não basta a menção ao “desacordo moral razoável”, vez que, o que vale para a filosofia politica, não vale para resolver os problemas jurídicos. Jurídico-dogmaticamente, a valoração do problema ético, subjacente à colisão normativa, provoca a inversão entre o direito de liberdade científica e o bem que justifica o seu sacrifício – vida e dignidade dos embriões –, além do precário estabelecimento do termo inicial da vida a partir da lei civil. Quanto à não violação da dignidade humana pela tese da vedação de instrumentalização do embrião, não convence até pelo fato de que nunca se esclareceu se vida e dignidade estão acopladas ou não estruturalmente.

Parecer da Confederação Nacional dos Bispos do Brasil – CNBB
Foi defendida a inconstitucionalidade do dispositivo com argumentos como: a vida inicia na concepção e o zigoto humano deve ser protegido intransigentemente. Porém, não se colocou que a Lei veio para cercear a liberdade científica. O fundamento deveria ser: o dever estatal de proteção da vida humana embrionária, quando da verificação dos limites à liberdade científica; o não cumprimento deste dever em face de uma limitação da liberdade científica.

DO ACÓRDÃO: CONCLUSÕES E ALCANCE DA COISA JULGADA
DISPOSITIVO, EMENTA E CONCLUSÕES

O dispositivo da decisão, de efeito erga omnes, traz o acórdão que julgou a ADI 3.510/DF improcedente, por maioria de votos, incluído o do relator, os quais tiveram fundamentações variadas. Para o relator, não houve violação do direito à vida nem do princípio da dignidade humana. Ponderou o direito à vida potencial de células-tronco com o de pessoas nascidas enfermas. Ao final, fez considerações acerca da liberdade cientifica como reforço à constitucionalidade do dispositivo, mas não como parâmetro do julgamento.

ALCANCE DA COISA JULGADA

O objeto da ação foi a Lei, in abstracto, cujo julgamento foi de improcedência que, portanto, continua válida, vigente e em vigor. Contudo, prática e jurídico-dogmaticamente, ela implica restrição à plena liberdade científica, inobstante se reconhecer que a inconstitucionalidade levaria à lacuna de regulamentação do setor.
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CAPÍTULO 3
PARECER JURÍDICO DE AMICUS CURIAE
MATÉRIA E QUESTÃO CONSTITUCIONAL: CORRETA COMPREENSÃO DA SITUAÇÃO JURÍDICO-CONSTITUCIONAL DO CASO E OBJETIVO DO PARECER JURÍDICO-CIENTÍFICO

Como se verificou no alcance da coisa julgada, a inconstitucionalidade do dispositivo em tela acarretaria uma lacuna legislativa do setor, com efeitos ex tunc. O objeto do exame de constitucionalidade é a restrição imposta à liberdade científica aplicada às pesquisas com células-tronco produzidas in vitro, que não tenham finalidade inicial reprodutiva.
O objetivo do parecer é a completa análise das violações constitucionais do objeto.

SOLUÇÃO: PARECER JURÍDICO-CIENTÍFICO

Para o referido exame, em princípio, deveriam vir à pauta os parâmetros constitucionais do art. 5º, IV, VI a VIII, IX e XIII, este c.c. art. 170, parágrafo único. Bem como o direito de autodeterminação dos genitores das crianças concebidas in vitro, derivado do caput do art 5º. Porém, há de se verificar se tais parâmetros concorrem idealmente ou não.

PRELIMINARMENTE: PARÂMETRO E EXCLUSÃO DE CONCORRÊNCIAS
Da presença de concorrências e suas espécies
A concorrência meramente aparente pode e deve ser afastada, aplicando-se o parâmetro mais específico, conforme proximidade material maior ao caso concreto.

Concorrência entre as liberdades de manifestação do pensamento, científica e profissional
Solve-se em favor da liberdade científica, porque ela engloba todos os aspectos dos pesquisadores profissionais e os juízos de valor presentes nas outras duas liberdades em tela.

Concorrência da liberdade de consciência e crença
Constata-se que a tese a apontar diferença das áreas de regulamentação entre a liberdade científica e a de consciência e crença é incontestável. Assim, as duas concorrem.

Concorrência do direito fundamental à liberdade geral de ação
Trata-se de potencial ofensa a direitos dos genitores. Portanto, de concorrência ideal, porquanto os titulares de direitos fundamentais são diferentes.

Conclusão
Verificou-se, então, que os parâmetros de controle a serem empregados no presente exame do art. 5º da Lei de Biossegurança serão: a liberdade científica e a de consciência e crença dos pesquisadores, além da liberdade geral de ação dos genitores de embriões humanos in vitro. Os propósitos supostamente lícitos, quais sejam: proteção da vida embrionária, dignidade humana e outros interesses difusos acarretam restrições a tais direitos de liberdade.

DA VIOLAÇÃO DA LIBERDADE CIENTÍFICA PELO ART. 5º DA LEI 11.105/2005
Da área de proteção da liberdade científica junto a pesquisas biotecnológicas
Investiga-se se foram proibidas, ou permitidas com ressalva, as atividades de pesquisa com células-tronco embrionárias humanas e/ou com embriões que sobraram, a clonagem terapêutica e/ou produção de embriões para “fins de pesquisa”, a clonagem reprodutiva, a engenharia genética e o diagnóstico implantacional, com restrições à liberdade.

Alcance material (área de proteção objetiva)
Dada a insegurança dos prognósticos das consequências de pesquisas científicas, diante dos deveres de tutela da dignidade, do direito à vida e outros frágeis pelo Estado, o alcance material citado resolve-se, no exame, pela aplicação dos limites à liberdade científica.

Violação do principio da dignidade humana (art. 1º, III, da CF) como critério de exclusão da proteção de linhas de pesquisa biotecnológica
Considerando presentes as condições de seriedade relativas ao objeto da pesquisa, partindo-se do estágio atual, do uso de uma metodologia para a verificação da verdade científica, até as pesquisas biotecnológicas aplicadas à clonagem humana reprodutiva e ao Designer-Baby, fariam parte da área de proteção da liberdade científica. E esta proteção não pode ser superficial.
No entanto, os procedimentos biotecnológicos acima têm, pela doutrina internacional, o efeito de instrumentalizar a raça humana, representando violação à dignidade humana. Inobstante a raça humana não significar pessoa humana, adotando-se a teoria comunicativa da dignidade humana, a exclusão destes procedimentos se fundamenta na proteção do sentimento de unicidade de cada ser humano em prol da interação social geral.
A dignidade humana não admite mitigação, vez que o Estado deve observá-la e protegê-la, e a conduta que a viola pertence à área de proteção da liberdade científica.

Abrangência de pesquisas com células-tronco embrionárias
As pesquisas neste campo quase sempre buscam à cura ou à amenização do sofrimento de doenças como o Mal de Parkinson ou o Alzheimer. As objeções evocadas pelos adeptos da bioética de inspiração religiosa não têm o condão de violar a dignidade, o que torna tais pesquisas parte da área de proteção da liberdade científica. Eventuais problemas bioéticos estão sujeitos, porém, ao terceiro estágio do exame da justificação da intervenção.

Abrangência de pesquisas com vistas à clonagem terapêutica
O desenvolvimento de tecidos e órgãos humanos a partir da clonagem de células-tronco embrionárias ou a partir de células somáticas de adultos com o fim terapêutico possui discussão semelhante à apresentada acima, fazendo parte da área de proteção em tela.

Abrangência do diagnóstico pré-implantacional
A agressão arbitrária – com base no reconhecimento de o diagnóstico pré-implantacional tomar os embriões in vitro para reprodução assistida como objeto – pelo titular da liberdade em tela não faria parte da área de proteção do art. 5º, IX. Por outro lado, o uso do embrião in vitro, cuja implantação é essencial para a vida se desenvolver, corresponde ao aborto. Porém, vida e dignidade têm variados significados conforme as diversas fases da vida, podendo haver uma intervenção no direito à vida sem violação da dignidade. Assim, a não proibição das condutas dos médicos e dentistas, presentes a condição de aleatoriedade, impessoalidade e igualdade, não denotaria fazer acepção de pessoas por parte do Estado. Destarte, in dubbio pro libertate, admite-se o citado diagnóstico à área de proteção da liberdade científica, mas sujeito ao terceiro estágio do exame da justificação da intervenção.

Titularidade (área de proteção subjetiva)
Todas as pessoas físicas, brasileiras e estrangeiras residentes, e jurídicas estabelecidas no país a se dedicarem à atividade científica. Pode ser violada já in abstracto.

Intervenção estatal-legislativa
O Estado intervém na liberdade científica, em sua função legislativa, ao causar obstáculo ao seu livre exercício pelos pesquisadores ou ao cominar condutas pertencentes à área de proteção desta liberdade com sanções administrativas e/ou penais. Tudo isto ocorreu no art. 5º e seus parágrafos c.c art. 24 da lei 11.105/2005, com o agravante de que o instrumento jurídico-penal só dever ser usado última ratio; tendo-se que seguir no exame.

Justificação constitucional da intervenção estatal-legislativa
Para uma intervenção estatal na área de proteção da liberdade científica ser justificada, são necessários os pressupostos: um ou mais limites constitucionais a esta liberdade autorizando a intervenção; que a aplicação de tais limites observe o seu reflexo. Traz-se à pauta a proporcionalidade para se saber até onde irá o limite do limite.

Dos limites específicos
Somente limites constitucionais podem ser trazidos à pauta, pois não há reserva legal à liberdade científica. Assim, além do direito à vida e do princípio da dignidade humana, há os limites prescritos no art. 225 relativos ao meio ambiente ecologicamente equilibrado.

Da proporcionalidade da aplicação do limite configurado no art. 5º (c.c art. 24) da Lei 11.105/2005
Propósito(s) perseguido(s) e sua ilicitude constitucional
Os propósitos detectados nas intervenções legislativas na liberdade científica pelo dispositivo citado devem ter suas licitudes constitucionais analisadas como seguem: a) impedir que a comunidade científica possa decidir sobre o início e o fim da vida humana, prevenindo estruturas sociais totalitárias. Trata-se de propósito lícito, mas o “ethos” do cientista insere-se na área de proteção do princípio democrático; b) combater o patriarcalismo pela disposição do corpo da mulher ou a violação da sua dignidade seria um propósito lícito (art. 5º, I c.c art. 3º, IV); c) proteger o livre desenvolvimento da vida, a igualdade e a dignidade humana dos embriões in vitro, a impedir inclusive testes de qualidade, seria lícito (arts. 1º, III, e 5º, caput); d) proteger o valor social da família, podendo impedir os laços afetivos espontâneos entre pais e filhos, seria um propósito lícito (art. 226, principalmente); e) preservar a diversidade técnica, mediante a promoção do bem de todos, pressupondo a existência de diferenças, seria lícito (art. 3º, IV); e f) como consequência, o propósito de combater o preconceito de pessoas vivas com deficiência também seria lícito.

Meio utilizado pelo legislador
O meio de intervenção escolhido é lícito constitucionalmente, porquanto não existe objeção alguma quanto ao art. 5º c.c art. 24 da Lei 11.105/2005.

Adequação do meio
O meio de intervenção é adequado quando de sua aplicação for esperada uma situação correspondente à idealizada, nas perspectivas normativas geral e específica.
Numa perspectiva geral, os dispositivos acima são meios de intervenção adequados, pois, no que tange ao propósito da proteção da vida humana embrionária, foi observada o primeiro subcritério da proporcionalidade e justificação da intervenção na liberdade científica.
Especificamente, pela regra do caput do art 5º da citada Lei, estão proibidas a utilização de embriões in vivo para pesquisa e terapia bem como as pesquisas realizadas em embriões produzidos in vitro, não usados na reprodução assistida. Este meio é intenso, mas não pode ser excluído como inadequado nesta fase do exame.
Pela regra do inciso I do art. 5º, há adequação de sua prescrição interpretada sistematicamente com o caput, em relação aos propósitos lícitos acima identificados. O inciso II do art. 5º pode ser adequado pelo menos quanto ao propósito de tutela da vida do embrião, vez que a situação fática promovida é o não uso dos embriões com chance de tornar-se pessoa. No que tange ao § 1º, o crivo dos genitores pode denotar a promoção da vida e da dignidade do embrião inviável/congelado por mais de três anos, não se exclui como inadequado nesta fase. No § 2º, mutatis mutandis vale os mesmos argumentos do § 1º. A regra do § 3º, vedando a mercantilização de material biológico, não se discorda quanto à adequação.

Necessidade da utilização do meio de intervenção
Seria necessário o meio se, além de adequado quanto a, pelo menos, um propósito lícito, não tivesse alternativa adequada e de menor intensidade para a liberdade científica.
Assim, analisa-se respectivamente cada propósito lícito no subtópico supra: a) aqui, o meio escolhido é desnecessário, pois a tipificação penal, muito cara à liberdade, só se aplica em último caso. Há igual adequação entre várias alternativas, como a CNBS e CTNBio; b) nesse caso, o meio deve ser descartado como desnecessário, pois, sendo uma reivindicação de um grupo feminista, bastaria, como alternativa adequada e menos onerosa, ouvir seus representantes nas comissões de ética científica; c) Aqui, também a cominação de pena privativa de liberdade é um meio desnecessário, vez que as várias salvaguardas no campo dos OGMs representam meios adequados e menos onerosos; os casos d), e) e f) podem ser contemplados nos códigos de conduta e nas comissões de autocontrole, acompanhados pelo Estado, sendo menos onerosos e igualmente adequados.

Conclusão
Destarte, não restou justificada constitucionalmente a intervenção legislativa prevista no art. 5º c.c art. 24 da Lei 11.105/2005, violando a liberdade científica do art. 5º, IX, da CF.

DA VIOLAÇÃO DO DIREITO FUNDAMENTAL À LIBERDADE DE CONSCIÊNCIA E CRENÇA PELO ART. 5º DA LEI 11.105/2005
Área de proteção material objetiva
A referida liberdade abrange a capacidade de livre pensar e agir, conforme os imperativos ético-morais inarredáveis do seu titular.

Área de proteção subjetiva (titularidade)
O dispositivo não vislumbra a violação in abstracto ou concretamente – no âmbito de uma decisão judicial – a liberdade de consciência e crença dos cientistas.

Conclusão
Como não há comportamentos pertinentes à referida liberdade de seus titulares no caso, descarta-se a violação deste direito fundamental nesse primeiro estágio do exame.

DA VIOLAÇÃO DO DIREITO FUNDAMENTAL À LIBERDADE GERAL DE AÇÃO (ART. 5º, CAPUT, DA CF) PELO ART. 5º DA LEI 11.105/2005
Há de se trazer à pauta o direito fundamental concorrente dos genitores ou “direitos reprodutivos”, que é um aspecto do direito da personalidade.

Abertura ou correspondência da área de proteção do direito fundamental subsidiário à liberdade em face de condutas relativas ao planejamento familiar e aos “direitos reprodutivos”
Autodeterminar-se é poder conhecer dos riscos à saúde da mãe e da predisposição dos embriões in vitro a desenvolverem doenças transmitidas hereditariamente e decidir sobre a implantação ou não destes embriões. Isto faz parte da área de proteção do referido direito.

Intervenção estatal consubstanciada no art. 5º da Lei 11.105/2005
A intervenção dirigida aos cientistas implica em intervir na liberdade dos genitores.

Justificação constitucional da intervenção estatal legislativa
Apesar de os limites a esse direito subsidiário serem mais amplos, não se vislumbra limite além dos impostos à liberdade científica, já verificados com as mesmas conclusões. Assim, esta intervenção estatal não pode ser justificada, violando também o citado direito.

CONCLUSÃO E CONSEQUÊNCIAS JURÍDICO-DOGMÁTICAS E PROCESSUAIS
A ADI 3.510/DF deveria ter sido julgada procedente, pois o art. 5º c.c art. 24 da Lei 11.105/2005 viola os direitos à liberdade científica dos pesquisadores das células-tronco embrionárias e à liberdade geral dos genitores interessados quanto aos direitos reprodutivos.
Esse julgamento teria como efeito a impossibilidade de sanção administrativa e judicial na realização de tais pesquisas por uma mera questão de legalidade.

CONSEQUÊNCIAS DO CASO PARA A CIÊNCIA E PRÁTICA DO DIREITO CONSTITUCIONAL

A consequência política da declaração de nulidade deveria ser a convocação de um debate escrupuloso e informado, por meio de audiências públicas a sanear a omissão legislativa do direito à vida e à dignidade humana em face de terceiros, o que não foi feito nos debates do STF. Jurídico-constitucionalmente, tem de ser afirmado o dever de tutela.
Destarte, urge um projeto de lei de proteção adequado que impeça os excessos frente às liberdades atingidas. Além disso, o projeto deveria derrogar o art. 5º da Lei em comento.
Ao jurista cabe, na condição de amicus curiae, auxiliar o órgão judicante, na verificação do cumprimento pelo legislador do seu ônus de observar a proporção da lei interventora em face dos parâmetros atingidos.

IMPRESSÕES PESSOAIS

Considera-se brilhante o trabalho realizado, tendo em vista a sua importância na conjuntura atual da biotecnologia e sua tempestividade em relação ao julgamento da ADI 3.510/DF pelo STF. As argumentações teóricas e conclusão são absolutamente pertinentes.
A crítica que com toda vênia se faz refere-se à veemência e à contundência – principalmente nas páginas 5 e 6 da obra – com que o autor discorda da maneira como o tema foi tratado no Brasil até o momento. A nosso ver, é salutar a orientação mediante métodos jurídicos de países com democracias mais experimentadas. Todavia, devemos ter em mente que o nosso país ainda não chegou àquele patamar, até por ser geográfica, histórica e socialmente muito diferente. Temos de aprender muito ainda, e esse processo político-jurídico-constitucional não se dá em “grandes saltos”.

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