sexta-feira, 15 de junho de 2012

RESENHA DO LIVRO: "ARMAS, GERMES E AÇO: OS DESTINOS DAS SOCIEDADES HUMANAS"

Resenha do livro: DIAMOND, Jared Mason. Armas, Germes e Aço: os destinos das sociedades humanas. Tradução de Sílvia de Souza Costa. 11. ed. Rio de Janeiro: Record, 2009.

Capa do livro
A proposta é responder o porquê das diferenças econômicas, sociais e culturais entre as sociedades ditas industrializadas e as demais, enfocando a história da humanidade desde o seu surgimento, há cerca de sete milhões de anos. Explica também como a Europa acabou conquistando e colonizando todos os continentes e não o contrário. Para tanto, avalia não ter havido razões raciais ou somente intelectuais e sim variáveis ambientais positivamente retroalimentadas, as quais investiga, lançando mão, implicitamente, da arqueologia, geografia, economia, oceanografia, história, biologia, antropologia, sociologia, astrofísica e até da linguística, tudo em uma linguagem compreensível a qualquer leitor, o que torna altamente recomendável a leitura da obra, cujo título original é "Guns, Germs and Steel: the fates of human societies".
A ideia do livro nasceu da insatisfação do autor, em viagem de pesquisa à Papua-Nova Guiné, Oceania, ao tentar responder a um nativo que o questionou por que os produtos do seu país quando lá chegam dizimam rapidamente a produção e uso dos similares locais.
Informa que o homem iniciou sua saga a partir da África Equatorial, chegou à Ásia por volta de um milhão de anos a.C., à Europa em 500 mil, à Austrália por volta de 40 mil, à Sibéria, 20 mil, alcançou a América em torno de 12 mil anos a.C. pelo Estreito de Bering, no final da última Era Glacial, e a Groenlândia em 2 mil a.C. Partindo do sudeste da China, povoou as ilhas do Pacífico, alcançou o Havaí no século VI d.C., a ilha de Madagascar, próxima à África, oceano Índico, por mais incrível que possa parecer, no século VI, e a Nova Zelândia no século XI d.C.
Sustenta que no período Neolítico, cerca de 8.500 a.C., iniciou-se a domesticação de plantas e animais no Oriente Médio, dada a fertilidade do Crescente Fértil e a abundância ali de gramíneas, típicas de pradarias, à época pós Era Glacial, onde havia possibilidade de cultivo da mesma cultura o ano inteiro pela movimentação das tribos nas diferentes altitudes do relevo. Excedente de alimentos, aumento populacional, sedentarismo, mais gente para pensar, inovações tecnológicas, exploração dos metais, fabricação de armas, excedente de produtos agrícolas e de animais, aumento das trocas (escambo), surgimento do comércio, invenção da roda e da escrita, formação de aldeias e cidades, organização política, tudo isso, a história convencional já nos traz. Mas o que ela não nos esclarece é que os processos iniciados e acelerados no Oriente Médio, dadas as condições propícias, se alastraram para o leste e para o oeste da Eurásia (Ásia e Europa, respectivamente) e para o norte da África, antes de as sociedades destes locais reunirem independentemente condições de iniciá-las. Sem grandes diferenças de latitudes e, portanto, com condições climáticas semelhantes ao longo do seu maior eixo, a Eurásia pôde distribuir e absorver rapidamente este pacote tecnológico, ao qual logo se adaptava, da Índia à Europa Ocidental. Vale salientar que a China também desenvolveu a domesticação de plantas e animais em torno de 7.500 anos a.C., bem como a escrita, 1.300 a.C., de modo autônomo, haja vista a dificuldade inicial representada pela cadeia do Himalaia; processos que depois foram intercambiados por rotas interiores, como a “rota da seda”. 
Afirma o autor que, além das vantagens já descritas, o continente eurasiano, por sua grande extensão interior, possuía e pôde preservar, durante as Eras Glaciais e perante a ação dos caçadores-coletores humanos, maior quantidade de plantas e animais domesticáveis de grande porte que os demais continentes. Cavalo, vaca, ovelha, cabra, búfalo-da-índia, porco, burro, camelo e dromedário foram as espécies animais, herbívoras ou onívoras antigas, domesticadas na Eurásia ou na África mediterrânea, enquanto somente a lhama e a alpaca foram domesticadas nos Andes. Neste aspecto, a África subsaariana nada contribuiu, uma vez que, ali, todos os grandes animais herbívoros ou onívoros não se mostraram domesticáveis tais como: elefante, zebra, girafa, hipopótamo, etc; alguns deles amansáveis, o que é diferente. Além disso, importante constatação refere-se aos eixos de maior extensão dos continentes, sendo leste-oeste para a Eurásia, com pouca variação climática, e norte-sul para as Américas e para a África, com enormes variações de latitude e, portanto, de clima. Outrossim, os céus semelhantes eurasianos, dados a direção de seu maior eixo e o sentido de rotação da Terra, contribuíram para um melhor desenvolvimento astrofísico desses povos. Ora, tais vantagens foram importantes para difundir em maior grau o que era desenvolvido pelos grupos humanos locais. Certo, então, é que todo o legado cumulativamente adquirido desde os grupos pré-históricos da Eurásia, as civilizações orientais, bem como a egípcia, a grega, a romana, a bizantina e a árabe, até as civilizações medievais e modernas, desaguou nos séculos XV e XVI renascentistas, ponto de partida para novas mudanças.
Também é certo que houve centros independentes de origem e produção de alimentos no Sahel, na região da Etiópia e no oeste africanos, no leste dos EUA, na Mesoamérica (México e norte da América Central), na Amazônia e nos Andes; porém, tais centros pouco se alastraram, haja vista as dificuldades de adaptação das culturas ao longo do eixo norte-sul destas regiões que, no caso da África, ainda contava com a intransponível barreira do deserto do Saara.
Assevera que as doenças adquiridas no contato com as várias espécies vegetais e animais domesticadas fizeram o homem eurasiano alcançar maior imunidade ao longo dos séculos, o que, ao lado das armas de metal, dos cavalos, das carroças e da estratégia - esta propiciada pela escrita -, tornou-se mais um diferencial para a formação de um verdadeiro arsenal de guerra, determinante na conquista dos demais continentes. Relata o autor a batalha de Cajamarca - cidade do Império Inca, a mais importante civilização fora da Eurásia - em 1532, entre 168 espanhóis, liderados por Francisco Pizarro, e cerca de 80.000 ameríndios, comandados pelo imperador Ataualpa. Parte deste contingente foi morta pela carga dos germes eurasiana transmitida pelo simples contato para cumprimento e informações entre o líder espanhol e os emissários do imperador inca, que se deu dias antes no litoral peruano. Após certo planejamento, em poucos minutos, Pizarro, com 62 homens a cavalo e 106 na infantaria, além de espadas e outras armas e armaduras de aço, dizimou o restante da tropa inca, que conduzia armas de pedra e bronze, tacapes de madeira, machados e armaduras de pano acolchoado, capturando seu imperador.
Mas por que a hegemonia europeia em relação à Ásia? O autor explica que no ano de 1.400 a China era mais desenvolvida tecnologicamente que a Europa, pois, além de todo o legado eurasiano mencionado, já possuía frotas náuticas com navios de até 440 pés, a ponto de explorar a costa leste do continente africano. Após este período, o enfraquecimento da dinastia Ming, fez o novo imperador, desativar todos os estaleiros chineses, um retrocesso para este país continental. Processo semelhante se deu mais recentemente, quando Mao Tsé-Tung impôs a destruição de livros e relíquias históricas, assim como de locais religiosos; mais um recuo para a cultura chinesa. Cada decisão atingia todo o país, unificado desde o século II a.C. Já a Europa, como se sabe, nunca foi unificada, o que propiciou, por meio de constantes competições entre os vários povos e etnias, além da presença do abrigado mar mediterrâneo e de sua costa insular, uma vagarosa e sempre crescente apropriação de legados, apesar do feudalismo. Tal processo acelerou-se com o Renascimento, Mercantilismo, desenvolvimento naval, Grandes Navegações, colonialismo, Reforma Protestante, Iluminismo, Revoluções Gloriosa e Francesa, Revolução Industrial, consolidando o enriquecimento e a hegemonia perante os demais continentes até o desabrochar americano, no século XX, que também não deixou de ser "europeu".
Entretanto, já se enxergam sinais de mudanças que denotam a volta da China como potência hegemônica, o que pode ocorrer ainda na primeira metade deste século, segundo previsão de renomados especialistas. Permaneceria, de qualquer sorte, a hegemonia cultural eurasiana.

quinta-feira, 14 de junho de 2012

FICHAMENTO DE TEXTO: "O ESTADO BRASILEIRO E A CONSTITUIÇÃO DE 1988"

Série acadêmica

Fichamento do texto "O Estado Brasileiro e a Constituição de 1988", p. 361-391, inBONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 14ª ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2004. Cap. 11.

AS TRÊS ÉPOCAS CONSTITUCIONAIS DO BRASIL
Distinguem-se três fases histórias no constitucionalismo brasileiro: a primeira, vinculado aos modelos francês e inglês do século XIX, constante na Constituição de 1824; a segunda, ligada ao modelo norte-americano, presente na Constituição de 1891; e a terceira, em curso, influenciada pelo constitucionalismo alemão, a partir da Constituição de 1934.
O constitucionalismo do Império: a presença da inspiração francesa e inglesa
Inserida no período que se estende de 1822 a 1889, esta fase tem como elementos constitucionais mais importantes: o Projeto Antônio Carlos, parcialmente votado nas sessões da Constituinte; a Constituição do Império, outorgada em 1824; o Ato Adicional de 1834, reforma constitucional durante a regência; e a Lei da Interpretação, de 1840, referente a alguns artigos da reforma de 1834.
O Projeto da Constituinte não se distanciou da influência francesa, que em matéria de organização de poderes obedecia ao esquema de Montesquieu: Poder Executivo, Poder Legislativo e Poder Judiciário. Também a garantia de direitos individuais e políticos teve inspiração da Constituição francesa, de 1791.
Todavia, a Constituição do Império, ao ser aplicada, viu prosperar uma forma de governo parlamentar, um tanto híbrido, assemelhado ao modelo inglês. A Constituição Real, desprezando a formal, ali se inspirara.
Essa Constituição foi a única do mundo, segundo o autor, a adotar a repartição tetradimensional de poderes, usando também o modelo de Benjamin Constant, embora de modo mais formal que material. Assim, aos três poderes citados, acrescentou o Poder Moderador, do qual o Imperador era titular, além do Executivo. Dessa exagerada centralização resultou a desintegração política do regime monárquico, que foi substituído pelo sistema republicano, em 1889.
O constitucionalismo da Primeira República: a adoção do modelo americano
A Primeira República, correspondente ao período de 1889 a 1930, esteve sob a égide da Constituição de 1891, em que os princípios chaves eram: o sistema republicano, a forma presidencial de governo, a forma federativa de Estado e o funcionamento de uma suprema corte, competente para julgar a inconstitucionalidade dos atos do Poder.
Nesse período, o Brasil republicano adotou um constitucionalismo de origem norte-americana com a fachada teórica quase perfeita do Estado Liberal de Direito.
O constitucionalismo do Estado Social: a influência das Constituições de Weimar e Bonn
Inaugura-se a terceira grande época do constitucionalismo brasileiro, marcada por crises, golpes de Estado, insurreição, impedimentos, renúncia e suicídio de Presidentes.
Tais fatos incluem: a Segunda República (1934-37), com a Constituição promulgada de 1934; o “curto período” da ditadura do Estado Novo, com a Constituição outorgada de 1937; a Constituição promulgada de 1946, oriunda de uma constituinte proveniente de um golpe em 1945, inaugurando a Terceira República; Atos Institucionais da “revolução militar” de 1964; a Carta semi-autoritária de 1967; a Emenda nº 1, a “Constituição“ da Junta Militar de 1969; e a Constituição de 1988, com a redemocratização
Nas Constituições de 1934, 1946 e 1988, domina o ânimo do constituinte uma vocação política de disciplinar a categoria de direitos fundamentais que assinalam o primado da Sociedade sobre o Estado e o indivíduo ou que fazem do homem o destinatário da norma constitucional.
Segundo Paulo Sarasate: “Foi indisfarçável a ressonância da Constituição de Weimar nos textos brasileiros de 1934 e 1946, os quais tiveram na mesma um reluzente espelho”.
Foram introduzidas nessas Constituições matérias novas, notadamente de cunho social: interesse social e coletivo da propriedade, ordem econômica e social, instituição da Justiça do Trabalho, salário mínimo, férias anuais remuneradas, indenização ao trabalhador dispensado sem justa causa, amparo à maternidade e à infância, socorro às famílias de prole numerosa, educação e cultura. Além disto, a Constituição de 1946 preceituava a participação do trabalhador nos lucros das empresas.
A Constituição de 1988, avizinhando-se da Lei Fundamental de Bonn, teve proeminência social, abriu seus capítulos com os direitos e garantias fundamentais e inovou, ao instituir um remédio novo no processo constitucional: o mandado de injunção, com o intuito de evitar que os direitos sociais convertam-se em preceitos apenas programáticos.
É A CONSTITUIÇÃO DE 1988 UMA CONSTITUIÇÃO DO ESTADO SOCIAL?
A Constituição de 1988 é, em muitas de suas dimensões essenciais, uma Constituição do Estado social, apesar de resquícios liberais, adaptando-se a programas de alguns governos notadamente liberalistas.
A crise do Direito Constitucional se deve aos novos modelos de Estado que surgiram em substituição ao clássico Estado de Direito do século XIX, o Estado social e os Estado socialista.
O verdadeiro problema Direito Constitucional atualmente é como inaugurar novos institutos processuais para garantir os direitos sociais básicos, fazendo-os efetivos.
Nesse aspecto, houve grande avanço na Carta de 1988, com o mandado de injunção, o mandado de segurança coletivo e a inconstitucionalidade por omissão, o que caracteriza o Estado social brasileiro como de terceira geração em face dessas garantias.
CARÁTER ABSOLUTO OU RELATIVO DOS DIREITOS SOCIAIS: O PROBLEMA DE SUA APLICABILIDADE
Não é possível entender o constitucionalismo do Estado social contido na Carta de 1988 se não enxergarmos a teoria dos direitos sociais fundamentais, o princípio da igualdade, os institutos processuais de garantia e o papel que assume na guarda da Constituição o STF.
São os direitos sociais básicos de mesma natureza e de mesmo grau dos demais direitos fundamentais ou compõem uma categoria distinta para efeitos de reconhecimento ou execução pelo Estado?
No primeiro caso, há duas posições: uma afirma a superioridade dos direitos da liberdade sobre os sociais; outra sustenta a prevalência dos direitos sociais sobre os da liberdade. No segundo caso, o primado é da igualdade, em que os direitos sociais possuem uma dignidade constitucional de princípio, que no Estado social compõe fonte axiológica da Constituição, com reflexos imperativos na sua interpretação em matéria de direitos sociais.
A TEORIA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS NO ESTADO SOCIAL
Reconhece-se a importância que a teorização assume para assentar os rumos do Estado e guiar a jurisprudência, permitindo a proteção da liberdade em termos de plena eficácia social.
O autor elege a teoria do Estado social, expondo-a numa versão própria que se propõe a penetrar na essência dos direitos sociais básicos e evidenciar a modalidade de Estado e de ordem jurídica que a Constituição de 1988 consagrou.
A IMPORTÂNCIA DO PRICÍPIO DA IGUALDADE
O base do Estado Social e de todos os direitos de sua ordem jurídica é o princípio da igualdade. Com a liberdade compõe um eixo ao redor do qual gira toda a concepção do Estado contemporâneo.
O princípio da igualdade conseguiu firmar inegável superioridade qualitativa, desde que traduziu a essência do Estado social. A igualdade deixou de ser somente a jurídica do liberalismo para se converter na igualdade material da nova forma de Estado. Na atual fase da doutrina, já não se trata de uma igualdade “perante” a lei, mas de uma igualdade “feita” pela lei, uma igualdade “através” da lei.
Ideologia e valores passam a integrar o conceito de igualdade na posição de preeminência contemporânea, o que provoca uma crise para a senil igualdade jurídica do Estado de Direito, que nascera ideológica pelo jusnaturalismo.
A INTERPRETAÇÃO CONSTITUCIONAL DO PRINCÍPIO DA IGUALDADE
Segundo Konrad Hesse, o princípio constitucional da igualdade “é elemento essencial de uma Constituição aberta”, constituindo-se numa porta de entrada por onde a realidade social positiva ingressa na normatividade do Estado.
A interpretação do princípio da igualdade apresenta um problema fundamental que consiste em determinar se o princípio representa ou não uma obrigação para o Estado de criar na sociedade a igualdade material. Apesar das dificuldades, é nesta direção que caminha a jurisprudência das Cortes da Europa.
Os direitos fundamentais enriqueceram-se de uma dimensão nova com a introdução dos direitos sociais básicos. A igualdade não revogou a liberdade, mas esta sem aquela é valor vulnerável, acontecendo a passagem da liberdade jurídica para a liberdade real, da mesma forma que da igualdade abstrata se pretende passar para a material.
A CRISE DOS DIREITOS SOCIAIS NO BRASIL E A CONSTITUIÇÃO DE 1988
O Estado social no Brasil, inserido na atual Constituição, poderá produzir as condições reais e fáticas indispensáveis ao exercício dos direitos fundamentais, fazendo com que o Estado cumpra a tarefa igualitária e distributiva, propiciando a democracia e a liberdade.
Conforme Pernthaler, o princípio material da igualdade obriga o Estado a remover as mais profundas e perturbadoras injustiças sociais.
A NATUREZA DA CONSTITUIÇÃO NO ESTADO SOCIAL DA DEMOCRACIA
O Estado de Direito Liberal ameaçava, ontem, os valores dominantes, vida liberdade e propriedade. Hoje, são outros esses valores, cuja ameaça que pesa sobre eles não procede do Estado, mas da sociedade industrial e de suas estruturas injustas.
Com o Estado social, o Estado-inimigo deu lugar ao Estado-amigo, o Estado-medo ao Estado-confiança, e as Constituições tendem a se transformar num pacto de garantia social.
O autor lembra que a Constituição do Estado social na democracia é a Constituição do conflito, dos conteúdos dinâmicos, da tensão sempre renovada entre a igualdade e a liberdade. A Constituição dos direitos sociais básicos é programática, ao contrário da Constituição liberal que praticava o divórcio entre o Estado e a Sociedade. A questão de como aplicar a Constituição não cabe unicamente ao Direito Constitucional resolver, mas deve ter igual preocupação a Ciência Política.
Introduzir o texto constitucional na realidade nacional tem sido o desafio das Constituições republicanas, apesar da ação de algumas lideranças políticas regionais e empresariais, minando os valores incorporados à atual Carta. O tormento privatista, como resistência à aplicação dos direitos sociais, ratificou esta tendência.
Compreendemos que essa situação foi minorada a partir de 2003, em que os programas sociais se aproximaram das aspirações de igualdade material do Estado Social Democrático de Direito, já sendo notadas comprovadas mobilidades sociais de classes (D e E), com rendas insuficientes à sua dignidade, para classes ditas médias (C e B), com rendas compatíveis. Isto sem recorrer aos artifícios privatistas tão frequentes até 2002.
A CONSTITUIÇÃO DE 1988 E A CRISE CONSTITUINTE NO BRASIL
O destino da atual Constituição vai depender da sua adequação às enormes exigências de uma sociedade em busca de governos estáveis e legítimos dos quais se possa esperar a solução dos problemas cruciais de natureza política e estruturante.
O constitucionalismo social resume o problema da legitimidade do ordenamento brasileiro no tocante ao exercício e organização do poder e retrata a crise profunda do Estado e da Sociedade.
As promessas constitucionais ora aparecem em fórmulas vagas, abstratas e genéricas, ora remetem à concretização do preceito contido na norma ou na cláusula a uma legislação complementar e ordinária que nunca se elabore.
Em razão dessa omissão constitucional, a auto aplicabilidade das regras da Constituição em face de direitos sociais e a eficácia das garantias constitucionais constituem os pontos principais das reflexões sobre a crise da estabilidade social no Brasil.
A crise constitucional é a crise de um determinado ponto da Constituição. Já a crise constituinte costuma ferir mortalmente as instituições, compelindo à cirurgia dos tecidos sociais ou fazendo até mesmo inevitável a revolução. A crise constituinte não é a crise de uma Constituição, mas a crise do próprio poder constituinte.
OS PRINCIPAIS MOMENTOS DA CRISE CONSTITUINTE NO IMPÉRIO E NA REPÚBLICA.
Desde os primórdios da nossa emancipação formal a crise constituinte tomou aspectos gravíssimos, pois nunca se resolveu em termos definitivos, ficando latente na época do Império até aparecer outra vez na erupção republicana de 1889.
A história de todas as repúblicas brasileiras é a história das crises constituintes, chegando até os nossos dias, conforme as indefinições, incertezas e equívocos que cercaram o Congresso Nacional em sua função constituinte de duvidosa legitimidade.
Desde o primeiro império, uma observação mais detalhada descobrirá a presença antagônica de dois poderes constitucionais paralelos, o poder de fato e o poder de direito, tornando inevitável a própria crise constituinte. Quando ambos os poderes colidem, como em 1823, 1890, 1934 e 1967, o primeiro sempre se sobrepõe ao segundo, impondo dissimuladamente uma nova textura constitucional.
O Congresso Nacional congrega poderes para por fim a uma crise constitucional, nunca a uma crise constituinte, que demanda a feitura de uma nova Constituição; e crise constituinte o País continua atravessando, basta verificar a quantidade de Emendas aprovadas à Constituição de 1988. A crise constituinte no Brasil tem sido, em toda nossa história política, a mais profunda crise de legitimidade, tanto pelos aspectos formais como materiais.
A Constituinte brasileira que esteve mais próxima da conjugação de poderes supremos e incontrastável foi a de 1946, com um mais alto grau de legitimidade. Entretanto, não foi suficiente para evitar o desastre provocado pela crise constituinte de 1964.
Ao Direito Constitucional não reconhece poderes constituintes primários, invisíveis, mas poderosamente atuante na retaguarda social e política, que se mantêm ora em antagonismo, ora em harmonia com os poderes da teoria constitucional.
A TERCEIRA CRISE DO ESTADO CONSTITUCIONAL: A CRISE DE INCONSTITUCIONALIDADE
Além das duas crises já referidas, a terceira crise é de inconstitucionalidade. Pode-se chegar à inconstitucionalidade quando no ordenamento formalmente constitucional se perde o senso de proporção entre os fins programáticos e os elementos de eficácia e juridicidade das regras constitucionais. Este desequilíbrio determina a inexequibilidade da Constituição.
A acumulação de contradições insolúveis no sistema constitucional, interferindo na unidade da Constituição, abre caminho para o ingresso da crise de inconstitucionalidade. O mesmo acontece quando a razão e o bom senso deixam de prevalecer na elaboração da Constituição e nas suas reformas. A crise de inconstitucionalidade não é senão a crise constituinte instalada já no corpo da Constituição, cujo formalismo sem fronteiras evidencia sua inadequação à época, ao meio e à cidadania.
A CRISE DE INCONSTITUCIONALIDADE E A INGOVERNABILIDADE
A ingovernabilidade é a crise aguda de um só Poder, o Executivo, tornando-o demissionário de responsabilidades na administração da crise e ao mesmo tempo incapaz de evitar a consumação do caos e prevenir a desordem institucional.
Entretanto, a inconstitucionalidade é muito mais grave, porquanto configura lesões irreparáveis ao princípio da legitimidade toda vez que o constituinte formula regras ou produz instituições fora do bom senso, da realidade nacional e dos limites de viabilidade do meio.
Na ingovernabilidade, é a legalidade que paralisa o Poder Executivo; na inconstitucionalidade, a doença acomete a própria legitimidade, destrói as forças da Constituição, conduzindo ao processo degenerativo que antecede a morte das instituições.

FICHAMENTO DE TEXTO: "AS INOVAÇÕES INTRODUZIDAS NOS SISTEMA FEDERATIVO PELA CONSTITUIÇÃO DE 1988"

Série acadêmica

Fichamento do texto "As Inovações Introduzidas no Sistema Federativo pela Constituição de 1988",  p. 344-360, inBONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 14ª ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2004. Cap. 10.

A DIMENSÃO FEDERALISTA CONFERIDA AO MUNICÍPIO PELA CONSTITUIÇÃO DE 1988
A autonomia do Município recebeu, com a Constituição, um reforço jurídico e uma evidência política nunca conhecida antes em outros sistemas federativos.
O art. 18, da Atual Constituição, inseriu o Município na organização político-administrativa da Federação, de modo que ele e Distrito Federal formam a terceira esfera de autonomia, alterando o dualismo no federalismo brasileiro. Traz o art. 29 um enorme acréscimo de institucionalização, uma vez que determina seja o Município regido por lei orgânica dotada de rigidez, por ser votada em dois turnos num quórum qualificado de dois terço dos membros da Câmara Municipal. Já o art. 30 discrimina as matérias de competência municipal com reconhecida relevância, desconhecida dos textos constitucionais antecedentes.
A história da autonomia municipal sempre esteve ligada às oscilações políticas, não se tratando unicamente de problema jurídico, mas de um tema que cada geração tenta resolver conforme as suas próprias características.
Segundo Stier-Somlo, em épocas de fortes correntes liberais, busca-se maior autonomia municipal; em tempos em que a auto-adinistração prioriza a coletividade e o pensamento social, há o recuo desta autonomia.
O MUNICÍPIO BRASILEIRO NA VANGUARDA DOS MODELOS AUTONOMISTAS
Almejados por muitos publicistas liberais dos séculos XVIII e XIX, o Município nunca esteve numa organização federativa antes da Constituição de 1988. Esse novo modelo impõe aos aplicadores dos princípios e regras constitucionais uma visão hermenêutica maior concernente à defesa e sustentação da autonomia municipal.
A TEORIA DO PODER MUNICIPAL EM FACE DO ESTADO
Ao fazer nascer o princípio da autonomia municipal, os franceses distinguiram duas espécies de funções, direitos ou competências dos Municípios: as funções que se referem a interesses exclusivamente comunitários; e as demais, que lhe são delegadas pelo interesse geral, fixadas em lei. Essas ideias estavam contidas na Constituição francesa de 1789, referentes à organização das municipalidades.
Os Municípios tinham seus assuntos legislativos e executivos privativos, colocando-se perante o Estado como os indivíduos em seus negócios particulares.
A BATALHA PELO “POUVOIR MUNICIPAL” NA EUROPA
A doutrina municipalista francesa da Revolução não progrediu, a centralização de poderes tornou-se o traço institucional mais visível da organização do Estado. Na Bélgica, a tese municipalista se revigorou com a Constituição de 1831. Na Alemanha, Rotteck afirmava que todo Estado era uma Federação de comunidades, o que influenciou a Constituição do Império Alemão de 1849.
Uma lei de 1849, na Áustria, considerou o Município a base de um Estado livre, e outra, de 1862, distingue o “círculo de eficácia autônoma” do município do círculo em que a comunidade executa somente as funções delegadas para o Estado.
O “círculo de eficácia autônoma” do município, onde se encaixa a origem e a essência da autonomia municipal, tem sido justificado por postulados do Direito Natural, os quais incluem a ideia de que as comunidades, como os indivíduos, possuem um direito fundamental que o Estado não cria e é nato dos Municípios.
O PODER DO MUNICÍPIO, UM PODER PRÉ-ESTATAL NA CONSTITUIÇÃO DE 1988
O poder municipal tomou relevância na Constituição de 1988, que fez dele uma peça constitutiva do próprio sistema nacional de comunhão política do ordenamento, o que cercou o referido poder de proteção adequada em face dos legisladores, mormente os estaduais.
A TEORIA CONSTITUCIONAL DAS GARANTIAS INSTITUCIONAIS E A AUTONOMIA DO MUNICÍPIO
Segundo Klaus Stern, a garantia institucional caracteriza-se como proteção qualificada da autonomia do Município. Na Lei Fundamental de Bonn, de 1949, a autonomia municipal, cercada de garantias institucionais, renasceu, após o crepúsculo na Constituição de Weimar.
As garantias institucionais, entre as quais está a autonomia do Município, segundo Duerig, são aquelas cuja existência independe de direitos fundamentais subjetivos, ao passo que as garantias de instituto se relacionam com estes direitos.
A GARANTIA INSTITUCIONAL DO “MÍNIMO INTANGÍVEL” NA AUTONOMIA DO MUNICÍPIO
Segundo Carl Schmitt, uma garantia institucional protege a autonomia do Município contra a ação do legislador ordinário e constituinte do Estado-membro, invasora do seu espaço jurídico-constitucional.
É da essência da garantia institucional proteger o “mínimo intangível” de Carl Schmitt, o “mínimo essencial” de Anschuetz e a “identidade” de Giese, ou seja, o que faz a natureza e o conteúdo do instituto da autonomia municipal.
AUTONOMIA FINANCEIRA DO MUNICÍPIO E O ESTADO-MEMBRO
A Constituição deixou livre à discrição e competência das municipalidades aquilo que integra a essência de seus poderes autônomos, que é uma faculdade de caráter financeiro cuja retirada destrói a autonomia municipal.
Analisando o art. 29, caput, V e VI, da CF, conclui-se que não se infere nenhum preceito que habilite uma disposição legislativa ordinária ou do constituinte estadual para limitar a competência das Câmaras Municipais no que concerne à fixação da remuneração de Prefeitos, Vice-prefeitos, Secretários Municipais e Vereadores.
A “CONSTITUCIONALIZAÇÃO ADMINISTRATIVA” DAS REGIÕES
Abriu-se uma estreita porta quando o Constituinte de 1988 reconheceu formalmente em termos administrativos as Regiões. A matéria disciplinada no art. 43, da CF, cresce em importância, quando se vincula ao art. 3º, III, e ao art. 170, VII.
Descortina-se, assim, um caminho para a criação de uma futura instância federativa, a das Regiões.
A MARCHA PARA UMA “CONSTITUCIOALIZAÇÃO POLÍTICA” DAS REGIÕES
Não faltaram propostas para a efetivação do princípio federativo com bases regionais, na Constituinte de 1987/88, partindo dos membros dos Estados da Região Nordeste, o que foi fortemente combatido pelos membros do Sudeste, sob a alegação de que poderia levar ao separatismo da unidade nacional.
Afirma o autor que, da mesma forma que se deu a constitucionalização do “poder municipal”, nada impede que se crie a quarta instância política da Federação, o “poder regional”, dispondo de poderes mais eficazes junto ao Governo Central que aqueles de que os Estados-membros seriam capazes de obter.
Sem dizer não às autonomias dos Estados-membros e dos Municípios, o autor considera que o federalismo das autonomias regionais põe fim à crise proveniente das forças centrípetas geradas por um presidencialismo absoluto.

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