AS
TRÊS ÉPOCAS CONSTITUCIONAIS DO BRASIL
Distinguem-se três fases
histórias no constitucionalismo brasileiro: a primeira, vinculado aos modelos
francês e inglês do século XIX, constante na Constituição de 1824; a segunda,
ligada ao modelo norte-americano, presente na Constituição de 1891; e a
terceira, em curso, influenciada pelo constitucionalismo alemão, a partir da
Constituição de 1934.
O
constitucionalismo do Império: a presença da inspiração francesa e inglesa
Inserida no período que se
estende de 1822 a 1889, esta fase tem como elementos constitucionais mais
importantes: o Projeto Antônio Carlos, parcialmente votado nas sessões da
Constituinte; a Constituição do Império, outorgada em 1824; o Ato Adicional de
1834, reforma constitucional durante a regência; e a Lei da Interpretação, de
1840, referente a alguns artigos da reforma de 1834.
O Projeto da Constituinte
não se distanciou da influência francesa, que em matéria de organização de
poderes obedecia ao esquema de Montesquieu: Poder Executivo, Poder Legislativo
e Poder Judiciário. Também a garantia de direitos individuais e políticos teve
inspiração da Constituição francesa, de 1791.
Todavia, a Constituição do
Império, ao ser aplicada, viu prosperar uma forma de governo parlamentar, um
tanto híbrido, assemelhado ao modelo inglês. A Constituição Real, desprezando a
formal, ali se inspirara.
Essa Constituição foi a
única do mundo, segundo o autor, a adotar a repartição tetradimensional de
poderes, usando também o modelo de Benjamin Constant, embora de modo mais
formal que material. Assim, aos três poderes citados, acrescentou o Poder
Moderador, do qual o Imperador era titular, além do Executivo. Dessa exagerada
centralização resultou a desintegração política do regime monárquico, que foi
substituído pelo sistema republicano, em 1889.
O
constitucionalismo da Primeira República: a adoção do modelo americano
A Primeira República,
correspondente ao período de 1889 a 1930, esteve sob a égide da Constituição de
1891, em que os princípios chaves eram: o sistema republicano, a forma
presidencial de governo, a forma federativa de Estado e o funcionamento de uma
suprema corte, competente para julgar a inconstitucionalidade dos atos do
Poder.
Nesse período, o Brasil
republicano adotou um constitucionalismo de origem norte-americana com a fachada
teórica quase perfeita do Estado Liberal de Direito.
O
constitucionalismo do Estado Social: a influência das Constituições de Weimar e
Bonn
Inaugura-se a terceira
grande época do constitucionalismo brasileiro, marcada por crises, golpes de
Estado, insurreição, impedimentos, renúncia e suicídio de Presidentes.
Tais fatos incluem: a
Segunda República (1934-37), com a Constituição promulgada de 1934; o “curto
período” da ditadura do Estado Novo, com a Constituição outorgada de 1937; a
Constituição promulgada de 1946, oriunda de uma constituinte proveniente de um
golpe em 1945, inaugurando a Terceira República; Atos Institucionais da
“revolução militar” de 1964; a Carta semi-autoritária de 1967; a Emenda nº 1, a
“Constituição“ da Junta Militar de 1969; e a Constituição de 1988, com a
redemocratização
Nas Constituições de 1934,
1946 e 1988, domina o ânimo do constituinte uma vocação política de disciplinar
a categoria de direitos fundamentais que assinalam o primado da Sociedade sobre
o Estado e o indivíduo ou que fazem do homem o destinatário da norma
constitucional.
Segundo Paulo Sarasate:
“Foi indisfarçável a ressonância da Constituição de Weimar nos textos
brasileiros de 1934 e 1946, os quais tiveram na mesma um reluzente espelho”.
Foram introduzidas nessas
Constituições matérias novas, notadamente de cunho social: interesse social e
coletivo da propriedade, ordem econômica e social, instituição da Justiça do
Trabalho, salário mínimo, férias anuais remuneradas, indenização ao trabalhador
dispensado sem justa causa, amparo à maternidade e à infância, socorro às
famílias de prole numerosa, educação e cultura. Além disto, a Constituição de
1946 preceituava a participação do trabalhador nos lucros das empresas.
A Constituição de 1988, avizinhando-se
da Lei Fundamental de Bonn, teve proeminência social, abriu seus capítulos com
os direitos e garantias fundamentais e inovou, ao instituir um remédio novo no
processo constitucional: o mandado de injunção, com o intuito de evitar que os
direitos sociais convertam-se em preceitos apenas programáticos.
É
A CONSTITUIÇÃO DE 1988 UMA CONSTITUIÇÃO DO ESTADO SOCIAL?
A Constituição de 1988 é,
em muitas de suas dimensões essenciais, uma Constituição do Estado social, apesar
de resquícios liberais, adaptando-se a programas de alguns governos notadamente
liberalistas.
A crise do Direito
Constitucional se deve aos novos modelos de Estado que surgiram em substituição
ao clássico Estado de Direito do século XIX, o Estado social e os Estado
socialista.
O verdadeiro problema
Direito Constitucional atualmente é como inaugurar novos institutos processuais
para garantir os direitos sociais básicos, fazendo-os efetivos.
Nesse aspecto, houve
grande avanço na Carta de 1988, com o mandado de injunção, o mandado de
segurança coletivo e a inconstitucionalidade por omissão, o que caracteriza o
Estado social brasileiro como de terceira geração em face dessas garantias.
CARÁTER
ABSOLUTO OU RELATIVO DOS DIREITOS SOCIAIS: O PROBLEMA DE SUA APLICABILIDADE
Não é possível entender o
constitucionalismo do Estado social contido na Carta de 1988 se não enxergarmos
a teoria dos direitos sociais fundamentais, o princípio da igualdade, os
institutos processuais de garantia e o papel que assume na guarda da
Constituição o STF.
São os direitos sociais
básicos de mesma natureza e de mesmo grau dos demais direitos fundamentais ou
compõem uma categoria distinta para efeitos de reconhecimento ou execução pelo
Estado?
No primeiro caso, há duas
posições: uma afirma a superioridade dos direitos da liberdade sobre os
sociais; outra sustenta a prevalência dos direitos sociais sobre os da
liberdade. No segundo caso, o primado é da igualdade, em que os direitos
sociais possuem uma dignidade constitucional de princípio, que no Estado social
compõe fonte axiológica da Constituição, com reflexos imperativos na sua
interpretação em matéria de direitos sociais.
A
TEORIA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS NO ESTADO SOCIAL
Reconhece-se a importância
que a teorização assume para assentar os rumos do Estado e guiar a
jurisprudência, permitindo a proteção da liberdade em termos de plena eficácia
social.
O autor elege a teoria do
Estado social, expondo-a numa versão própria que se propõe a penetrar na
essência dos direitos sociais básicos e evidenciar a modalidade de Estado e de
ordem jurídica que a Constituição de 1988 consagrou.
A
IMPORTÂNCIA DO PRICÍPIO DA IGUALDADE
O base do Estado Social e
de todos os direitos de sua ordem jurídica é o princípio da igualdade. Com a
liberdade compõe um eixo ao redor do qual gira toda a concepção do Estado
contemporâneo.
O princípio da igualdade
conseguiu firmar inegável superioridade qualitativa, desde que traduziu a
essência do Estado social. A igualdade deixou de ser somente a jurídica do
liberalismo para se converter na igualdade material da nova forma de Estado. Na
atual fase da doutrina, já não se trata de uma igualdade “perante” a lei, mas
de uma igualdade “feita” pela lei, uma igualdade “através” da lei.
Ideologia e valores passam
a integrar o conceito de igualdade na posição de preeminência contemporânea, o
que provoca uma crise para a senil igualdade jurídica do Estado de Direito, que
nascera ideológica pelo jusnaturalismo.
A
INTERPRETAÇÃO CONSTITUCIONAL DO PRINCÍPIO DA IGUALDADE
Segundo Konrad Hesse, o
princípio constitucional da igualdade “é elemento essencial de uma Constituição
aberta”, constituindo-se numa porta de entrada por onde a realidade social
positiva ingressa na normatividade do Estado.
A interpretação do
princípio da igualdade apresenta um problema fundamental que consiste em
determinar se o princípio representa ou não uma obrigação para o Estado de
criar na sociedade a igualdade material. Apesar das dificuldades, é nesta
direção que caminha a jurisprudência das Cortes da Europa.
Os direitos fundamentais
enriqueceram-se de uma dimensão nova com a introdução dos direitos sociais
básicos. A igualdade não revogou a liberdade, mas esta sem aquela é valor
vulnerável, acontecendo a passagem da liberdade jurídica para a liberdade real,
da mesma forma que da igualdade abstrata se pretende passar para a material.
A
CRISE DOS DIREITOS SOCIAIS NO BRASIL E A CONSTITUIÇÃO DE 1988
O Estado social no Brasil,
inserido na atual Constituição, poderá produzir as condições reais e fáticas
indispensáveis ao exercício dos direitos fundamentais, fazendo com que o Estado
cumpra a tarefa igualitária e distributiva, propiciando a democracia e a
liberdade.
Conforme Pernthaler, o
princípio material da igualdade obriga o Estado a remover as mais profundas e
perturbadoras injustiças sociais.
A
NATUREZA DA CONSTITUIÇÃO NO ESTADO SOCIAL DA DEMOCRACIA
O Estado de Direito
Liberal ameaçava, ontem, os valores dominantes, vida liberdade e propriedade.
Hoje, são outros esses valores, cuja ameaça que pesa sobre eles não procede do
Estado, mas da sociedade industrial e de suas estruturas injustas.
Com o Estado social, o
Estado-inimigo deu lugar ao Estado-amigo, o Estado-medo ao Estado-confiança, e
as Constituições tendem a se transformar num pacto de garantia social.
O autor lembra que a
Constituição do Estado social na democracia é a Constituição do conflito, dos
conteúdos dinâmicos, da tensão sempre renovada entre a igualdade e a liberdade.
A Constituição dos direitos sociais básicos é programática, ao contrário da
Constituição liberal que praticava o divórcio entre o Estado e a Sociedade. A
questão de como aplicar a Constituição não cabe unicamente ao Direito
Constitucional resolver, mas deve ter igual preocupação a Ciência Política.
Introduzir o texto
constitucional na realidade nacional tem sido o desafio das Constituições
republicanas, apesar da ação de algumas lideranças políticas regionais e
empresariais, minando os valores incorporados à atual Carta. O tormento
privatista, como resistência à aplicação dos direitos sociais, ratificou esta
tendência.
Compreendemos que essa situação
foi minorada a partir de 2003, em que os programas sociais se aproximaram das
aspirações de igualdade material do Estado Social Democrático de Direito, já
sendo notadas comprovadas mobilidades sociais de classes (D e E), com rendas
insuficientes à sua dignidade, para classes ditas médias (C e B), com rendas
compatíveis. Isto sem recorrer aos artifícios privatistas tão frequentes até
2002.
A
CONSTITUIÇÃO DE 1988 E A CRISE CONSTITUINTE NO BRASIL
O destino da atual
Constituição vai depender da sua adequação às enormes exigências de uma sociedade
em busca de governos estáveis e legítimos dos quais se possa esperar a solução
dos problemas cruciais de natureza política e estruturante.
O constitucionalismo
social resume o problema da legitimidade do ordenamento brasileiro no tocante
ao exercício e organização do poder e retrata a crise profunda do Estado e da
Sociedade.
As promessas
constitucionais ora aparecem em fórmulas vagas, abstratas e genéricas, ora
remetem à concretização do preceito contido na norma ou na cláusula a uma
legislação complementar e ordinária que nunca se elabore.
Em razão dessa omissão
constitucional, a auto aplicabilidade das regras da Constituição em face de
direitos sociais e a eficácia das garantias constitucionais constituem os
pontos principais das reflexões sobre a crise da estabilidade social no Brasil.
A crise constitucional é a
crise de um determinado ponto da Constituição. Já a crise constituinte costuma
ferir mortalmente as instituições, compelindo à cirurgia dos tecidos sociais ou
fazendo até mesmo inevitável a revolução. A crise constituinte não é a crise de
uma Constituição, mas a crise do próprio poder constituinte.
OS
PRINCIPAIS MOMENTOS DA CRISE CONSTITUINTE NO IMPÉRIO E NA REPÚBLICA.
Desde os primórdios da
nossa emancipação formal a crise constituinte tomou aspectos gravíssimos, pois
nunca se resolveu em termos definitivos, ficando latente na época do Império
até aparecer outra vez na erupção republicana de 1889.
A história de todas as
repúblicas brasileiras é a história das crises constituintes, chegando até os
nossos dias, conforme as indefinições, incertezas e equívocos que cercaram o
Congresso Nacional em sua função constituinte de duvidosa legitimidade.
Desde o primeiro império,
uma observação mais detalhada descobrirá a presença antagônica de dois poderes
constitucionais paralelos, o poder de fato e o poder de direito, tornando
inevitável a própria crise constituinte. Quando ambos os poderes colidem, como
em 1823, 1890, 1934 e 1967, o primeiro sempre se sobrepõe ao segundo, impondo
dissimuladamente uma nova textura constitucional.
O Congresso Nacional
congrega poderes para por fim a uma crise constitucional, nunca a uma crise
constituinte, que demanda a feitura de uma nova Constituição; e crise
constituinte o País continua atravessando, basta verificar a quantidade de
Emendas aprovadas à Constituição de 1988. A crise constituinte no Brasil tem
sido, em toda nossa história política, a mais profunda crise de legitimidade,
tanto pelos aspectos formais como materiais.
A Constituinte brasileira
que esteve mais próxima da conjugação de poderes supremos e incontrastável foi
a de 1946, com um mais alto grau de legitimidade. Entretanto, não foi
suficiente para evitar o desastre provocado pela crise constituinte de 1964.
Ao Direito Constitucional
não reconhece poderes constituintes primários, invisíveis, mas poderosamente
atuante na retaguarda social e política, que se mantêm ora em antagonismo, ora
em harmonia com os poderes da teoria constitucional.
A
TERCEIRA CRISE DO ESTADO CONSTITUCIONAL: A CRISE DE INCONSTITUCIONALIDADE
Além das duas crises já
referidas, a terceira crise é de inconstitucionalidade. Pode-se chegar à
inconstitucionalidade quando no ordenamento formalmente constitucional se perde
o senso de proporção entre os fins programáticos e os elementos de eficácia e
juridicidade das regras constitucionais. Este desequilíbrio determina a
inexequibilidade da Constituição.
A acumulação de
contradições insolúveis no sistema constitucional, interferindo na unidade da
Constituição, abre caminho para o ingresso da crise de inconstitucionalidade. O
mesmo acontece quando a razão e o bom senso deixam de prevalecer na elaboração
da Constituição e nas suas reformas. A crise de inconstitucionalidade não é
senão a crise constituinte instalada já no corpo da Constituição, cujo
formalismo sem fronteiras evidencia sua inadequação à época, ao meio e à
cidadania.
A
CRISE DE INCONSTITUCIONALIDADE E A INGOVERNABILIDADE
A ingovernabilidade é a
crise aguda de um só Poder, o Executivo, tornando-o demissionário de
responsabilidades na administração da crise e ao mesmo tempo incapaz de evitar
a consumação do caos e prevenir a desordem institucional.
Entretanto, a
inconstitucionalidade é muito mais grave, porquanto configura lesões
irreparáveis ao princípio da legitimidade toda vez que o constituinte formula
regras ou produz instituições fora do bom senso, da realidade nacional e dos
limites de viabilidade do meio.
Na ingovernabilidade, é a
legalidade que paralisa o Poder Executivo; na inconstitucionalidade, a doença
acomete a própria legitimidade, destrói as forças da Constituição, conduzindo
ao processo degenerativo que antecede a morte das instituições.