Série acadêmica
PROPRIEDADE DOS BENS NAUFRAGADOS: ENFOQUE PORTUGUÊS[1]
Para citar este artigo:
SOUSA, M. T. A.; SOUSA, M, J. M. Propriedade dos bens naufragados: enfoque português.
MTiciano Sousa. Natal, 23 ago. 2023. Disponível em: https://mticianosousa.blogspot.com/2023/08/artigo-propriedade-dos-bens-naufragados.html.
Acesso em: DD/MM/AAAA.
RESUMO
Os bens naufragados ou achados no mar, objeto de estudo deste trabalho, têm recebido tratamentos diferenciados tanto jurídicos quanto em termos de nomenclatura ao longo do tempo. Além disso, sempre orbitou em torno do instituto da salvação marítima, sem, portanto, adquirir uma autonomização adequada na maior parte dos regimes jurídicos. Pretende-se analisar como se consubstancia a propriedade dos bens naufragados no mar em cada instrumento normativo interno, passado e vigente, e nos regimes jurídicos internacionais adotados. Para tanto, lança-se mão de investigação científico-jurídica baseada no método dedutivo, a partir de pesquisa bibliográfica a explorar a doutrina especializada, os regimes internos e externos referidos, bem como aspectos jurisprudenciais. Constata-se que a propriedade dos bens naufragados tende a permanecer com o seu titular original, na medida em que a legislação se moderniza, salvo quando não se lhe possa conhecer.
Palavras-chave: Bens naufragados no mar; Achados no mar; Propriedade; Titular da propriedade; Achador.
OWNERSHIP OF SHIPWRECKED GOODS: PORTUGUESE APPROACH
ABSTRACT
Shipwrecked goods or goods found at sea, the object of study in this work, have received different legal and nomenclature treatments over time. In addition, they have always orbited around the institute of maritime salvation, without, therefore, acquiring adequate autonomy in most legal regimes. It is intended to analyze how the ownership of goods sunk at sea is embodied in each internal normative instrument, past and in force, of Portugal and in the international legal regimes adopted. To this end, scientific-legal research based on the deductive method is used, based on bibliographical research to explore the specialized doctrine, the referred internal and external regimes, as well as jurisprudential aspects. It appears that the property of sunken goods tends to remain with their original holder, as the legislation is modernized, except when it cannot be known.
Keywords: Shipwrecked goods at sea; Found at sea; Property; Owner of the property; Finder.
Sumário: 1. Introdução; 2. Enquadramento; 3. Influências recebidas por Portugal acerca da propriedade dos bens naufragados; 4. Os regimes jurídicos internos portugueses: 4.1. Regime jurídico anterior: 4.1.1. Alvará de 24 de maio de 1668; 4.1.2. Código Comercial de 18 de setembro de 1833; 4.1.3. Código Comercial de 23 agosto de 1888 (CCom); 4.2. Regime jurídico vigente: 4.2.1. Regulamento das Alfândegas (RA); 4.2.2. Decreto Lei nº 416/1970, de 01 de setembro; 4.2.3. Regulamento Geral das Capitanias (RGC); 4.2.4. Decreto Lei nº 164/1997, de 27 de julho; 4.2.5. Lei da Salvação Marítima (LSM); 4.2.6. Decreto Lei nº 64/2005, de 15 de março; 5. Regime convencional ratificado por Portugal: 5.1. Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar (CNUDM) de 1982 (Convenção de Montego Bay); 5.2. Convenção da Unesco sobre a proteção do patrimônio cultural subaquático (CPPCS) de 2001; 5.3. Convenção internacional de Nairóbi sobre a remoção de destroços de 2007 (dec. 28/2017, de 25 de agosto); 6. Conclusão.
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1. INTRODUÇÃO
Os bens naufragados resultantes de
fragmentos de navio, do próprio navio ou de carregamentos perdidos no mar possuem,
desde o período medieval, uma terminologia um tanto quanto variada, vez que são
encontradas várias nomenclaturas, tais como achados, perdidos, naufragados, soçobrados,
destroços, despojos, arrojos ou até o termo francês épave.
Além disso, há que se distinguir tais
objetos como tesouros, mercadorias, de ferros, de natureza militar, arqueológicos
ou culturais, e determinar se foram perdidos, naufragados ou arrojados à costa,
porquanto podem ter tratamentos diferentes quanto à propriedade, à forma de
recuperação, à destinação, à recompensa a quem os achou ou para fins aduaneiros. O termo arrojado à costa diz respeito ao objeto arrastado à costa por força do vento, das ondas ou da correnteza marinha.
Da mesma forma ocorre em relação ao
delineamento jurídico do fenômeno bens naufragados ou achados no mar e a
autonomia da matéria consoante à salvação marítima ou à assistência, sejam no
ordenamento interno ou nas regulações convencionais.
Para os países signatários da
Convenção da Unesco sobre a Proteção do Patrimônio Cultural Subaquático (CPPCS),
de 2001, estão sob tutela deste Instrumento, como define o seu art. 1°, os bens
submersos há pelo menos cem anos e que representem, de alguma ordem, vestígios
da existência humana, sejam de caráter cultural, histórico ou arqueológico.
Estes bens pertencem à humanidade e permanecerão, após encontrados e salvados,
sob custódia do Estado Parte.
Por exclusão, os bens naufragados há menos de cem anos passam a figurar ao abrigo de regimes jurídicos convencionais, como a Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar (CNUDM), de 1982, e de regimes internos diversos, os quais serão analisados na medida em que tratem da propriedade dos bens naufragados ou achados no mar, objeto de análise deste trabalho.
Ainda se vislumbra a Convenção Internacional
de Nairóbi sobre a Remoção de Destroços, de 2007, ratificada por Portugal em 25
de agosto de 2017, voltada para a obrigação de o próprio proprietário remover os
destroços de suas embarcação e carga naufragadas, em decorrência de acidente,
nas águas sob jurisdição dos Estados Partes afetados, ou suportar as despesas
deste encargo, tendo em vista a segurança da navegação e a proteção do meio
ambiente[2].
Para a investigação acerca da propriedade dos bens naufragados no mar, baseou-se, em termos metodológicos, no método dedutivo, a partir de pesquisa bibliográfica a explorar a doutrina especializada, a legislação interna e os regimes internacionais adotados por Portugal. Assim, partiu-se de uma delimitação inicial nesta introdução, um pequeno enquadramento do objeto de estudo, seguindo-se à análise das influências dos regimes jurídicos não mais vigentes e das características dos vigentes, de acordo com os tipos de bens naufragados encontrados no mar a que estes instrumentos aduzem. Por fim, são expostas as conclusões a que se chegou.
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2. ENQUADRAMENTO
À partida, os principais critérios
adotados para distinção entre a salvação de um navio e a recolha de achados no
mar ou de destroços são: de um lado, a navegabilidade ou não do objeto achado
ou recuperado; e, do outro, a manutenção em termos de identidade material do
navio. Conforme Cláudia Madaleno, a navegabilidade e a permanência da
identidade material consubstanciam requisitos da salvação, enquanto a recolha de
achados ou remoção de destroços é delineada por exclusão, ou de maneira
negativa, em relação à salvação[3].
Já Aureliano, faz esta distinção entre
achados no mar e salvação marítima de forma positiva, considerando dois
pressupostos: o primeiro leva em conta o elemento volitivo do achador,
porquanto este, ao contrário do salvador, não possui qualquer animus salvandi;
sendo tal pressuposto aplicado até aos objetos achados no fundo mar. O segundo diz
respeito à perda da qualidade material dos objetos achados, normalmente
referenciado na doutrina[4].
Em relação ao quadro jurídico vigente
interno, a propriedade dos bens naufragados ou achados no mar, encontra abrigo
no Decreto n.º 31.730/1941, de 15 de dezembro – Regulamento das Alfândegas
(RA); no DL n.º 416/1970, de 01 de setembro; no DL n.º 265/72, de 31 de julho –
Regulamento Geral das Capitanias (RGC); no DL n.º 164/1997, de 27 de junho; no
DL n.º 203/1998, de 10 de julho – Lei da Salvação Marítima (LSM); Decreto Lei n.º
64/2005, de 15 de março; bem como nos Instrumentos internacionais adotados por
Portugal: Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar (CNUDM), de 1982, ou
Convenção de Montego Bay; Convenção da Unesco sobre a Proteção do Patrimônio
Cultural Subaquático (CPPCS), de 2001; e Convenção Internacional de Nairóbi sobre
a Remoção de Destroços, de 2007, ou Convenção de Nairóbi. Tais regimes
jurídicos serão analisados a partir do Subitem 4.2.
Essas são as considerações do tema que por ora são aduzidas. As demais circunstâncias serão apresentadas à medida em que se lhes manifestem, tendo em vista serem variáveis segundo cada texto normativo interno ou regime convencional a que estão inseridas.
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3. INFLUÊNCIAS RECEBIDAS POR PORTUGAL ACERCA DA PROPRIEDADE DOS BENS NAUFRAGADOS
Historicamente, a forma como as sociedades ocidentais trataram os bens encontrados no mar variou consideravelmente a partir dos costumes vigentes, da Antiguidade à atualidade. O Ius Naufragii, norma costumeira fecundada ainda na Antiguidade[5], vigorou nos reinos do Ocidente em toda a Idade Média e até as primeiras codificações marítimas e comerciais, exercendo influência sobre estas. Além de considerar os bens achados ou naufragados um “direito feudal, e mais tarde um direito realengo ou fiscal”[6] – de propriedade de quem exercia a jurisdição sobre o mar territorial do local do naufrágio –, ainda previa a punição dos náufragos com imolação ou com escravidão. O castigo era justificado como punição divina decorrente da falta, ou da imperícia pelo naufrágio, e até do acesso sem permissão ao território alheio[7].
A Lei da Ordenança de Colbert, de
1681, também conhecida como Ordenança da Marinha de Luís XIV, foi aplicada
subsidiariamente em Portugal, por força da Lei da Boa Razão, na qual o parágrafo
9.º mandava aplicar, inclusive na matéria marítima, as leis das nações
civilizadas da Europa. O título IX, do Livro IV, da Ordenança, contendo
minuciosos detalhes a propósito do naufrágio, encalhe e fraturas de navios, contrapunha
às contestadas influências do Ius Naufragii, vindo a constituir um marco
para codificações posteriores acerca de arrojos e achados[8].
Garantia um terço do achado ao achador. Não obstante, ainda continha punições
penais aos náufragos, além do confisco do navio e das mercadorias naufragados,
caso não fossem reclamados pelos proprietários no ano e dia seguinte à data de
publicação do achado ou da sua recuperação. Ou seja, consistia uma mitigação do
Ius Naufragii em favor do Estado, mesmo com a opção de conferir a propriedade
dos bens ao proprietário, por meio de procedimento legal[9].
Em realidade, a Ordenança previa o “corso”,
instituto em que o soberano outorgava, por meio de uma carta de corso ou de
marca, a uma pessoa privada, o direito de confiscar os navios e bens
naufragados, trazendo benefícios aos corsários e ao Estado, garantindo, por
este meio, receitas para as finanças públicas. Neste sentido, teoricamente, o
que excedia os limites da carta do corso era considerado pirataria, atividade
esta reputada ilícita[10].
As Ordenanzas del Consulado de Bilbao de 1737, ainda com fulcro na Lei da Boa Razão, teve vigência e aplicação também subsidiária no direito português, embora com menor efetividade. Este Normativo consagra a defesa da propriedade dos náufragos, atribuindo ao salvador um terço do valor recuperado[11].
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4. OS REGIMES JURÍDICOS INTERNOS PORTUGUESES
4.1. REGIME JURÍDICO ANTERIOR
O quadro normativo português anterior, a propósito do objeto de estudo do presente trabalho, constituiu-se dos seguintes Instrumentos: o Alvará de 24 de maio de 1668; a Lei da Boa Razão, de 18 de agosto de 1709, em que, como já foi mencionado no Item anterior, o seu parágrafo 9.º serviu de janela para aplicação da Lei da Ordenança de Colbert e das Ordenanzas del Consulado de Bilbao; o Código Comercial de 1833 (Código Comercial Ferreira Borges); o Código Civil Português, de 1867 (CC/1867), que remeteu, por meio do seu art. 428.º, para o Código Comercial então vigente, tudo que dizia respeito a embarcações naufragadas, à carga ou a quaisquer objetos de domínio particular que o mar arroje às costas, ou que forem achados no alto mar; e o Código Comercial de 1888 (CCom), tendo sido revogados todos os dispositivos que diziam respeito à salvação e à assistência. Assim, por razões óbvias, serão analisados os Diplomas que se seguem.
4.1.1. Alvará de 24 de maio de 1668
É de bom alvitre lembrar o Alvará de 24 de maio de 1668, que vigorou concomitantemente à vigência da Ordenança de Colbert e pregava a supressão das influências do Ius Naufragii. Segundo este Alvará, ao juiz da Alfândega cabia a provedoria dos fragmentos, coisas e arrecadação das fazendas dos navios naufragados, mas havia o respeito à propriedade do náufrago, e o achador tinha direito a uma remuneração. Era considerada, porém, de propriedade efetiva da Fazenda Real o “navio, embarcações e cousas de infiéis inimigos que se perdessem ou dessem à costa nas praias do reino e seus domínios”[12]. Ademais, os adjetivos infiéis e inimigos mostram a quão arraigada ainda estava a norma costumeira do Ius Naufragii.
4.1.2. Código Comercial de 18 de setembro de 1833
No Código Comercial Ferreira Borges,
os bens naufragados até que poderiam ser bem delimitados na Parte Segunda, Título
XI, pois seu título assim sinalizava: “Do naufrágio, varação e fragmentos
náufragos”. Entretanto, o que se percebe é uma promiscuidade entre os bens
achados e o instituto da salvação.
Mesmo assim, consegue-se determinar
que a propriedade dos bens, sejam eles fazendas, fragmentos ou o próprio navio,
pertenciam ao proprietário original, que podia reavê-los, segundo o art. 1594.º,
diretamente com a autoridade fazendária, em até quatro meses da data do achado.
Após isso, os bens, levados à leilão,
tinham o produto da venda devidamente consignado em depósito judicial, descontadas
as remunerações e despesas dos achados, quando, a partir de então, o proprietário
disporia do prazo máximo de até dez anos para reclamar em Juízo, conforme aduzem
os arts. 1596.º e 1597.º do antigo Diploma. Depois de dez anos, o produto da
venda era declarado vago, o que significava a transferência da propriedade para
o Estado. Quanto à indefinição de que este prazo se trata de caducidade ou
prescrição, entende-se que refere à prescrição, tendo em vista a situação análoga
estabelecida no Código Civil de
1867 (CC/1867), em parte vigente durante o viger do Código Comercial em tela, em
seu art. 535.º[13],
quando o credor tinha o prazo de prescrição de vinte anos para reclamar seu
crédito em face do devedor de boa-fé.
Chama atenção ainda a redação do art. 1597.º, in fine, na medida em que faz referência expressa de que “os objetos pertencentes a inimigos nunca poderão ser reclamados” e, assim, tornar-se-iam propriedade do Reino. Disposição ratificada no art. 1598.º, sejam esses inimigos nacionais ou estrangeiros. Como se verifica, ainda traz resquícios do Ius Naufragii e do Alvará de 24 de maio de 1668, no que respeita aos bens recuperados dos inimigos.
4.1.3. Código Comercial de 23 agosto de 1888 (CCom)
O CCom revoga o Código de 1833, continua
em vigor atualmente, mas teve os seus dispositivos atinentes à assistência, à
salvação e aos achados no mar ou bens naufragados revogados pelo DL n.º 203/1998,
de 10 de julho. O regime previsto para os bens naufragados neste Código se
apresentava de forma relativamente delimitada no Título VIII, Livro Terceiro, estatuído
entre os arts. 676.º a 691.º, muito embora refira-se expressamente apenas aos
institutos da assistência e da salvação e não atribua a esperada autonomização formal
aos achados no mar[14].
Convém ressaltar desde já que, no
art. 679.º, as referências a “navios encalhados, em perigo ou naufragados,
assim como das fazendas arrojadas à costa” trazem o objeto de estudo jurídico
dos bens naufragados ou achados no mar para o CCom. Trata-se dos navios
naufragados inavegáveis sem identidade material, e seus fragmentos, e das
fazendas arrojadas às costas.
Para Matos, esses bens referidos no
CCom seriam chamados juridicamente de épaves, quer dizer, cargas que se
teriam quebrados os laços que as ligavam ao navio, e flutuaram abandonadas, no
todo ou em parte. Acrescenta ainda o autor que também são épaves “os
navios destroçados e inavegáveis, os objetos da carga, flutuando, as coisas
móveis, não pertencentes àqueles ou a estes, abandonados ou arrojados à costa”.
Inobstante isto, este mesmo autor considera-os todos como objetos de salvação
ou assistência[15].
Mota Pinto alude que a recolha de
achados não se encontra explicitamente regulamentada no CCom, remetendo-a à
salvação e à assistência, sendo tal regulamentação feita de forma direta nos 697.º
e ss. do Regulamento das Alfândegas[16],
analisado abaixo no Subitem 4.2.1.
Pode-se ressaltar o fato de o CCom
clarificar a ilicitude de as embarcações naufragadas, seus fragmentos, carga ou
quaisquer fazendas ou objetos de domínio particular serem apropriados pela ocupação,
imposição negativa disposta pelo art. 676.º[17].
Esta é uma exceção, ressalvada pelo art. 428.º, à regra geral do CC/1867[18],
que, a propósito da ocupação das
embarcações e de outros objetos naufragados, remeteu ao Código Comercial então vigente, tudo
que dizia respeito à carga ou a quaisquer objetos de domínio particular que o
mar arroje às costas, ou que forem achados no alto mar.
Por oportuno, deve-se esclarecer que
o instituto da ocupação era uma das formas de aquisição da propriedade, quando bens
semoventes e coisas móveis não têm dono, são abandonados, perdidos, extraviados
ou escondidos por seu proprietário, de acordo com as disposições dos arts. 404.º
a 427.º do CC/1867. Este instituto se mantem
no Código Civil (CCiv) atual, na redação do art. 1318.º[19].
Com efeito, a propriedade dos bens achados
no mar ou naufragados é, à partida, do proprietário original do navio ou das
fazendas a bordo, à influência do Código Comercial anterior, trazendo procedimentos semelhantes
a que este proprietário possa recuperar seus objetos ou o produto de sua venda.
Assim, o proprietário poderia reaver
os bens naufragados no prazo de oito dias da data do achado, após serem inventariados
e anunciados pela autoridade de fiscalização, prestando a devida caução das
despesas e remuneração, consoante os arts. 677.º e 679.º. Durante este período,
os bens perecíveis eram vendidos e o produto apurado.
Passado o prazo acima, não aparecendo
os reclamantes, os bens restantes, levados à leilão, tinham o produto da venda,
em conjunto com o produto apurado anterior, depositados na Caixa Geral de
Depósito (CGD), descontadas as remunerações e despesas dos achados no mar,
segundo o art. 680.º, §2.º.
No entanto, não havia menção ao prazo prescricional do direito de reclamar judicialmente por parte do pretenso proprietário, o que podia ser remetido à aplicação da regra do art. 535.º, CC/1867, conforme mencionado no Subitem anterior. Outra alternativa, aduzida por Cunha Gonçalves, seria a aplicação do regulamento especial da CGD[20].
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4.2. REGIME JURÍDICO VIGENTE
Na legislação portuguesa atual, os bens naufragados ou os arrojos e achados no mar encontram abrigo no Decreto n.º 31.730/1941, de 15 de dezembro – Regulamento das Alfândegas (RA); no DL n.º 416/1970, de 01 de setembro; no DL n.º 265/72, de 31 de julho – Regulamento Geral das Capitanias (RGC); no DL n.º 164/1997, de 27 de junho; no DL n.º 203/1998, de 10 de julho – Lei da Salvação Marítima (LSM); Decreto Lei n.º 64/2005, de 15 de março. Estes Regimes são a seguir considerados.
4.2.1. Regulamento das Alfândegas (RA)
O Regulamento das Alfândegas,
aprovado pelo Decreto n.º 31.730/1941, de 15 de dezembro, regulou de forma autônoma
da salvação e da assistência a matéria dos “sinistros marítimos e aéreos, dos
achados, e dos arrojos”. Houve equiparação, como no CCom, dos achados no mar com
os arrojos ou objetos encontrados na costa, e há a obrigação da restituição da
coisa achada ao seu proprietário, por meio do art. 687.º, §5.º, dispositivo do
Título V, Livro VI[21].
Pode-se perceber que houve no RA um
maior detalhamento dos procedimentos estabelecidos no CCom sobre a matéria,
sobretudo quando o art. 687.º, §8.º, a remete, para melhor tratamento, ao
Título IV, que estatui a venda das mercadorias em hasta pública pela autoridade
aduaneira, especialmente “as mercadorias achadas no mar ou por ele arrojadas” previstas
nos art. 638.º, n.º 3, e ainda nos arts. 642.º, 673.º e 676.º deste Título.
Com relação à propriedade dos bens
achados no mar, estes pertencem ao proprietário original, que, em um prazo não
inferior a oito dias, quer dizer, após inventário e anúncios dos achados, podem
reclamar o bem junto à autoridade alfandegária, prestando a devida caução dos encargos,
pagamento do achador, direitos e imposições legais, conforme os arts. 684.º e 685.º
deste Diploma legal.
Convém assinalar que, na redação
original do art. 687.º, §5.º, do RA, foi prevista uma retribuição de um terço do
valor dos achados ou do produto da arrematação para o achador[22].
Contudo, este valor foi alterado pelo DL n.º 464/1970, de 9 de outubro, de
maneira a retribuir o achador com uma quantia não superior à metade do valor do
achado ou do produto da arrematação.
O RA também prevê em seu art. 687.º, §9.º,
que a procura dos objetos do fundo mar necessita de concessão do poder público,
no caso, da Capitania dos Portos, depois do visto da autoridade aduaneira – ou
seja, depreende-se que estes bens pertencem ao Estado –, e que a remuneração
para o achador concessionário, fixada por este órgão, pode variar entre um
terço e metade do valor do achado, podendo o ministro da Marinha fixar valor
maior a depender das circunstâncias.
Cabe evidenciar o parágrafo 10.º do
artigo supracitado, acrescentado pelo DL n.º 464/1970, a preceituar que os
peixes achados mortos no mar ou por ele arrojados são de propriedade do achador.
Esta espécie de ocupação é compreensível, porquanto estes bens, na maior das
vezes provenientes de barcos pesqueiros naufragados, são por demais perecíveis,
não havendo tempo hábil a procedimentos administrativos para venda em hasta
pública e/ou reclamação do dono original.
Em uma forma de delimitação negativa[23],
o art. 688.º prever que as embarcações nacionais e seus pertences, com dono
conhecido, os ferros, âncoras, amarras, boias, gatas, fateixas, e todo material
de natureza militar, atestada pela autoridade marítima, não são considerados
achados ou arrojos. Aqui, o dispositivo, apesar de os efeitos serem apenas aduaneiros
e de o navio e seus pertences terem dono conhecido, afasta a salvação dos
achados do mar por meio de critério referente ao objeto[24].
A exemplo do CCom, o RA não esclarece acerca do prazo prescricional para a reclamação judicial por parte do pretenso proprietário, depois de os bens serem vendidos em hasta pública, valendo aqui as mesmas observações feitas no Subitem anterior.
4.2.2. Decreto Lei n.º 416/1970, de 01 de setembro
Este Instrumento, com as alterações
do DL n.º 577/1976, de 21 de julho, trata dos objetos sem dono conhecido, é
dizer, dos objetos que não forem recuperados pelo dono em até cinco anos
contando da data em que perdeu, ou deles se separou por algum modo. Tais
objetos constituem propriedade do Estado, e incluem os achados no mar, no fundo
do mar ou arrojados por este, sendo despojos de naufrágios de navios, de
aeronaves ou de qualquer material flutuante e fragmentos de quaisquer deles ou
de suas cargas e equipamentos, os quais, do ponto de vista científico,
arqueológico, artístico ou outro, tenham algum interesse para o Estado[25],
conforme se depreende do art. 1.º.
Assim, configura-se uma maneira
autônoma de aquisição de propriedade para o Estado e não para a pessoa do
achador, embora este mereça uma proporção de um terço à metade do valor do
achado[26],
a ser fixada pelo Ministro da Marinha, sob proposta da Capitania do porto.
Por outro lado, de modo negativo, se
deduz que os bens achados, com donos conhecidos e que sejam reclamados em até
cinco anos permanecerão de propriedade do titular original, deduzidos os
valores do pagamento ao achador e das despesas.
Convém frisar neste passo que a
recuperação de objetos no fundo mar, “incluindo achados de despojos de
naufrágios de navios, de aeronaves, ou de qualquer material flutuante, e de
fragmentos de quaisquer deles ou de suas cargas e equipamentos” necessita de
licença da Capitania dos portos e visto da autoridade aduaneira, segundo a art.
7.º do referido Diploma, a exemplo do que prevê o RA. Esta licença tem a
validade compreendida no ano civil, podendo ser prorrogada.
Relevante esclarecer que esta Lei
impõe, em seu art. 8.º, ao Ministro da Marinha, vedar a licença a particulares ou
ao concessionário sem reconhecida idoneidade, quanto à exploração dos objetos
mencionados acima, em qualquer área do fundo do mar em que Portugal tenha
soberania.
Acrescenta-se que, após a vigência do
DL n.º 416/1970, depreende-se que ao RA é aplicado aos bens sem valor cultural
ou aos quais, mesmo tendo este valor, o dono o recupere em um quinquênio[27].
Outrossim, Aureliano ressalva que esse Decreto Lei foi revogado tacitamente pelo DL n.º 289/1993, de 21 de agosto, que por sua vez foi revogado expressamente pelo DL n.º 164/1997, de 27 de julho, constando hoje o regime aplicado aos objetos de valor cultural achados no mar, no subsolo marinho ou arrojados à costa[28].
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4.2.3. Regulamento Geral das Capitanias (RGC)
O Decreto Lei n.º 265/1972, de 31 de
julho, concebe o RGC e regulamenta os “objetos achados no mar” em seu Capítulo
X, nos arts. 185.º e seguintes. Aqui, o regime refere-se aos objetos achados no
mar, no fundo do mar ou por este arrojados.
Os art. 188.º a 193.º dispõem acerca
dos achados de natureza militar. Assim, qualquer achado deve ser comunicado em 48
horas à Capitania do porto com jurisdição no local, sob pena de o achador
perder o direito à sua retribuição. O achador não deve de maneira alguma
manusear um achado desta natureza, até por questão de segurança.
Cumpre frisar que qualquer achado no
mar de natureza militar, após identificados e tornados inertes pelo órgão
naval, podem ser destruídos, aproveitados pela Marinha, ser entregue ao Exército
ou à Força Aérea, ou até às autoridades aduaneiras, neste caso, se tratar-se de
material não militar, de acordo com o art. 192.º.
Pode-se perceber que a propriedade do
achado de natureza militar será sempre do Estado, cabendo ao respectivo órgão militar
proceder o pagamento da compensação ao achador, segundo depreende-se do art.
192.º, n.º 2. Deve-se concluir ainda que a proporção da compensação do achador
será da mesma forma que a prevista no DL n.º 416/1970, uma vez que o art. 185.º
do RGC alerta que este regime é complementar àquele.
Quanto aos bens denominados “ferros
perdidos” na forma prevista do art. 194.º ao 203.º do RGC, estão delimitados
como objetos náuticos do sistema de amarração e ancoragem da embarcação,
compostos por ferros, âncoras, amarras, boias, poitas, gatas, ancorotes e
fateixas, conforme dispõe o n.º 5 do art. 194.º, e pertencem ao dono original.
Porém, o mesmo artigo prevê que o comandante da embarcação deve comunicar por
escrito à autoridade marítima, num prazo de oito dias, a perda do “ferro”. Este
registro de comunicação, prescrito no n.º 3 do art. 194.º, é imprescindível,
pois o objeto achado cuja perda antes não tenha sido comunicada será
considerado de propriedade do Estado.
Ademais, o “ferro perdido” pode ser
rocegado, isto é, buscado no fundo com uso de cabo, draga ou grateia[29],
e, para tal, é necessária uma licença que pode ser concedida pela autoridade
marítima, consoante o registro de comunicação referido acima, dispõe o art.
195.º do RGC. Ressalva-se que os ferros perdidos por navios da Armada ou outras
embarcações do Estado podem ser rocegados sem necessidade de licença.
O proprietário do objeto registrado achado por outrem tem o direito de propriedade perdido em favor do Estado, se não pagar a compensação de um terço do valor do achado ao achador e despesas incorridas, num prazo de 90 dias. Neste caso, o Estado tem 60 dias para proceder o pagamento devido. Também perde a propriedade em favor do Estado o proprietário cuja perda não tenha sido registrada na autoridade marítima, segundo os arts. 200.º e 202.º do RGC.
4.2.4. Decreto Lei n.º 164/1997, de 27 de julho
Este Regime jurídico visa a tutelar o
“patrimônio cultural subaquático”, assim assinalado, composto “por todos os
bens móveis ou imóveis e zonas envolventes, testemunhos de uma presença humana,
possuidores de valor histórico, artístico ou científico, situados, inteiramente
ou em parte, em meio subaquático”, conforme dispõe o art. 1.º.
Esses bens, considerados arqueológicos
subaquáticos, são de propriedade do Estado, na medida em que não possuem
proprietário conhecido ou que os bens não sejam recuperados pelo dono em até
cinco anos a contar da data do perdimento[30],
de modo similar ao definido pelo DL n.º 416/1970.
Por exclusão, se deduz que os bens
achados dessa natureza, com donos conhecidos e que sejam reclamados em até
cinco anos permanecerá de propriedade do dono original, deduzidos os valores da
recompensa ao achador e das despesas.
O achador aqui tem direito à
recompensa no montante equivalente à metade do valor do achado fortuito dos
bens objetos deste Diploma, os quais venham a ser inventariados. Se os achados
forem um complexo arqueológico, o valor cultural será avaliado pelo Instituto
Português de Arqueologia (IPA), caso em que ao achador caberá recompensa
proporcional a este valor, de acordo com tabela aprovada pelos Ministros da
Finanças e Cultura (arts. 16.º e 17.º do DL n.º 164/1997).
Cabe frisar ainda que este Normativo preenche com maior precisão e detalhe, no âmbito interno, a disposição da CNUDM de 1982, Convenção de Montego Bay, em seu art. 303.º, n.º 1, que estatui: “Os Estados têm o dever de proteger os objectos de carácter arqueológico e histórico achados no mar e devem cooperar para esse fim”, conforme será analisado no Subitem 5.2.
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4.2.5. Lei da Salvação Marítima (LSM)
A LSM, aprovada pelo Decreto Lei n.º
203/1998, de 10 de julho, veio substituir o regime da salvação marítima
disciplinado no CCom, em seus arts. 676.º a 691.º, os quais foram revogados.
Tal fato decorre da entrada em vigor da Convenção Internacional de Londres sobre
Salvação Marítima (CLSalv), de 1989, segundo o §1.º do preâmbulo da LSM, em que
pese Portugal não ser signatário.
Entretanto, a propósito deste estudo,
a LSM limitou-se mormente ao art. 12.º, em que trata nomeadamente das
“embarcações ou outros bem naufragados”. A exemplo do art. 676.º do CCom, traz
a imposição negativa de que “embarcações naufragadas, seus fragmentos, carga ou
quaisquer bens que o mar arrojar às costas ou sejam nele encontrados” não podem
ter suas propriedades adquiridas por ocupação.
O art. 12.º, n.º 2, da LSM ainda
ressalta a obrigatoriedade de o achador entregar os bens ao proprietário ou
representante legal, sob pena de perder o direito de “salário de salvação
marítima” e de outras sanções correspondentes ao fato.
Assim, a propriedade é do dono
original, como já determinava o CCom. Contudo, o Normativo se absteve de
autonomizar os achados no mar frente à salvação marítima, situação tão
necessária quanto importante pelo seu efeito prático de determinar se há, em benefício do achador, salário ou percentual do valor do achado, conforme já demonstrava Mota Pinto[31]
em seu parecer acatado no âmbito do processo n.º 061841, tramitado até o
Supremo Tribunal de Justiça (STJ), cujo acórdão foi publicado em 03/11/1967[32].
Segundo Aureliano, esta Norma
condensa num único dispositivo a referência aos achados, distanciando-se da
salvação marítima. Isto ocorre devido à atribuição de um direito de retenção a
incidir sobre as coisas salvas ao salvador, consoante o art. 14.º, favorecendo
a não colisão por meio de uma exigível delimitação das figuras a que se
destinam[33].
Em tom mais crítico, Mario Raposo diz
que deveriam ter sido acolhidos os arts. 677.º ao 680.º do CCom, não os sendo
porque tal inviabilizaria o “direito de retenção”, acrescentando que “apenas se
compreenderá uma norma como a do art. 14.º da LSM quanto a embarcações
abandonadas e a outros bens encontrados no mar ou nas costas.”[34].
Com efeito, é justificável ao operador do direito concluir que, para os bens naufragados, incluindo as embarcações que perderam simultaneamente a navegabilidade e a sua identidade material[35], salvador e salvado, no contexto do art. 12.º, referem respectivamente ao achador e ao achado.
4.2.6. Decreto Lei n.º 64/2005, de 15 de março
Este Decreto Lei tem como objetivo
regular a remoção de destroços no mar de navios encalhados ou afundados, que
cause prejuízo à navegação ou ao porto, bem assim ao meio ambiente. Tal
obrigação é do proprietário, armador ou representante legal do navio, assumindo
todos as despesas da operação, segundo reza o art. 1.º.
Mas o que seria destroços de navio? Este Normativo não deixa claro, mas Cláudia Madaleno sustenta que para um objeto ser considerado um destroço de navio, seriam necessários os três seguintes requisitos:
(i) pelo menos em
tempos e antes de se apresentar nesse estado, se tivesse tratado de um navio;
(ii) o qual tenha
sido abandonado, de modo que nem o proprietário nem a tripulação tenham o seu
controlo ou vigilância, sendo que a presença de um só tripulante a bordo ou uma
vigilância exercida a partir de terra afasta a qualificação como destroço;
(iii) e ainda que esse abandono decorra do facto de o navio se encontrar em estado de inavegabilidade, no sentido comum do termo, isto é, inapto para, ainda que seja rebocado, prosseguir em segurança a viagem[36].
Para o processo de remoção do navio
ou destroços, os responsáveis devem prestar à autoridade marítima garantia ou
caução, a qual será devolvida um dia após a remoção, além de apresentar um
plano de remoção em até trinta dias (art. 3.º, n.º 1, a e b, do
DL n.º 64/2005).
Caso o proprietário da carga reivindique
a sua recuperação, será necessária a apresentação do respectivo título de
propriedade ou de autorização do armador do navio em sinistro, sem prejuízo do
pagamento integral da dívida pela remoção do navio e da carga (art. 3.º, n.º 1,
d).
Se o proprietário da carga ou o
carregador não fizer a reivindicação da carga ou não apresentação da
documentação referida, a propriedade da carga será perdida para o Estado (art.
3.º, n.º 1, e). Com elação aos navios estrangeiros abandonados, todas
diligências internas serão comunicadas ao Estado de Bandeira para providências.
Em se tratando de risco elevado de
ocorrência de poluição, caso a remoção não seja imediatamente realizada, há
possibilidade de o Estado agir diretamente para retirada das substâncias
perigosas, por meio de entidade idônea contratada, como prevê o art. 7.º[37].
Todas as despesas aqui correm por conta do proprietário e armador,
solidariamente responsáveis, por força do art. 9.º.
Além disso, o art. 8.º dispõe acerca
do abandono do navio, que assim é tratado, quando estiver à deriva por mais de
trinta dias, mesmo que não tenha ocorrido nenhum acontecimento de mar. Assim, o
navio será vendido sobre a coordenação das autoridades alfandegárias, segundo
as regras do art. 814.º do Código de Processo Civil (CPC) acerca da venda
antecipada em processo de execução.
No silêncio do Decreto Lei, depreende-se que o produto da venda passa a ser de propriedade do Estado, descontadas a compensação ao achador, as despesas de remoção e administrativas, nada obstante a revogação do art. 17.º, n.º 3, do DL nº 202/1998, de 10 de julho, que previa a propriedade do Estado no caso de o navio ser considerado abandonado.
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5. REGIME CONVENCIONAL RATIFICADO POR PORTUGAL
A seguir são analisados os Instrumentos internacionais adotados por Portugal: Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar (CNUDM), de 1982, ou Convenção de Montego Bay; Convenção da Unesco sobre a Proteção do Patrimônio Cultural Subaquático (CPPCS), de 2001; e Convenção Internacional de Nairóbi sobre a Remoção de Destroços, de 2007, ou Convenção de Nairóbi.
5.1. CONVENÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS SOBRE O DIREITO DO MAR (CNUDM) DE 1982 (CONVENÇÃO DE MONTEGO BAY)
No que se refere ao objeto de análise
do presente estudo, este importante Instrumento internacional dedica o seu art.
303.º, para tratar dos achados no mar de caráter arqueológico e históricos.
O mencionado artigo, em seu n.º 2,
expande a proteção dos objetos de valor histórico e arqueológico, achados no
fundo do mar até a zona contígua do art. 33.º, informando que sua remoção sem
autorização do Estado português constitui infração nos moldes da cometida no seu
território ou mar territorial.
Verifica-se que a CNUDM mantém o direito dos proprietários conhecidos dos achados no mar conforme dispõe o n.º 3 do art. 303.º, numa abordagem muito próxima ao que previa o DL n.º 416/1970, então vigente, e o DL n.º 164/1997. A novidade aqui é que a área de aplicação deste regime inclui a zona contígua, que se estende até 24 milhas marítimas das linhas de base da costa.
5.2. CONVENÇÃO DA UNESCO SOBRE A PROTEÇÃO DO PATRIMÔNIO CULTURAL SUBAQUÁTICO (CPPCS) DE 2001
Para os países signatários da
Convenção da Unesco sobre a Proteção do Patrimônio Cultural Subaquático
(CPPCS), estão sob tutela deste Instrumento, como define o seu art. 1.°, os
bens submersos há pelo menos cem anos e que representem, de alguma ordem,
vestígios da existência humana, sejam de caráter cultural, histórico ou
arqueológico. Estes bens pertencem à humanidade e permanecerão, após
encontrados e salvados, sob custódia do Estado Parte.
Vigente em Portugal desde 02 de janeiro
de 2009, e dada a relevância que pode existir do patrimônio cultural subaquático
para humanidade, a Convenção ressalva em seu art. 4.º que nenhuma atividade
referente a este património a que seja aplicável esta Convenção estará sujeita
às leis relativas a salvados ou achados, a menos que: i) haja autorização das
autoridades competentes; ii) haja conformidade com esta Convenção; e iii) mantenha
a proteção máxima do património cultural subaquático em qualquer fase da operação
de recuperação.
No seu art. 7.º, dispõe que o Estado tem
o direito exclusivo ao uso de sua soberania e de aplicar a sua legislação
interna nas águas interiores e arquipelágicas, bem como no mar territorial.
Além disso, conforme seus arts. 8.º, 10.º e 12.º, estende a área de aplicação da jurisdição de Portugal à zona contígua, à Zona Econômica Exclusiva (ZEE) e à Plataforma Continental (PC) e à Área. No entanto, como foi mencionado, o patrimônio é da humanidade, inobstante a custódia do Estado.
5.3. CONVENÇÃO INTERNACIONAL DE NAIRÓBI SOBRE A REMOÇÃO DE DESTROÇOS DE 2007 (DEC. N.º 28/2017, DE 25 DE AGOSTO)
Esta Convenção tem a finalidade de
estabelecer um regime jurídico internacionalmente uniforme, relativamente à
remoção de destroços no mar, tendo em conta a tutela dos Estados afetados[38].
Desde que estes destroços se localizem na área estabelecida na Convenção, tenham
sido decorrentes de acidentes marítimos e representem risco à navegação ou ao
meio ambiente marinho.
Como se depreende do art. 1.º, n.º 2,
a a d, os destroços são entendidos como navio ou seu fragmento, afundado
ou encalhado; qualquer objeto perdido, afundado, encalhado ou à deriva no mar, proveniente
do navio; e o próprio navio que esteja prestes a afundar ou encalhar, quando
medidas para o assistir ainda não tenham sido tomadas.
Quanto à esta última definição, não
cabe ao navio que ainda estiver sob o controle do proprietário ou seu preposto,
com mera inavegabilidade relativa, no sentido de que ainda seja possível a sua
salvação, ser considerado um destroço[39].
A área geográfica de aplicação estabelecida
na Convenção refere à ZEE e, eventualmente, às águas territoriais do Estado afetado,
conforme restou facultado pelo n.º 2 do art. 3.º. Com efeito, Portugal, ao
ratificar este regime jurídico internacional, decidiu estender a sua aplicação aos
destroços localizados no seu território, incluindo o mar territorial, observado
o n.º 4 do art. 4.º, sem prejuízo dos direitos e deveres do País, os quais não
serão prejudicados, segundo o parágrafo 6.º do Dec. n.º 28/2017.
Em relação à propriedade, os
destroços não pertencem ao achador, que tem o dever de comunicar o ocorrido às
autoridades do Estado afetado para que se possam proceder a proteção,
determinação do risco, sinalização e providencias de remoção junto ao
proprietário. A propriedade mantém-se com seu titular original, quer dizer, com
aquele que detinha o direito de propriedade logo antes da alteração material da
coisa para destroços[40].
Nesse sentido, o proprietário, mesmo
que não cumpra com a obrigação de remover os destroços, pode reivindicá-los às
autoridades. No entanto, se não o fizer, no prazo estabelecido pelo Estado afetado,
deverá pagar as despesas, podendo até perder o direito de propriedade para o
Estado[41].
Deve-se lembrar que o prazo para que o
Estado afetado recupere os custos operacionais de todos os procedimentos até a
remoção, diante da inércia do proprietário, é de três anos após a determinação
do perigo, e de no máximo seis anos depois do acidente marítimo do qual resultaram
os destroços, sob pena de prescrição[42].
Ressalta-se, por fim, que em face do valor supralegal dos regimes internacionais sobre a legislação infraconstitucional portuguesa[43], ao regime jurídico do DL n.º 64/2005 restou uma aplicação supletiva, após a entrada em vigor da Convenção de Nairóbi, em 25 de agosto de 2017, pois Portugal estendeu o alcance deste documento aos mares interiores e ao mar territorial, conforme mencionado acima.
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6. CONCLUSÃO
Diante do exposto, ao intérprete jurídico não é tão simples determinar a legislação aplicável aos bens naufragados, sejam estes considerados do ponto de vista da propriedade: bens com dono conhecido ou desconhecido, do Estado ou do achador; da localização: achados no mar, no fundo do mar, próximo ao porto ou arrojados à costa, encontrados nos mares interiores, no mar territorial, na zona contígua, na ZEE ou na PC; quanto da ótica do conteúdo: objetos, ferros perdidos, navios naufragados inavegáveis e sem identidade material, seus fragmentos, destroços, cargas ou fazendas; do ponto de vista do patrimônio cultural subaquático: bens históricos, artísticos, científicos, arqueológicos ou sem valor cultural; ou ainda sob o ângulo da natureza militar: objetos, artefatos ou seus fragmentos.
Entretanto, da análise do arcabouço
normativo enfrentado, consegue-se vislumbrar os regimes internos atualmente aplicáveis.
Logo, verifica-se que o DL n.º 164/1997 abrange toda a matéria do DL n.º 416/1970, é dizer, o patrimônio cultural subaquático, incluindo o arqueológico, o que se constitui
uma revogação tácita deste Normativo. Este patrimônio cultural pertence ao
Estado, se não for recuperado pelo proprietário original em um quinquênio.
Além disso, ao RA e ao art. 12.º da
LSM são subsumidos os bens naufragados sem valor cultural, os que, mesmo tendo
este valor, o dono conhecido o recupere em um quinquênio, ou ainda os ferros
perdidos de natureza não militar, pertencentes ao dono original; ao RGC, arts.
188.º a 203.º, são submetidos os bens achados de natureza militar, de
propriedade do Estado. Nos âmbitos operacional de navegação e de proteção ambiental,
ao DL n.º 64/2005 estão subsumidos os destroços de navios e de suas
cargas, que podem ser reivindicados por seu proprietário em até trinta dias do
acontecimento no mar ou do seu abandono. Decorrido este prazo, os destroços
serão vendidos e seu produto pertencerá ao Estado.
No entanto, ao regime jurídico do DL
n.º 64/2005 restou uma aplicação supletiva, tendo em vista que a Convenção de
Nairóbi de 2007, a viger a partir de 25 de agosto de 2017, alcança as áreas dos mares interiores e territorial portugueses, além da ZEE.
A Convenção de Montego Bay, dado o
pouco aprofundamento dispensado à matéria dos achados arqueológicos e históricos,
não substitui o DL n.º 164/1997. A novidade é que inclui a zona contígua como
área de proteção aos referidos achados no fundo do mar. Já a CPPCS impõe a
proteção ao patrimônio cultural subaquático submerso há pelo menos cem anos na
zona contígua, ZEE, PC e Área, pertencendo este patrimônio à humanidade, mas
sob custódia do Estado.
Considerando que na Idade Média, com o Ius Naufragii, a propriedade dos bens naufragados no mar pertencia ao Estado, sendo imputada até imolação ou escravidão aos náufragos como punição, constata-se que a propriedade dos bens achados no mar tende a permanecer com o seu titular original, na medida em que os regimes jurídicos se modernizam, salvo quando não se lhe possa conhecer ou quando há interesse público, de caráter militar ou cultural, incluído o arqueológico. Por fim, em todos os normativos, ao achador é garantido uma recompensa, que varia de um terço à metade do bem encontrado, com exceção das Convenções CNUDM e CPPCS, que sobre este aspecto silenciam.
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REFERÊNCIAS
DOUTRINA
AURELIANO, N. A salvação marítima. Coimbra: Almedina, 2006.
CANOTILHO, J. J. G.; MOREIRA, V. Constituição da República Portuguesa anotada. 4. ed., Coimbra: Coimbra Editora, v. I, 2007.
GOMES, M. J. C. A pirataria marítima e o Direito: breves notas. In Estudos de homenagem ao Prof. Doutor Jorge Miranda. Coimbra: Coimbra Editora, v. V, p. 627-645, ago. 2012.
GOMES, M. J. C. O ensino do Direito Marítimo: o soltar das amarras do Direito da Navegação Marítima. Coimbra: Almedina, 2005.
GONÇALVES, L. C. Comentário ao Código Comercial português. Lisboa: Empresa Editora José Bastos, v. III, 1918.
MADALENO, C. A convenção de Nairóbi sobre destroços de navios. In GOMES, M. J. C. II Jornadas de Lisboa de Direito Marítimo. Coimbra: Almedina, p. 365-411, 2012.
MATOS, A. Princípios de Direto Marítimo III: dos acontecimentos do mar. Lisboa: Edições Ática, v. III, 1958.
MOTA PINTO, C. A. Acerca da distinção, em Direito Marítimo, entre salvação, assistência de navios e recolha de achados. In Revista de Direito e de Estudos Sociais - RDES. Lisboa: Atlântida Editora, ano XV, n. 1-2, jan.-jun. 1968.
RAPOSO, M. Estudos sobre o novo Direito Marítimo: realidades internacionais e portuguesa. Coimbra: Coimbra Editora, 1999.
JURISPRUDÊNCIA
PORTUGAL. Processo 061841 (sumário). Acórdão de 03 de novembro
de 1967. Supremo Tribunal de Justiça (STJ). Lisboa, 1967. Disponível em:
http://www.dgsi.pt/. Acesso em: 23/08/2023.
[1] Autores:
Marcos T. A. de Sousa, graduado em Direito e em Matemática e pós-graduado em
Engenharia de Sistemas, todos pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), Advogado; Maria J. M. de Sousa,
graduada em Direito e em Letras e pós-graduada em Direito Constitucional e em
Educação, todos pela UFRN, Advogada.
[2] MADALENO,
2012, p. 366.
[3] Para
mais detalhes, ibidem, p. 374.
[4] AURELIANO,
2006, p. 97.
[5] MOTA
PINTO, 1968, p. 229.
[6] GONÇALVES,
1918, p. 473.
[7] AURELIANO,
op. cit., p. 22-23; cf. também a questão da “sorte dos náufragos em caso de
naufrágio” em GOMES, 2005, p. 320.
[8]
GOMES, op. cit., p. 44 e 49.
[9] AURELIANO,
op. cit., p. 27.
[10] GOMES,
2012, p. 628-629.
[11] AURELIANO, op. cit., p. 28.
[12] Ibidem; cf. ainda a este respeito GONÇALVES, op. cit., p. 473.
[13] Conforme
o preceituado neste artigo do CC/1867, “Aquelle, que se achar constituído para
com outrem na obrigação de prestar, ou fazer alguma cousa, póde livrar-se dessa
obrigação, se não tiver sido exigida por espaço de vinte annos, e o devedor se
achar em boa fé, quando findar o tempo da prescripção: ou por trinta anos, sem
distincção de boa ou má fé, salvo nos casos em que a lei estabelecer
prescripções especiaes”.
[14] AURELIANO,
op. cit., p. 90.
[15] MATOS,
1958, p. 182.
[16] MOTA
PINTO, op. cit., p. 223.
[17] MADALENO,
op. cit., nota de rodapé 18, p. 371.
[18] GONÇALVES,
op. cit., p. 473.
[19] CCiv, art. 1318.º – “Suscetibilidade de ocupação Podem ser adquiridos por ocupação os animais e as coisas móveis que nunca tiveram dono, ou foram abandonados, perdidos ou escondidos pelos seus proprietários, salvas as restrições dos artigos seguintes.”
[20] GONÇALVES,
op. cit., p. 474-475.
[21] AURELIANO,
op. cit., p. 91.
[22] Cf.
também em MATOS, op. cit., p. 185.
[23] GOMES,
op. cit., p. 390.
[24] AURELIANO,
op. cit., nota rodapé 172, p. 92.
[25] Para
mais detalhes, consultar MADALENO, op. cit., nota de rodapé 17, p. 371.
[26] AURELIANO,
op. cit., p. 92.
[27] Ibidem, p. 93.
[28] Ibidem,
p. 94.
[29] Conforme
o dicionário Priberam: https://dicionario.priberam.org/rocegar.
[30] MADALENO,
op. cit., p. 378.
[31] MOTA
PINTO, op. cit., p. 223.
[32] PORTUGAL, 1967; para mais detalhes, cf. acórdão acostado
em MOTA PINTO, op. cit., p. 213-220.
[33] AURELIANO,
op. cit., p. 96.
[34] RAPOSO,
1999, p. 28-29.
[35] MADALENO,
op. cit., p. 377.
[36] Ibidem, p. 391.
[37] Cf.
também em MADALENO, op. cit., p. 381.
[39] Cf.
ainda em MADALENO, op. cit., p. 394.
[40] Ibidem, p. 396.
[41]
[42] Ibidem,
p. 409-410.
[43] CANOTILHO;
MOREIRA, 2007, p. 240.
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