Série acadêmica
FICHAMENTO
DO TEXTO: Moraes, Maria Celina Bodin
de. Constitucionalização do direito civil e seus efeitos sobre a
responsabilidade civil. Direito, Estado e Sociedade, v. 9, n. 29, p.
233-258, jul./dez. 2006.
A CONSTITUCIONALIZAÇÃO
DO DIREITO CIVIL
A
reverência das normas infraconstitucionais à Constituição não é exercido apenas
formalmente, durante o processo de sua elaboração e aprovação, mas com base em
sua correspondência substancial aos valores constitucionais, consagrados
normativamente sob a forma de princípios.
O
reconhecimento do princípio da dignidade da pessoa humana como fundamento da
República é hoje uma conquista determinante que transforma subversivamente toda
a ordem jurídica privada. O constituinte, ao elevá-lo ao topo do ordenamento,
alterou a estrutura tradicional do direito civil, determinando a preponderância
das situações jurídicas existenciais sobre as relações patrimoniais.
O
princípio da democracia como legitimador de todo o ordenamento justifica a
superioridade da Constituição, elaborada indiretamente pelo povo, por meio do
constituinte, o que impõe a máxima eficácia deste texto, expressão de profundas
transformações sociais.
Portanto,
por imposição constitucional, assim como ocorre a submissão da família ao livre
desenvolvimento de seus membros e a vinculação da proteção do contrato e da
propriedade à realização da justiça social, o mesmo ocorre na seara da
responsabilidade civil no que tange ao ressarcimento do dano independente da
culpa do agente.
Os
desafios ainda são grandes e, para preencher os vazios valorativos das
cláusulas gerais constitucionais, são fundamentais as motivações das decisões e
as ponderações realizadas pelos magistrados, para permitir bases racionais e
critérios que norteiem isonomicamente novas decisões.
A RESPONSABILIDADE
CIVIL COMO MECANISMO DE PROTEÇÃO DOS INTERESSES DA PESSOA HUMANA
Vivemos
em sociedades de risco. No sentido de sociedades preocupadas com o seu futuro,
com a sustentabilidade, e que necessitam desenvolver mecanismos aptos a
garanti-los.
Diante
da velocidade do progresso tecnológico e a lentidão com a qual amadurece a
capacidade de organizar, social e juridicamente, os processos que acompanham essa
evolução, a partir da segunda metade do séc.
XX, o legislador decidiu utilizar-se de uma linguagem normativa baseada em
cláusulas gerais e conceitos jurídicos indeterminados.
Adveio,
no plano jurisdicional, a necessidade de individuar os princípios que devem
direcionar cada interpretação-aplicação do direito, com o fim de funcionarem
como meios de incidência dos valores constitucionais nas relações
intersubjetivas. As dificuldades para tanto, frente às exigências e conflitos de
interesses têm um denominador comum, a prevalência do princípio da proteção da
pessoa humana, “finalidade-função do Direito”.
Tal
princípio gerou, na responsabilidade civil, a sistemática extensão da tutela da
pessoa da vítima, em contraposição ao objetivo anterior de punição do
responsável, desdobrando-se em dois efeitos: aumento expressivo das hipóteses
de dano ressarcível; e diminuição da importância da função moralizadora.
O
direito da responsabilidade civil é antes de tudo jurisprudencial, tendo em vista
que os magistrados são os primeiros a sentirem as mudanças sociais e, bem antes
de qualquer movimento legislativo, estão aptos a atribuir-lhes, por meio de
suas decisões, respostas normativas. E isto se deve à discricionariedade que
possuem nas motivações das decisões, de acordo com as exigências
pós-positivistas.
Deve-se
salientar que a responsabilidade civil caracteriza-se atualmente pela concepção
que empreende a presença de um dever geral de solidariedade, previsto
constitucionalmente, tendo como base a obrigação de comportar-se de modo a não
lesar os interesses de outrem.
O EVENTO DANOSO E O
PROBLEMA DE SUA IDENTIFICAÇÃO
O
dano, como o fundamento unitário da responsabilidade civil, é a própria razão
de ser do dever de indenizar. Assim, a responsabilidade civil consiste na
imputação do evento danoso a um sujeito determinado, que será, então, obrigado
a indenizá-lo.
Observa-se
que o direito civil não tipifica legislativamente cada comportamento danoso. A obrigação
de indenizar está inserida numa cláusula geral, prevista no art. 186 c/c o art.
927 do Código Civil, cumprindo identificar quais são os eventos que fazem nascer
tal obrigação.
Enquadram-se
inúmeras hipóteses de responsabilidade objetiva, reguladas seja por meio de
cláusula geral (CC, parágrafo único do art. 927), ou mediante dispositivos
específicos (CC, arts. 931, 932, 937, 938, etc.), consubstanciando-se em danos
ressarcíveis, embora não resultantes da prática de qualquer ilícito.
A
noção de dano ressarcível divide-se basicamente em duas correntes: a que
identifica o dano com a violação culposa de um direito ou de uma norma, ou
antijuridicidade; e a chamada teoria do interesse, hoje majoritária, que
vincula o dano à lesão de um interesse ou bem juridicamente protegido. Sendo
assim, a tutela ressarcitória está fundada na cláusula geral de
responsabilidade.
Entretanto,
o aumento desordenado de novas espécies de dano fez Rodotà temer que a proliferação
de novas figuras de dano venha ter como limites únicos a fantasia do intérprete
e a flexibilidade da jurisprudência. Esta situação foi cognominada de
“indústria do dano moral” no Brasil, ocorrendo a mercantilização das relações
extrapatrimoniais.
Por
outro lado, tal situação revela um reforço da cidadania e é consequência direta
de um processo de constitucionalização da responsabilidade civil, a demonstrar
que o expressivo aumento de indenizações mostra o fato de que o direito
nacional voltou-se para a tutela dos interesses extrapatrimoniais das pessoas
humanas, como determina a Constituição.
Para
evitar o incentivo à malícia e à má-fé, enseja-se maior dedicação à
identificação do dano moral. Na década de 1940, René Savatier ensinava que “dano
moral é todo sofrimento humano que não é causado por uma perda pecuniária”. Daí
a subsequente especificação jurisprudencial do dano moral como gerador dos
sentimentos de tristeza, constrangimento, vergonha ou humilhação, tendo sido
possível incluir qualquer “sofrimento humano”. Entretanto, faz-se necessário
identificar, no que se refere às hipóteses de dano moral, que interesses são
merecedores de tutela, à luz do direito civil constitucional.
Verifica-se
que a reparação dos danos morais não pode mais subsistir no nível do senso
comum. Sua importância atual é tão grande que exige a busca de rigor científico
e objetividade. A ausência deste tem gerado obstáculos ao adequado
desenvolvimento da responsabilidade civil, além de ocasionar graves injustiças
aos jurisdicionados.
APLICAÇÕES DA
CONSTITUCIONALIZAÇÃO NA RESPONSABILIDADE CIVIL
As
grandes transformações ocorridas na responsabilidade civil devem ser
enfrentadas mediante a aplicação direta e imediata das normas constitucionais.
É
certo que ela hoje se baseia na dignidade da pessoa humana, na solidariedade
social e na justiça distributiva e influencia profundamente toda a sistemática
do dever de ressarcir. Esta constitucionalização impôs a releitura da própria
função primordial da responsabilidade civil. A punição do agente causador do
dano perde importância para a reparação da vítima pelos danos sofridos.
Tal
mudança de perspectiva se percebe pelo surgimento de dois problemas: o da
conceituação do dano moral; e o do conteúdo da cláusula geral de responsabilidade
objetiva.
A
CONCEITUAÇÃO DO DANO MORAL
A
concepção de dano moral ressarcível está baseada, hodiernamente, na teoria do
interesse juridicamente protegido, recorrendo-se a uma cláusula geral de tutela
da personalidade. Desta forma, enquanto em alguns ordenamentos esta cláusula
vem expressa na legislação ordinária, no Brasil, ela encontra-se no princípio
constitucional da dignidade da pessoa humana.
Assim,
conceitua-se o dano moral como a lesão à dignidade da pessoa humana. Em consequência,
quaisquer circunstâncias que pretendam ter o ser humano como objeto, que neguem
sua qualidade de pessoa, serão consideradas transgressoras de sua personalidade
e, se concretizada, causadoras de dano moral.
Nesse
âmbito, desdobram-se os seguintes postulados: i) o sujeito moral reconhece a
existência dos outros como iguais a ele; ii) que são merecedores do mesmo
respeito à integridade física e moral de que é titular; iii) é dotado de
autodeterminação; iv) é parte do grupo social, com garantia de não vir a ser
marginalizado.
Serão
corolários desses postulados os princípios da igualdade, da integridade física
e moral, da liberdade e da solidariedade social ou familiar, previstos na
Constituição.
Portanto,
o dano moral será a lesão a algum desses aspectos que conformam a dignidade
humana. Mas, se estes princípios entrarem em colisão entre si, será imprescindível
fazer ponderação, por meio do exame dos interesses em conflito, tendo como
parâmetro o próprio princípio da dignidade humana.
A
FUNDAMENTAÇÃO DA CLÁUSULA GERAL DE RESPONSABILIDADE OBJETIVA
No
final do séc. XIX, Saleilles e Josserand, indicavam a insuficiência do sistema
de reparação baseado somente na noção de culpa e já buscavam instrumentos de
imputação de responsabilidade que não necessitassem deste elemento subjetivo.
No
plano legislativo, iniciou-se a transformação a partir de dispositivos de
presunção de culpa, invertendo o ônus da prova em benefício da vítima. Depois,
afastou-se a possibilidade de o ofensor provar a sua culpa, com previsão de
verdadeiros casos de responsabilidade objetiva.
No
Brasil, a partir de 1912, começou essa progressão no âmbito infraconstitucional
em uma maturação que foi abarcada pela Constituição de 1988, a qual atribuiu
responsabilidade objetiva às pessoas jurídicas de direito público e às pessoas
jurídicas de direito privado prestadoras de serviços públicos (art. 37, § 6º) e
àqueles que exploram energia nuclear (art. 21, XXIII, “c”).
Essas
hipóteses compartilham de uma inspiração comum, a noção de risco. O
funcionamento da sociedade industrial transforma os acidentes em eventos
normalmente esperados, decorrentes das atividades coletivas. Assim, os danos tornam-se
estatisticamente previsíveis e regulares e a imposição do dever de repará-los tem
de decorrer da mera assunção deste risco, o que acaba forçando o agente a
internalizar o custo de sua atividade.
A
objetivação da responsabilização traduz a passagem do modelo individualista-liberal
de responsabilidade para o chamado modelo solidarista, fundado na Constituição,
direcionado à atenção e ao cuidado com o lesado. Destarte, trata-se de vincular
a responsabilidade civil aos princípios constitucionais da dignidade, da
igualdade e da solidariedade.
O
Código Civil de 2002 trouxe o reconhecimento definitivo da existência de um
sistema dualista de responsabilidade civil, na medida em que, ao lado de uma
cláusula geral de responsabilidade pela culpa, instituiu uma cláusula geral de
responsabilidade pelo risco, conforme verifica-se no art. 927 e seu parágrafo
único, inobstante a responsabilidade pelas atividades de risco causar extensa discussão
doutrinária.
Tal
discussão enseja esclarecer o alcance da última expressão, que se refere a
risco-proveito, risco-criado, violação de dever de segurança e habitualidade ou
profissionalidade na interpretação da expressão legal “atividade normalmente
desenvolvida” do aludido artigo do Códex.
A
autora acredita que, com o tempo, o dever de solidariedade social, que
fundamenta a responsabilidade objetiva, sobressairá e aceitar-se-á que seu
alcance deva abranger a reparação de todos os danos sofridos injustamente,
havendo nexo de causalidade com a atividade desenvolvida.
Portanto,
o fundamento ético-jurídico da responsabilidade objetiva deve ser buscado na
concepção solidarista, instituída pela Constituição, fazendo-se incidir o seu
custo na comunidade, quer dizer, em quem esteja vinculado ao ato danoso. Esta é a razão ético-jurídica do deslocamento dos custos
do dano da vítima para o responsável pela atividade.
CONCLUSÕES
Apesar
de o Código Civil ser novo e os dispositivos relativos à responsabilidade civil
terem sido relativamente atualizados, sua disciplina normativa é resultante de
um conjunto de soluções jurisprudenciais conjunturais e não fruto de um
pensamento científico-doutrinário estruturado.
Nesse
sentido, o Código representou uma significativa perda de oportunidade. Mas, além
disso, os próprios conceitos básicos da disciplina encontram-se em discussão,
havendo grande oscilação no que se refere às suas noções mais elementares:
conceito de dano ressarcível, noções de culpa, de risco, de nexo de causalidade,
etc.
Proceder
à sua sistematização é imperioso, pela adequada interpretação constitucional da
normativa ordinária bem como a aplicação direta dos princípios e valores
constitucionais.
O
modelo solidarista, que se delineou bem antes da promulgação da Constituição,
nela encontrou o seu abrigo. O modelo tornou-se constitucional e ganhou impulso
para modificar a normativa ordinária, passando a Constituição de consequência à
causa da interpretação-aplicação do direito.
As
inundações das pretensões pela responsabilização civil ocorrem como resultado
do encontro entre um instrumento ainda não consolidado e demandas sociais por muito
tempo reprimidas. Cabe então, respeitado o modelo solidarista, redefinir os
conceitos, delimitar as funções, racionalizar os critérios de imputação, ou
seja, proceder à reconstrução do sistema da responsabilidade civil no âmbito do
ordenamento jurídico nacional, o que é um trabalho para a doutrina.
IMPRESSÕES PESSOAIS
Depreende-se
que a principal preocupação da autora, ao escrever este texto, foi evidenciar o
que chamou de “a indústria do dano moral”, decorrente da imprecisão existente
no conceito e delimitação do dano moral e no conteúdo da cláusula geral de
responsabilidade civil objetiva.
Desse modo, trouxe grande contribuição doutrinária para a definição de dano moral,
ao apresentar postulados condizentes com os princípios da igualdade, da
integridade física e moral, da liberdade e da solidariedade social ou familiar,
que, se conflitantes, devem ser parametrados pelo princípio da dignidade humana.
Além
disso, contribuiu para embasar a fundamentação da cláusula geral de
responsabilidade objetiva na concepção solidarista, instituída pela
Constituição, o que força, incluindo a noção de risco, o deslocamento do custo reparatório da vítima para a comunidade ou para o responsável pela atividade.